Em um país soberano, a educação deveria figurar entre os principais destinos do investimento governamental. Entretanto, temos, no Brasil, um cenário completamente oposto a essa expectativa. Uma das maiores provas disso é o caso recente envolvendo o cantor Gusttavo Lima, que foi contratado pela Prefeitura de Conceição do Mato Dentro, MG, para fazer um show que, se não tivesse sido cancelado, custaria R$1,2 milhão para os cofres do município. Para efeito de comparação, o salário médio de um professor do ensino básico II no município, de acordo com o último edital publicado pela Prefeitura, gira em torno de R$25,86 por hora/aula. Basicamente, com o dinheiro que seria gasto no show, a prefeitura da cidade conseguiria custear mais de 46 mil aulas de um professor do ensino fundamental.
Foto: Guilherme Bergamini
Zara Tripodi, professora do Departamento de Educação da Ufop
O sucateamento da educação pública ao longo do anos, no Brasil, aponta para um projeto de desmonte no ensino fundamental, médio e superior, dificultando a democratização da educação
Carolina Lobo, Danielle Herculano, Leonardo Grein e Rodrigo Nassif
Junho 2022
DESMONTAR. É claro que você já ouviu esta palavra. Quando os primos ou o irmão mais novo destruíam todo o corredor de dominós que você passava horas fazendo; ou quando seus pais te pediam para tirar peça por peça da sua torre de seja-lá-o-que-for, para guardar tudo na caixa, novamente:
— Desmonte! – diziam eles.
Oito letras, três sílabas e, hoje – principalmente – um significado que vai muito além das brincadeiras de crianças.
“Esse é um conceito muito delicado, porque ele pode se virar contra a gente. Se você usa as palavras para qualquer coisa, quando você precisa da palavra exata, ela já perdeu o efeito”, é o que diz Zara Tripodi, professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), sobre o tão falado desmonte da educação. De acordo com ela, o sentido deste termo se resume a dois pontos: desconstruir o que já estava sendo construído; e deixar que certas políticas permaneçam como estão, mesmo quando há a necessidade de avanço.
O mau direcionamento de investimentos é um problema que atinge os mais diversos níveis da educação pública no Brasil: nas creches, faltam vagas; no ensino fundamental e médio, os estudantes lidam com a falta de professores; e, já no ensino superior, o sucateamento se dá nos cortes de orçamento em pesquisa, extensão e auxílios que garantem a permanência dos alunos nas instituições de ensino.
Da pré-escola às universidades, a negligência histórica dos governos municipais, estaduais e federal para com o ensino pode ser observada pelos mais diversos vieses: dos baixos salários dos docentes até a falta de papel higiênico nos banheiros das escolas. É na educação básica — do ensino infantil ao médio — que os jovens deveriam adquirir a base de conhecimento necessária não apenas para ingressar no ensino superior ou no mercado de trabalho, mas para se tornarem cidadãos críticos e conscientes.
Para Pedro Camargo, professor de Ciências Biológicas do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) de Piumhi, MG, e um dos coordenadores do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe), essa é a principal motivação da arquitetura que configura o desmonte. “Se eles aprendem a pensar, aprendem a se identificar dentro da luta de classes enquanto classe dominada, classe essa que precisa buscar sua emancipação. A partir daí, é muito mais difícil qualquer patrão conseguir fazer lavagem cerebral na cabeça deles”, afirma o professor.
EFEITO DOMINÓ
A falta de investimento em materiais é uma das formas do desmonte da educação /
Foto: Leonardo Grein
A Lei nº 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, tornou as universidades muito mais acessíveis e, pouco a pouco, está fazendo com que elas representem mais a população brasileira em termos raciais e socioeconômicos. O sucesso deste tipo de política afirmativa, no entanto, nos faz questionar a ausência de ações parecidas para melhorar os indicadores do ensino básico e reduzir a desigualdade educacional.
De acordo com dados de 2019 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os alunos de escolas públicas representam 80% dos estudantes de ensino fundamental e médio. Até por isso, soa ilógico querer destruir algo que demonstra tamanha importância para o país. Porém, o desmonte da educação, de “sem sentido”, não tem nada: assim a construção da torre de Lego possuía toda uma logística, peça por peça, todas milimetricamente calculadas, a crise da educação também é um projeto, e não uma casualidade — parafraseando o ex-Ministro da Educação no Brasil, Darcy Ribeiro.
