Arte: Hannah Baudson
A onda agora é coreana
Com influência da internet, a Hallyu movimenta a disputa do mercado da cultura e da política internacional
Repórteres:
Alexandre Coelho, Hugo Carrião, Hannah Baudson, Yasmim Paulino
As travessias entre culturas no atual mundo globalizado são feitas na internet por meio de mensagens, fotografias, memes, hits musicais, filmes, fóruns e fandoms. Esse último é uma evolução do que conhecíamos como fã-clube, grupos voltados para divulgação de bandas e artistas, principalmente. Há alguns anos, pesquisadores e observadores do cenário cultural mundial reconhecem esse movimento vindo de países da Ásia, com destaque para a circulação da cultura pop da Coreia do Sul, recentemente em ascensão e que foge do eixo Ocidental. Alexandre Ratsuo Uehara, Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e membro do Núcleo de Estudos e Negócios Asiático (NENA) afirma que “o mundo, de fato, olha hoje para Ásia com admiração. Se no passado, admirávamos os Estados Unidos pelo sucesso econômico, hoje o mundo olha para Ásia”.
Apesar de geograficamente pequena, a Coréia do Sul é uma grande potência econômica global e tornou-se o nome do momento no mercado da exportação cultural. Mais do que somente uma grande referência em tecnologia, esse novo status levou o país ao posto de 11ª maior economia do mundo em 2020 de acordo com pesquisa realizada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Segundo Alexandre, até o final da década de 1990, o país enfrentava conflitos de imagem, uma economia enfraquecida e a ressaca provocada por guerras entre as Coreias. Surgiu, então, a urgência de elaborar estratégias de recuperação. Os governantes sul-coreanos precisavam restabelecer uma boa economia, laços com os demais países e reconstruir sua reputação interna e externa.
Um ponto crucial desses planos de mudança foi uma série de investimentos, públicos e privados, na indústria cultural e na educação, que viria a pôr em prática o conceito de soft power. De acordo com a pesquisadora do movimento Hallyu e Mestra em Comunicação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Naiane Batista, a definição do termo refere-se a: “uma forma de persuasão por meio da cultura de determinado país [uma tentativa de] atrair a atenção das pessoas por meio da cultura, ideias”. Todo país possui seu soft power, mas no caso da Coreia do Sul, a intenção era construir, de pouco em pouco, um fenômeno, chamado de Hallyu ou “Onda Coreana”.
Com o surgimento e expansão do meio digital, a internet auxiliou na difusão dos produtos, artistas e da imagem próspera do país. O gênero musical k-pop, que mistura um pouco da música tradicional da Coreia do Sul com elementos de linguagem do pop mundial, viralizou nas redes sociais como o Twitter, Facebook, Youtube e o recente TikTok. Isso fica evidente nos números de consumo: o primeiro vídeo a bater um bilhão de visualizações no YouTube foi o clipe de “Gangnam Style”, do gigante do k-pop PSY, em 2012. Essa marca histórica fez com que o gênero musical sul-coreano rompesse a bolha e se popularizasse mundialmente.
A Onda Coreana e a estratégia do soft power não poderiam ficar resumidos à exportar apenas um produto, mas sim tentar atender a diversos públicos e mercados. Com esse processo, a indústria cinematográfica da Coreia do Sul, em 2020, conseguiu o êxito de ser a primeira do mundo a receber o prêmio principal no Oscar por uma produção não falada em inglês, com o filme Parasita de Bong Joon-ho. O sucesso internacional com os k-dramas, nome dado às produções dramatizadas do país, ficou escancarado em 2021, quando a produção sul-coreana Round 6 tornou-se a série mais assistida da maior plataforma mundial de streaming, a Netflix.
Infografia: Hugo Carrião e Yasmin Paulino
O k-pop é o produto mais rentável da Hallyu e um dos gêneros mais consumidos em grandes plataformas de streaming ao redor do mundo. Os grupos BTS e BLACKPINK são os maiores em alcance mundial e juntos somam mais de 30 bilhões de visualizações no YouTube. Outros nomes grandes atualmente são: TWICE, BigBang, EXO, dentre outros. O BTS, maior nome do k-pop (em números), levava, segundo dados de 2018, mais de 3,6 bilhões de dólares por ano para a economia do país.
