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Foto: Anthony Christian Fernandes

A autodeclaração é de extrema importância no processo de ingresso dos cotistas na universidade, mas não é suficiente para fazer com que esse processo seja correto. “A partir do momento que você oferece um benefício público à sociedade, há uma tendência de que todos irão acessar esse benefício. Se ele for apenas eu quero, eu sou, eu me incluo e pronto, há uma tendência que se perca a seriedade na concessão desse benefício. A autodeclaração é importante, mas ela não basta por si só para resolver esse problema”, explica Vitorelli.

Na UFC, no ano de 2022, foram implementadas melhorias no sistema da Lei de Cotas. Segundo informações da universidade publicadas pelo G1, foram enviados 2.326 vídeos para a autodeclaração e 2.130 apresentaram veracidade (91,5% do total). Os 196 candidatos que não tiveram os vídeos aprovados na primeira fase passaram pela banca de heteroidentificação e, após a análise fenotípica dos candidatos, 69 se encaixaram nos pré-requisitos, 127 casos foram indeferidos, mas puderam recorrer do resultado.

 

Segundo Edilson, a análise dos fenótipos acaba sendo uma solução para uns e um problema para outros. Após realizar pesquisas com especialistas no assunto, o professor afirma que todos citam ser esta uma questão delicada para se tratar. Levando a seguinte situação em conta, a Lei 12.990/2014 (Lei de Cotas em Concursos Públicos), em seu Art. 2.º, parágrafo único, determina que: "Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis".

Realizando um panorama das situações em que ocorreram fraudes por parte de pessoas brancas, a maioria se deu em cursos elitizados e bastante disputados como Medicina, Direito, Odontologia e as Engenharias. Por possuírem notas elevadas e alta concorrência por vaga, os fraudadores veem as cotas como uma oportunidade mais fácil de ingressar na universidade. No ano de 2021, de acordo com dados do Sindicato dos Trabalhadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Sintufrj), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) expulsou 21 alunos de Medicina, do quarto ao décimo período, sob acusação de terem fraudado o sistema de cotas.

Fraudes e dificuldade do processo de heteroidentificação são obstáculos para o aperfeiçoamento da política de cotas no Brasil

Camila Chaves, Lívia Santesso, Lucas Barbosa e Rúbia Mansano

Junho 2022

A Lei 12.711/2012, ou Lei de Cotas, foi criada em 29 de agosto de 2012 com o intuito de fornecer oportunidades e acesso em instituições públicas para pessoas negras, pardas e indígenas que possuem baixa renda familiar ou são estudantes de escolas públicas. Desde o início, contudo, sua aplicação sofre com a ocorrência de fraudes na destinação das vagas reservadas.  


A existência de fraudadores dentro do sistema prejudica o cumprimento dos objetivos da Lei de Cotas. Quando a Lei entrou em vigor, as universidades não tinham tantos recursos para afirmar o que era ou não fraude e a fiscalização era pouca ou quase nenhuma. A presença de negros no ambiente acadêmico foi crescendo gradualmente e a necessidade de ampliar o ingresso dessas pessoas na universidade não agradava a todos. Segundo Hilário Ferreira, professor na Faculdade Ateneu (Iseat) e Mestre em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC), a Lei de Cotas foi feita para corrigir uma falha dentro da universidade pública, pois muitas pessoas negras ou pardas não tinham acesso a um direito que é de todos. De acordo com ele, as fraudes começam desde a falsa autodeclaração até a manipulação nas bancas de heteroidentificação, formada por pessoas capacitadas a avaliar os fenótipos dos candidatos, que foram criadas para ter um controle maior de quem entra na universidade utilizando as vagas destinadas para cotistas. Segundo o site UnB Notícias, em 2020, houve expulsões de alunos por conta de fraude nos cursos de Direito (quatro), Medicina (quatro), Ciências Sociais (três), Letras-Francês, Ciências da Computação, Engenharia de Software e Medicina Veterinária (todos com um caso, respectivamente). 

Sendo um meio de identificar se os candidatos e candidatas que entram nas instituições por meios das cotas se enquadram nos parâmetros adequados, as bancas de heteroidentificação sofrem um problema prático no momento de avaliação. De acordo com Edilson Vitorelli, Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), tanto as bancas que avaliam quanto os candidatos que se autodeclaram se perdem quanto à falta de critérios definidos para o enquadramento nas cotas: “Temos uma primeira questão: a pessoa que se autodeclarou negra utilizou quais critérios para isso? Tendo em vista que os editais não estabelecem critérios definidos para essa realização, assim como não existem critérios nos editais para que essas bancas avaliem os candidatos[...], existe uma subjetividade no processo.”