Pedro Camargo, professor do IFMG/Piumhi e um dos coordenadores do Sinasefe
"Nada causa mais medo, à elite, do que o pobre que sabe pensar"
Pedro Camargo, professor do IFMG/Piumhi e um dos coordenadores do Sinasefe
A importância da Lei de Cotas
Não há quem não conheça a Lei de Cotas, uma das principais políticas afirmativas da educação brasileira. Foi sancionada em 2012, durante o governo da presidenta Dilma Rousseff, e determina que metade das vagas dos cursos superiores de Universidades e Institutos Federais devem ser destinadas a alunos que realizaram o ensino médio em escolas públicas do país. Dentro desta fatia, 50% das matrículas devem contemplar estudantes de famílias com renda mensal de até 1,5 salário mínimo per capita. Também são destinadas vagas, desta porcentagem, para alunos autodeclarados pretos, pardos, indígenas ou com deficiência.
Não basta apenas abrir vagas nas universidades. É preciso garantir, também, que esses alunos tenham condições de chegar a elas. As cotas ajudam a remediar muitas das defasagens encontradas na educação pública brasileira, mas estão longe de serem suficientes para compensar todos os ataques causados pelo desmonte ao longo dos anos.
Portanto, para pensar em um futuro no qual a desigualdade educacional se torne apenas uma memória distante, precisamos de ações concretas. As políticas públicas que tornaram a educação superior mais acessível devem ser pensadas para a educação básica. Afinal, um prédio, sem uma estrutura forte, desmonta.
"Você tem que dar mais para quem tem menos"
Zara Tripodi, professora da Ufop
O frágil edifício da educação brasileira
O processo de desmonte da educação pública ao longo dos anos é um efeito dominó /
Foto: Carolina Lobo
Quando brincamos de Jenga — aquele jogo em que temos que retirar os blocos de madeira de uma torre, sem derrubá-la — muitas vezes, as peças desmoronam pelo descuido de um dos jogadores. Mas, por vezes, fatores que vão além do controle das pessoas — como o vento, por exemplo — também podem abalar as estruturas e provocar um desmonte.
A metáfora casa muito bem com o impacto causado pelo coronavírus na educação do Brasil. Poucas coisas poderiam ter mostrado tanto a falta de preparo do sistema educacional brasileiro quanto uma pandemia. De acordo com dados do Instituto Ruy Barbosa (2021), quase 10 milhões de alunos estudam em escolas com problemas de infraestrutura que vão desde a falta de sabonetes líquidos para lavar as mãos até a falta de água potável para o consumo.
Neste cenário, falar de acesso à internet parece, infelizmente, a menor das prioridades. Entretanto, às pressas, com pouquíssimos recursos e em baixas condições, garantir que os alunos e professores tivessem meios de acessar as aulas on-line tornou-se uma urgência repentina. Na realidade pandêmica de ensino remoto, as casas tornaram-se as novas salas de aula e, não diferentemente, a situação, nelas, também é desigual. Um estudo do Comitê Gestor da Internet do Brasil (2020) mostrou que cerca de 19% da população brasileira com mais de 10 anos não tem acesso à internet.
A estudante Laura Iasinsthii completa que “o ensino remoto foi desesperador, você está fazendo aquilo não porque você está aprendendo, mas porque você tem que fazer. Eu passei no oitavo ano com 100% em tudo, e não aprendi nada. Foi porque eu tinha que fazer. ‘O que eu vou fazer depois?’ ‘Como eu vou entrar no ensino médio?’ No nono ano eu estava preocupada com isso, [...] quando nem as pessoas que administram isso aqui estão preocupadas com a gente.”
A professora Zara Tripodi afirma: “não adianta gastar, você tem que saber a qualidade do gasto”. De acordo com ela, o ciclo de sucateamento da educação pública, no Brasil, é interminável, seja no cenário antes, durante ou “pós-pandemia”. “Durante esses dois anos era preciso ter investido na infraestrutura das escolas, tinha que ter investido na formação desses professores para explicar para eles como deveria ser o desenho pedagógico do retorno, para que tentasse recuperar minimamente aquilo que já era horrível antes da pandemia, e isso não foi feito. Portanto, o que nós temos cruamente é uma intensificação das desigualdades que já existiam, sobretudo para grupos que nós já sabíamos que são os grupos mais prejudicados por fatores que eles não escolhem — nível socioeconômico e raça”, completa.
A falta de preparo sentida pelos alunos, durante o ensino remoto, teve impacto direto no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que é, hoje, uma das principais formas de avaliação e ingresso dos estudantes nas Universidades Públicas (e algumas particulares) do Brasil.