As bandas são criadas por empresas privadas que funcionam como fábricas de super estrelas, chamadas de idols. Jovens (que devem corresponder a padrões de beleza reproduzidos na Coreia do Sul) buscam as empresas para tentar entrar em um banda e passam por anos de treinamento em academias especializadas na tentativa de serem escolhidos. O processo é rígido. É o que mostra o vídeo "How To Become A K-Pop Idol: Life As A Foreign Trainee" do canal CNA Insider, mídia focada em perspectivas asiáticas. Existem, também, artistas que propõem carreiras solo, mas não costumam alcançar tanto público. Infelizmente, esse método não é só conhecido por seus sucessos. Segundo alguns dados analisados pela Uol, existe um histórico de forte pressão psicológica nos artistas, que em alguns casos, desenvolvem transtornos psicológicos, como depressão e ansiedade. Tudo isso pode até levar a consequências gravíssimas, como o suicídio.
A pirataria é pop
Para além do universo digital, a popularização midiática de conteúdos culturais por meio da cooperação entre os fandoms, aqui já mencionados, possibilitou que os produtos ganhassem visibilidade mundial, alcançando países como Brasil, Indonésia e China, com uma ajuda extra: a da pirataria.
Com a evolução da tecnologia e da internet no mundo, o acesso às produções internacionais rompeu com a lógica do consumo apenas local. Desse modo, a pirataria foi, e ainda é, uma grande ferramenta de acesso à produtos culturais, apesar de sua ilegalidade. Segundo medições oficiais, “Round 6” da Netflix, foi a série mais pirateada do mundo em outubro de 2021 , e ela não é a única sul-coreana no ranking, seguida por “The Veil”.
No Brasil, a situação é a mesma. Para que os produtos culturais sul-coreanos alcançassem o sucesso que vemos hoje, a pirataria foi a principal porta de entrada. É através dela e dos fandoms nas redes sociais digitais, que o público consumidor desse nicho aumenta cada vez mais. Em 2020, o país chegou a ser o quinto maior consumidor de k-pop na plataforma Spotify e o segundo maior da América, atrás apenas dos Estados Unidos, segundo levantamento da empresa. Já no Twitter, os brasileiros também não ficam atrás: somos o sexto que mais tuitou sobre k-pop no mundo entre 2020 e 2021, segundo dados da própria empresa. A internet brasileira conta com uma enorme comunidade de fãs desse estilo musical, que já recebeu quatro shows do grupo BTS. O maior deles, em 2019, contou com mais de 40 mil pessoas.
Arte: Hannah Baudson
É claro que quando falamos de tantas pessoas consumindo e comentando sobre obras internacionais, que nem sempre são facilmente acessíveis (por motivos econômicos e distanciamentos geográficos ou linguísticos), existem outras soluções para manter esse engajamento. Todo esse uso e distribuição de conteúdos, muitas vezes, acaba mudando aspectos de produtos ou adaptando-os a outros públicos. Exemplos dessas alterações são os remixes, que, ao misturar músicas internacionais de sucesso com sons de ritmos dos países em que estão inseridos, buscam se aproximar do público local, criando novas expressões artísticas. Essa alternativa dá muito certo no Brasil, e os remixes chegam a viralizar, criando novos hits.
Para saber mais sobre remixes brasileiros de músicas estrangeiras, dá uma conferida no TikTok!
A empreendedora Lidiane Thamires, 23, consome doramas, nomenclatura dada às produções seriadas do japão, e que agrega um modelo audiovisual seguido por diversos países na Ásia, (não disponíveis em plataformas licenciadas) através dos fansubs - sites e plataformas produzidas por fãs de filmes, séries e dramas de diferentes países asiáticos. Ela mora em João Pessoa - PB, e administra sozinha a página Dorameiros BR, com mais de 30 mil seguidores no Instagram, onde comenta sobre os dramas que assistiu, faz memes e interage com seu público. Seja pelas publicações ou pelas mensagens que recebe na página, a jovem conta que é, muitas vezes, cobrada pelos seguidores a fazer postagens de doramas do momento, para que os internautas consigam conversar entre si sobre as produções. Este, inclusive, foi o motivo da criação do perfil, no início de 2020: dialogar com outras pessoas que também consomem esses conteúdos, já que não conhecia ninguém assim em seu círculo social.