Devido a essa subjetividade, envolvendo os candidatos e as bancas de avaliação, assim como a falta de critérios definidos nos editais, o maior problema das fraudes incide sobre os autodeclarados pardos: “Existem as pessoas que claramente merecem as cotas e outras que claramente não merecem as cotas. O problema está no meio, tendo o risco das declarações de pessoas que de fato são negras serem invalidadas e também o risco de declarações de não negras se manterem em virtude da aprovação das bancas”, declara  Vitorelli.

A Lei de Cotas também afeta os ingressantes quando pessoas que realmente podem utilizar o recurso acabam tendo sua solicitação negada. Na UFPE, segundo notícia publicada no Portal G1 Pernambuco, no dia 22 de março de 2022. A estudante Williane Muniz, 21, que passou no curso de Medicina através das cotas para pessoas pardas, teve sua matrícula indeferida após avaliação da Comissão de Heteroidentificação da universidade. A estudante entrou com dois recursos no Ministério Público, mas foram negados. Segundo a Comissão, informa a matéria do G1, a estudante não se encaixa nos fenótipos avaliados como cabelo, nariz e lábios.

Com essa dificuldade explícita, tanto pelas bancas de avaliação quanto pelos candidatos que utilizam do termo pardo para ingressarem em universidades e concursos públicos, Hilário Ferreira ilustra a realidade daqueles considerados pardos: “mergulhando historicamente, o pardo está associado primeiramente aos povos indígenas, tendo o termo aparecido pela primeira vez na carta de Pero Vaz de Caminha, referido aos índios do nordeste, chamados de negros da terra. Logo depois, em 1872, no primeiro censo demográfico, identificando os negros livres, então, o pardo está associado às pessoas de pele não branca, ao amarronzado, como o próprio pardal”.

AS BRECHAS DA LEI

Bancas de heteroidentificação

Autodeclaração

Fraudes

Com a grande influência das redes sociais, internautas decidiram utilizá-las para expor estudantes que fraudam as cotas raciais. Com o intuito de diminuir as injustiças causadas pela grande quantidade de casos e estimular que a população denuncie as irregularidades, alguns tweets acabaram alcançando grande público no ano de 2020.

"Algumas pessoas não estão entendendo, então vim esclarecer! Quando eu disse 'roubou a vaga' eu me refiro a fraude de cotas raciais! Não que uma pessoa branca não tem direito de estudar numa federal. Ela tem sim. Desde que não entre por uma cota que não foi destinada a ela!" 02/06/2020, 10:12. Tweet.

“A ausência de debates sobre relações raciais, tanto nas universidades quanto em todos os espaços de convívio social, é o grande portão onde a branquitude está se segurando e passando para ingressar em processos seletivos”, declara Hilário Ferreira. Dessa maneira, a apropriação do discurso de pardo, por meio da autodeclaração, se torna algo comum: “Eu já estive em várias situações, uma vez entrou para ser avaliada pela banca, uma loira, branca, com várias pastas nas mãos e disse que era negra porque sua avó tinha sido escrava, imediatamente eu fiz as contas, para a avó daquela menina ter sido escrava ela teria que ter nascido antes de 1871, ou seja, sua mãe teria mais de 100 anos, isso entre tantos outros casos”. 

Durante os anos de funcionamento da Lei de Cotas no país, inúmeras pessoas utilizaram as ações afirmativas para facilitar o ingresso nas universidades e concursos públicos burlando o processo: “O que eu vi muitas vezes foram brancos se dizendo negros, e a grande problemática é que não existe um debate profundo dentro do Ministério Público, das universidades, dos partidos, assim, os fraudadores encontram um campo muito fácil, ou seja, a branquitude se articula para burlar, para impedir essa conquista dos povos negros”, comenta Hilário. 

De acordo com a advogada Júlia Valente, sócia do escritório Valente Reis Pessali, os casos de ocorrência de fraude devem ser encaminhados pela universidade para o Ministério Público, que deve investigá-lo e formalizar a denúncia. “Não existe crime específico de fraude às cotas raciais. A depender do caso, o aluno pode ser acusado do crime de falsidade ideológica (Art. 299 do Código Penal), com pena de reclusão, de um a cinco anos, e multa,” afirma a advogada. O aluno, nesses casos, pode ser processado não só criminalmente como também civilmente. Em alguns casos, pode ocorrer do estudante ter que ressarcir aos cofres públicos o dinheiro investido no tempo em que ele, indevidamente, permaneceu na universidade. Porém, o fato de ter um processo administrativo não impede o aluno de frequentar as aulas. 