Um estudo divulgado em 2021, realizado pela Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação (Semesp), apontou queda de 77,4% no número de inscritos no Enem de 2020 com renda mensal de até três salários mínimos, em comparação com a última prova, de 2019. Em números absolutos, 2,8 milhões de estudantes não realizaram o exame.
Também houve a queda de 239.577 matrículas dos alunos classificados para a “inscrição gratuita” do Enem — por lei, são contemplados aqueles que concluíram o ensino médio em escola pública ou são bolsistas integrais em escolas particulares.
Cassiano Amorim, Pró-reitor de Graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), avalia que quanto mais estudantes participam do Enem, mais democrático é o acesso ao ensino superior. Ele ressalta que, para além das defasagens educacionais causadas pela pandemia, uma das razões para o exame ter sido mais “elitista” — ou seja, com menos participação de classes desfavorecidas — são os custos com a logística para a realização da prova, com os quais muitos estudantes não conseguem arcar: “O Enem foi reorganizado; ele não é feito mais em um único fim de semana e, sim, em dois finais de semana. É importante considerar que nem todos os municípios brasileiros têm o Enem, são só os municípios maiores; então, os estudantes de municípios menores têm que se deslocar para outras cidades para fazer a prova”.
Além do menor número de inscritos, houve uma queda na nota de corte de muitos cursos, o que reforça, em linhas gerais, que o nível de preparo dos estudantes que realizaram a prova foi, de fato, menor em comparação com anos anteriores. Agora, com os estudantes ingressados na Universidade, a preocupação do pró-reitor é, também, a de como suprir essas defasagens educacionais, que eventualmente refletirão no percurso do aluno dentro da graduação.
Ascensão do ensino privado
O ensino remoto é marcado pela desigualdade educacional / Foto: Leonardo Grein
Enquanto o número de matriculados nos cursos superiores das instituições públicas de ensino diminuiu, a modalidade à distância, ofertada majoritariamente pelas particulares, representou 53,4% das matrículas, dentre os 3,7 milhões de ingressantes nas instituições públicas e privadas de todo o país.
“As defasagens educacionais no Brasil, que já eram grandes antes da pandemia, são agravadas durante este período, não há dúvidas disso”, afirma Leonardo Ribeiro. O empobrecimento da população durante a pandemia é, também, para o técnico do IFMG/Santa Luzia, um dos principais motivos para a ascensão do ensino particular, especialmente na modalidade EaD. “A gente tem instituições privadas que oferecem cursos a R$169,00 mensais. E R$169,00, mensalmente, acaba sendo mais barato para o estudante que precisa se manter, considerando alimentação, transporte, vestimenta, compra de material etc. Mesmo que os IFs e a universidade tenham políticas de acessibilidade aos materiais didáticos, o estudante precisa comprar uma ou outra coisa, não dá pra gente pensar que ele tem 100% de acesso a tudo isso”, completa.
“A escola não ajudou com nada na pandemia. Eles não dão recurso nenhum pra gente”
Laura Iasinsthii, aluna do ensino fundamental da Escola Estadual Dom Silvério
Seis anos depois, em 2022, professores, estudantes e outros profissionais que atuam na linha de frente da educação básica, já conseguem sentir os efeitos demolidores da PEC nas bases do ainda frágil edifício da educação brasileira.
O técnico em assuntos educacionais do IFMG/Santa Luzia, Leonardo Ribeiro, conta que, no Instituto, o cenário tem sido caótico: “nós tivemos um crescimento no número de estudantes; de matrículas; no número de cursos e isso impacta diretamente na demanda por um serviço de qualidade”. Ao mesmo tempo, explica: “O orçamento do IFMG do ano passado sofreu uma redução da ordem de R$10,7 milhões, fazendo com que o IFMG tivesse, no ano de 2021, um orçamento que é o mesmo de 10 anos atrás”.
“PEC do Teto de Gastos”, “PEC do Fim do Mundo” ou “PEC da Morte”: estas foram as nomenclaturas adotadas por aqueles que se opunham à Proposta de Emenda Constitucional que previa o congelamento dos gastos públicos com áreas essenciais pelos próximos 20 anos. A proposta, colocada em pauta em 2016, durante o governo de Michel Temer, previa que as despesas com educação, saúde e previdência, dentre outras áreas básicas, seriam corrigidas apenas pelo percentual da inflação: ou seja, não haveria novos e mais altos investimentos, nem mesmo para a correção do aumento populacional do país.