Lidiane Thamiris sobre a influência da pirataria como ferramenta de acesso às produções de doramas no seu cotidiano
Além dos "dorameiros", os “kpoppers” ajudam a alimentar e disseminar a Onda Coreana através da internet. A carioca Lohane Pinheiro, 28, que mora em Florianópolis - SC, também é administradora de página, mas o seu intuito principal é divulgar o grupo BTS, adotando estratégias para fazer com que “os meninos” toquem nas rádios brasileiras. A BTSxBRAZIL possui cerca de 210 mil seguidores no Twitter e foi criada em 2017. Com o crescimento do projeto, Lohane sentiu a necessidade de subdividir a conta por regiões, que hoje possui quase 50 administradores de diversas partes do Brasil. Para Lohane, não é só uma paixão de fã. A página é levada muito a sério, pois possibilita o contato com diversas pessoas do meio e é uma oportunidade de crescimento. Ela conta que se encontrou na área profissional graças ao seu amor pelo BTS:
Lohane Pinheiro conta sobre sua experiência como sua experiência na produção de conteúdo para fã-clubes tornou-se sua profissão
Segundo dados informados pelo Ministério da Cultura, Esportes e Turismo brasileiro, a partir de pesquisa realizada pela Fundação Coreana para Intercâmbio Cultural Internacional entre setembro e novembro de 2020, o Brasil é o terceiro país do mundo e primeiro das Américas que mais consumiu doramas durante a pandemia de Covid-19. Foi quando essas produções audiovisuais dominaram completamente a vida e as telas da família Freitas, de Santa Luzia - MG, composta pela mãe Maria, 57, e as gêmeas Marina e Mariana, 22. Apesar dos doramas serem mais populares entre os jovens na internet, Dona Maria já acompanha os dramas e o formato de séries asiáticas desde 2017. Nesse caso, o movimento inverso ocorreu, com as tentativas da mãe influenciar suas filhas a assistirem. No entanto, as jovens começaram a consumir apenas em 2019, e se tornaram fãs em 2020, durante a pandemia.
Algoritmos e usos sociais
Desde o seu surgimento, em meados da década passada, o aplicativo chinês TikTok causou uma revolução na cultura digital, principalmente quando falamos sobre divulgação e consumo de música online. A plataforma não só redefiniu a forma com que consumimos música. Segundo a integrante do laboratório de pesquisa Lab404 e doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Amanda Nogueira, “quem utiliza aquela plataforma como local comercial passa a ter que produzir produtos de acordo com o que a plataforma requer”. Esse aplicativo é apenas um dos exemplos de algoritmos, que funciona de maneira particular, mesmo que existam semelhanças com outros, como aponta a pesquisadora.
Além do consumo, as novas demandas da plataforma também afetam diretamente a produção. Estratégias de arranjo, melodia e composição passaram a ser adotadas para que determinada música se torne "viral" e alcance o sucesso entre o público - majoritariamente da Geração Z - presente no site. Dados coletados pela empresa de IA Winnin Insights em fevereiro de 2021 sinalizam o impacto do TikTok no mercado musical. Entre as dez músicas mais ouvidas no Spotify no último ano, sete delas viralizaram no aplicativo antes de qualquer outra plataforma. O relatório também revela que dentre o TOP 5 de gêneros musicais mais consumidos pela geração Z, o pop coreano ocupa o primeiro lugar. O público do Brasil também faz parte dessa soma, já que em um levantamento feito pelo KPOP RADAR, um observatório de dados focado no k-pop nas redes sociais, em parceria com o próprio TikTok, o Brasil foi o quinto país a mais produzir conteúdos sobre o ritmo na plataforma (mais de 97 milhões de vídeos só desse tema) e os criadores brasileiros ficaram apenas atrás da própria Coreia do Sul.
A lógica de reprodução e recomendação dos algoritmos dá força para que uma cultura distante alcance um lugar de destaque em hábitos de consumo no mundo inteiro. Conforme explica a doutoranda Amanda Nogueira, existem dois aspectos para um modelo cultural estourar nas redes digitais. Primeiro é preciso um investimento em massa, para que sejam produzidas e distribuídas diversas obras. Depois dessa etapa entra a relevância e autonomia dos algoritmos e de plataformas variadas, para que esses conteúdos ganhem destaque nessas “comunidades globais”, como denomina a pesquisadora.
Os algoritmos são a porta de entrada que define a popularidade de temas nas redes sociais e, dadas as condições contemporâneas de relações de consumo no meio digital, essas redes representam em grande parte o que denominamos de comunidade global. Ao termos, grandes investimentos na produção de conteúdos que cativam comunidades de fãs e são reconhecidos assim pelos algoritmos, encontramos o grande êxito contemporâneo da indústria cultural, em produtos que são facilmente consumíveis, recomendáveis e reproduzíveis.
Isso demonstra que a influência cultural não está limitada apenas a produtos. Alexandre Uehara também cita que a procura por idiomas asiáticos como mandarim, japonês e coreano estão aumentando há anos, devido ao destaque dos países no mercado internacional. Um indicador disso é o caso da plataforma brasileira Letras.mus.br, que possui site e aplicativo voltados para a publicação de letras de músicas do mundo todo e suas traduções. Segundo a equipe de Moderação de Conteúdo do Letras, nos últimos anos, foram criadas vagas específicas para pessoas com nível avançado em coreano, vide o grande interesse dos usuários pelo aprendizado da língua, agenciado pelo consumo de conteúdos musicais nesse idioma. O site ainda desenvolveu uma plataforma de ensino de idiomas com músicas, que também traz o coreano como uma das opções.
