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Clara Lopes, Leiriane Silva e Thayane Santos

Junho 2022

Com a revisão da Lei de Cotas prevista para 2022 e os debates que cercam esse tema dentro e fora das universidades, é necessário compreender o motivo da existência dessa Lei e por quê ela se torna tão essencial dado o racismo estrutural que cerca o país. Para entender alguns pontos desse tema, a Curinga conversou com Izabel Accioly, mulher negra, pessoa com deficiência (visão monocular), ativista feminista interseccional e antirracista. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC), em 2018 foi a primeira aluna a ingressar pelo edital de ações afirmativas no Mestrado em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É pesquisadora do Núcleo de Estudos em Raça e Interseccionalidades UFC/UNILAB, voltado para pesquisas sobre raça, racismo e antirracismo no contexto brasileiro.

Nessa entrevista, Izabel aborda pautas que permeiam a Lei de Cotas e traz explicações e questionamentos sobre o seu funcionamento. Ela comenta sobre como a branquitude e seus privilégios dificultam o ingresso e a permanência de pessoas não brancas na universidade e a ausência de bibliografias negras nas ementas dos cursos, importantes para questões de pertencimento. A luta antirracista, que deve ser feita por todos os invíduos, independente de raça, é abordada pela pesquisadora — das primeiras ementas e iniciativas que contemplam ações afirmativas, passando pela Lei de Cotas dez anos depois.

Curinga: Em suas discussões sobre o privilégio branco, você ressalta a existência de um discurso de pessoas brancas contra as cotas por julgá-las como um “privilégio” para os negros. Qual a sua opinião sobre esse debate, que persegue não só estudantes, mas a população negra em geral?

Izabel: É importante afirmar o seguinte: dia 13 de maio de 1888, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, nós pessoas negras mudamos de estado. Saímos de pessoas escravizadas para empobrecidas, não tivemos nenhuma política de reparação. A gente simplesmente mudou o nome, trocou a senzala pela favela, mas nada foi efetivamente feito para que a gente saísse da faixa mais baixa da pirâmide social. Então, mudam-se os nomes, o sistema escravocrata acaba, mas existem permanências na história do povo negro.


As Leis de Cotas são leis de reparação histórica, que reconhecem que existe uma defasagem de séculos com o povo negro brasileiro. A política de cotas, que acontece com as pessoas negras atualmente, com um número reservado de vagas em concursos públicos e no SISU, não é novidade. Quando a imigração de pessoas brancas, europeias, foi incentivada aqui no Brasil, essas pessoas receberam cotas. As cotas já existiam! E as pessoas não achavam ruim. Agora, quando as pautas são voltadas para as pessoas negras, é um grande problema. O nome desse grande problema é racismo.

Eu vejo que a diversidade enriquece, amplia e multiplica os nossos olhares. Quando a gente tem também referências diversas, a gente consegue se aproximar de pontos de vista diferentes dos nossos e isso é maravilhoso! A gente cresce no contato com o outro, não no contato com o igual. Se eu encontrar com outra Izabel ela vai me contar coisas que eu já sei, eu posso me sentir muito bem representada, encontrar com ela e achar ótimo. Porém, crescer, crescer mesmo, a gente cresce quando encontra o diferente, começa a ter contato com o outro e esse outro nos força a olhar para uma realidade sequer conhecida.

 

No ambiente acadêmico, mesmo ele sendo um espaço de luta contra questões de intolerância, existe a questão do racismo estrutural. Você acha que é possível acontecer uma mudança mais feroz nessa causa a partir das universidades? Como?

 

O negro entra na universidade, mas ele entra em um ambiente branco. E aí, a inegável hierarquia entre aluno e professor compromete que o professor aprenda com o aluno. Essa branquitude acadêmica é a resistência que os professores têm em abraçar essa mudança. Quando eu encontro alguém muito resistente, eu costumo dizer que é daqui para mais, a gente não vai retroceder, eu não vou voltar a fazer faxina, sabe? As pessoas LGBTQIA+ não vão voltar para o armário, entende? Não vai acontecer; as pessoas não vão retroceder, é daqui para cima. Eles ficam meio em choque, mas é isso. Ou se adapta ou vai ficar defasado. 