No mesmo ano, a PEC 241 foi aprovada no Congresso e no Senado e renomeada Emenda 95, passando a integrar o ordenamento jurídico nacional. Para tornar o cenário ainda mais assustador, em 2019, foi publicado o relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que analisou o desempenho em educação dos 36 países integrantes da entidade, além de parceiros como Brasil e China. O documento, que avaliou dados de 2016, apontou que o investimento por aluno, no Brasil, é em média três vezes menor que o dos países avaliados.
Boa vontade dos professores não basta
Além dos investimentos, um outro pilar fundamental da educação são os professores, aqueles que lidam diretamente com os estudantes que construirão o futuro de nosso país. Não por acaso, eles também são um alvo do projeto de desmonte.
No relatório da OCDE de 2019, é possível observar que, quando comparado à remuneração anual dos outros países participantes, os professores brasileiros recebem um salário consideravelmente mais baixo, cerca de metade da média dos demais.
A situação, é claro, varia de acordo com o local e escola, mas é inevitável não pensar no quanto estes números são preocupantes para um país que já se proclamou “pátria educadora”. De acordo com a professora Zara, um dos maiores impactos do desmonte é que ele afasta os professores mais qualificados de onde eles são mais necessários. Ela relata que a educação pública básica “não é atrativa, porque o salário é baixo, então ela não atrai as melhores cabeças [...] ela atrai os profissionais que querem fazer bico ou que não estão interessados na educação”.
Zara Tripodi, professora do Departamento de Educação da Ufop
E quem mais sofre com isso, evidentemente, são os próprios estudantes. Laura Iasinsthii, Gilberto Silva e Brenda de Jesus, alunos do primeiro ano do ensino médio da E.E Dom Silvério, em Mariana, contam que já estão acostumados a serem aprovados em disciplinas que não aprenderam nada. Gilberto, 15, diz que “em um mês, só tivemos uma aula de inglês e a professora sumiu”. Brenda, 15, ainda ressalta que, no momento da entrevista, “deveríamos estar tendo aula de inglês, e ela [a professora] não está aqui”.
A solução da escola para isso, segundo os estudantes, é simplesmente facilitar a aprovação dos alunos dando para eles a nota média. No tempo das aulas de inglês, os alunos ficam sob a supervisão da bibliotecária ou de outro professor e ocupam-se conversando entre si e jogando UNO [jogo de cartas]. Será mesmo que este tipo de aprovação os torna aptos a ingressarem nos próximos anos do ensino médio? E no ensino superior? A estudante, Laura, 15, responde: “O ensino médio deveria ser uma base e ultimamente não está sendo.”
Cursinho: alternativa possível
Neste cenário, em face às inúmeras barreiras encontradas por estudantes da rede pública para o aprendizado no ensino básico, aos que desejam uma educação de qualidade e que aumente suas chances de ingresso no ensino superior, só restam duas alternativas: estudar por conta própria ou recorrer aos famosos cursinhos pré-vestibulares.
Estes cursos são oferecidos tanto por redes privadas de ensino quanto por associações comunitárias ou projetos de extensão dentro de universidades públicas. Além dos alunos de baixa renda, inúmeros estudantes da rede particular, principalmente os que almejam cursos das chamadas carreiras imperiais (Engenharias, Direito e Medicina), procuram os cursinhos para aumentar suas chances nos vestibulares mais concorridos.
Entretanto, o paradigma que envolve a demanda incessante por estes cursinhos também está diretamente relacionado à incapacidade da educação pública brasileira em preparar os jovens para os principais vestibulares do país. Uma pesquisa realizada pela Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), em 2013, já apontava que, dentre os mais de 10 mil estudantes aprovados na Universidade de São Paulo (USP) naquele ano, 62,5% fizeram algum tipo de curso preparatório para as provas.
Para a estudante de engenharia, Júlia Evenny, 18, o cursinho comunitário foi uma etapa fundamental antes de sua aprovação na Ufop. Segundo ela, se não fosse o cursinho Humanista, onde estudou, não ia saber nada: “Primeiro que eu ia esquecer tudo que eu havia visto no segundo ano [por causa do tempo em que as aulas foram paralisadas] e eu não ia ter nada das matérias do terceiro que eu deveria ver por conta da pandemia”.
Atualmente, Júlia atua como bolsista no mesmo cursinho e reconhece o valor deste tipo de iniciativa para os jovens de escolas públicas. O Pré-Vestibular Humanista é um cursinho comunitário oferecido pela Ufop, em parceria com a Fundação Gorceix.
Pandemia: sempre pode piorar
A falta de acesso a computadores foi um dos principais obstáculos do ensino durante a pandemia / Foto: Leonardo Grein