E o Brasil?
Em 30 anos, os investimentos estratégicos da Coreia do Sul, fizeram com que suas produções circulassem em todo globo e colocassem em xeque hegemonias anteriores de dominação cultural. A indústria cinematográfica de Hollywood, que também seguiu a proposta de atender a interesses políticos de um país, bem como outros produtos culturais estadunidenses, percorreram roteiro semelhante no século XX. Agora, em tempo de explosão das mídias digitais, as ferramentas incorporadas ao algoritmo esquentam ainda mais a corrida pelos views.
Desenvolvida desde o início do século XX, a indústria de produção audiovisual dos Estados Unidos, conhecida como Hollywood, tornou-se a maior do mundo nas décadas que se seguiram. O soft power dessa indústria foi considerado por alguns estudiosos como uma forte ferramenta para a vitória do país na Guerra Fria, como defendeu o autor brasileiro Franthiesco Ballerini em seu livro “Poder Suave”, lançado em 2017.
O “poder suave” da cultura brasileira está relacionado a símbolos que costumam representar o país no exterior. A pesquisadora Naiane Batista cita o samba e as novelas como exemplos culturais nacionais exportados. Além disso, é possível pensar o futebol, o carnaval, o funk e mesmo a biodiversidade. Esses são ícones mundialmente famosos, que moldam a imagem do Brasil lá fora, atraindo turistas, investimentos internacionais e otimizando relações comerciais e geopolíticas; e já foram, em outros momentos da história, fortalecidos no exterior de maneira proposital. Um caso que exemplifica essa representação no exterior foi a internacionalização da bossa nova, que teve início no fim dos anos 50 e início da década de 60. Um ritmo que nasceu nas casas de classe média, na zona sul do Rio de Janeiro, com a intenção de se ter “uma nova maneira de cantar e tocar samba”, e que tempos depois se uniu ao jazz norte-americano. Com essa colaboração, artistas como Tom Jobim e Frank Sinatra, e João Gilberto e Stan Getz lançaram álbuns em parceria, aumentando ainda mais a visibilidade do estilo musical, da cidade do Rio de Janeiro - através de músicas como Garota de Ipanema - e do próprio país no cenário cultural internacional. A exportação foi gigantesca, chegando a ter discos vendidos nos Estados Unidos e diversos países da Europa e até mesmo na Ásia.
O mesmo levantamento da Winnin Insights citado anteriormente, que aborda os gêneros musicais mais consumidos no TikTok, mostra que o “Funk Brasileiro” se destaca como o quinto gênero musical mais ouvido pelos jovens da plataforma. Outra grande exportação são as telenovelas nacionais, que segundo dados, de 2021, da TV Globo, são consumidas em cerca de 150 países.
Segundo o pesquisador Alexandre Uehara, para se criar um plano como o do Hallyu, é necessário um investimento que vá muito além de injetar dinheiro nas produtoras culturais. É preciso uma logística de investimentos que envolvam todos os setores da economia do país, e da educação. Uehara considera que “quando você investe em cultura você aprimora a própria população, você capacita e dá mais informação para a própria população, e só por isso já vale a pena”. Isso revela que para exportar cultura é necessário investir nos meios de produção de bens culturais e formação intelectual da população.
O pesquisador explica que na história da recente política democrática do Brasil, nenhum governo se destacou pela capacidade de planejar, direcionando à cultura, a longo prazo, e sim, para seus mandatos. A exportação de telenovelas para a América do Sul, Oriente, Europa e outras regiões se deu de forma mais privada que governamental. A telenovela "Avenida Brasil" (2012), da TV Globo, foi a produção mais recente a alcançar grande destaque internacional e possui o título de novela brasileira mais exportada: foi transmitida em 148 países. Outras grandes produções muito exportadas pelo Brasil, segundo dados da Rede Globo, são "Totalmente demais" (2015) televisionada em 135 países, "A vida da gente" (2011) em 132, "Caminho das índias" (2009) em 117, "Da cor do Pecado" (2004) e "O Clone" (2001) em 107 países.
Os hits musicais de funk “Bum Bum Tam Tam” (2017), de MC Fioti e "Vai Malandra” (2017), da cantora Anitta, também tiveram um impacto enorme no cenário cultural global. No entanto, pensando no mercado internacional e na trajetória desses artistas (que não tiveram nenhum tipo de investimento estatal destinado a investir em suas carreiras) o sucesso dos hits é pontual e decorrente de investimentos pessoais, e aponta que ainda estamos longe de uma onda cultural brasileira.