Com as vagas reservadas aos cotistas sendo ocupadas por candidatos que não possuem as características exigidas, os grupos que se encontravam às margens do direito à universidade e concursos públicos continuam sendo prejudicados por brechas legais, que geram impunidade. Mesmo após dez anos de atuação, com diversas modificações e aperfeiçoamentos, a Lei ainda é questionada, tanto pela sociedade civil quanto pelas instituições, devido às falhas ao designar quem se adequa às condições necessárias para usufruir dele. “O problema prático é que o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] não estabelece quem são as pessoas negras, pardas, brancas e indígenas, deixando a critério do cidadão se adequar a uma destas alternativas. Assim, surge uma dúvida, tanto dos candidatos às vagas quanto das bancas de heteroidentificação, sobre quem se adequa a determinada cota,” destaca Edilson Vitorelli.

A Lei prevê que 50% das vagas em Universidades e Institutos Federais sejam destinadas para alunos de escola pública, sendo 25% reservadas para estudantes com renda de até 1,5 salário mínimo per capita e 25% aos que possuem renda familiar maior que 1,5 salário mínimo per capita. Referente às cotas raciais e de deficiência, a proporção das vagas reservadas é de acordo com a quantidade de pessoas declaradas nesses grupos, em cada Estado em que a instituição está inserida, segundo os dados do IBGE.

Denúncias

Informações disponibilizadas no site da JusBrasil explicam que após a existência de uma denúncia, uma sindicância deve investigar os fatos e apurar a sua autoria. Essa investigação pode resultar no arquivamento do processo ou na instauração de um processo disciplinar dentro da instituição em questão. 

No caso das universidades públicas, quando ocorre uma denúncia, a Reitoria deve designar uma Comissão para apurar os fatos narrados na denúncia em um prazo de 60 dias. Nesse período, o aluno deve ser ouvido e prestar seu depoimento junto à Comissão. Em seguida, a Comissão elabora um relatório final e o processo vai para a Procuradoria da universidade, para ser analisado. Com a resposta da Procuradoria, a Reitoria determina se haverá ou não a instauração do Processo Administrativo Disciplinar (PAD). Esse processo consiste na fase de instauração, inquérito administrativo, defesa do acusado e relatório da Comissão. Durante esse período, ainda serão tomados novos depoimentos, realizadas as diligências necessárias e colhidas as provas, técnicas e perícia, visando a elucidação dos fatos e o aluno pode acompanhar esse processo juntamente de um advogado. Após o recolhimento das provas, o acusado deve apresentar uma defesa escrita, com um prazo de 10 dias. A partir disso, a Comissão elabora um relatório que conclui a inocência ou responsabilidade do aluno pela fraude. Este relatório será remetido à Reitoria que julgará se o aluno será ou não desligado, aplicando as sanções disciplinares cabíveis.

No caso de fraudes em concursos públicos, no dia 16 de dezembro de 2011, a Lei 12.550/11 entrou em vigor no país. Ela tornava crime fraudar concurso público, com penas que podem chegar a oito anos de reclusão e multa para infratores. Dentro dos casos, os mais comuns são: venda de gabaritos ou provas, vazar informações, falsidade ideológica, manipulação de notas, utilizar meios eletrônicos para conseguir respostas ou receber privilégios. As denúncias são diferentes das universidades públicas: ao presenciar um ato fraudulento, pode-se ir ao Ministério Público, Delegacia de Polícia, Polícia Civil.

Como denunciar

O site Fala.Br, do Governo Federal, é uma plataforma destinada a ouvidorias e informações públicas. Dentro dele existem as seguintes opções: acesso à informação, denúncia, elogio, reclamação simplificada, solicitação e sugestão. Todas elas são destinadas aos órgãos públicos e qualquer pessoa que tenha acesso ao gov.br pode utilizá-lo. Na aba “denúncia” qualquer pessoa pode falar sobre atos ilícitos praticados contra a administração pública, incluindo denúncias de fraudes. O site também disponibiliza todas as informações públicas para quem solicita o acesso.

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As fraudes se dão quando pessoas que não se enquadram nos grupos destinatários das cotas burlam o sistema e ocupam as vagas reservadas. Como medida de barrar esse problema, as bancas de heteroidentificação começaram a ser aplicadas nas universidades por conta do alto número de fraudadores. Elas são voltadas para pessoas que ingressam nas universidades pelas cotas raciais, tornando-se um processo complementar à autodeclaração de pessoas pretas, pardas e/ou indígenas. A UFC cancelou 13 matrículas entre 14 estudantes denunciados, em 2019. Quando convocados para a banca de heteroidentificação, apenas um foi considerado cotista. No mesmo ano, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), 188 estudantes entraram com recursos porque não tiveram a autodeclaração racial validada pela instituição, como informa a universidade em seu site

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