É muito difícil quando pensamos sobre estratégias antirracistas no Brasil, porque para essas estratégias serem bem efetivas, elas precisam ser estruturais. Um coletivo negro pode fazer transformações relevantes, mas que são micro, que vão atuar ali naquele contexto muito situado, certo? E a gente precisa de coisas mais amplas, como, por exemplo, a política de cotas. Ela faz esse impacto, faz com que hoje em dia eu possa encontrar uma dentista negra, porque essa pessoa entrou pela política de cotas, cursou, se formou, é uma profissional e hoje pode me atender.

LEI DE COTAS CONTRA BRANQUITUDE

Quando as Leis de Cotas começaram, a resistência aconteceu muito fortemente com argumentos de que a qualidade do ensino iria baixar… porque agora nós temos que diminuir o nível, vão entrar essas pessoas negras e a gente não vai conseguir alcançar o que quer. Passados 20 anos das Leis de Cotas [referência à Medida Provisória nº 63, de 2002, aprovada pelo Congresso Nacional para os efeitos do disposto no art. 62 da Constituição Federal], o que aconteceu foi o extremo inverso disso. Todos os indicadores mostram que as universidades públicas brasileiras, mesmo nesse contexto de sucateamento do governo federal atual, aumentaram de rendimento. Internacionalização, publicação, número de alunos… E se você pesquisar qual é a faixa de indivíduos que menos desiste dos cursos universitários são estudantes mulheres e negras. São mulheres negras que atravessam a dificuldade do racismo e do machismo, que compreendem muito bem a dificuldade que é entrar nesses espaços e que, quando conseguem essa chance, quando alcançam esse lugar, elas não largam. Não largam por nada. Então, isso demonstra muita coisa. O que as pessoas contra as cotas lá no começo dos anos 2000 falavam estava completamente errado. Não só a qualidade do nosso ensino melhorou, como nós não desistimos. 

Mesmo a universidade sendo um ambiente extremamente violento para as pessoas negras, é importante afirmar isso. A gente não desiste porque sabe a dificuldade que foi para os nossos ancestrais conseguirem isso. Mas é um ambiente muito adoecedor. 

 

Você acredita que trazer autores e leituras de pessoas não brancas auxiliaria na construção de um corpo estudantil universitário mais familiarizado com questões de políticas afirmativas?

 

Certamente. Até porque o racismo é um monstro de muitas faces. A gente consegue ver o racismo na área da saúde, o racismo institucional, o racismo recreativo nas “piadas” racistas. E o racismo também vai aparecer no ambiente acadêmico, na aniquilação das nossas ideias e do nosso conhecimento. Por exemplo, quando a gente fala do conhecimento que a medicina formal branca oferece, a gente fala de ciências médicas. Mas, quando falamos, por exemplo, dos saberes tradicionais que rezadeiras e povos indígenas carregam, a gente acha que isso é menor, inferior. “Você vai mesmo confiar nisso aí?”. E nós vemos muitas situações em que a própria medicina tradicional, dita científica, adota coisas assim. Você vai ao médico do postinho, está gripado e ele te pergunta “você tem hortelã em casa? Tem gengibre? Toma chá?”.

Desembranquecer esses saberes é extremamente relevante. Todo mundo ganha. Vou contar uma situação que aconteceu aqui na [Universidade] Federal do Ceará, certo? No campus de Ciências Sociais, os alunos negros que entraram através das políticas de cotas começaram a pressionar os professores brancos para enegrecer as ementas. E os professores brancos diziam: “mas não tem cientista social negro, antropólogo negro. Não conheço ninguém negro que trabalhou com isso”. E tinham, e tinham vários. Inclusive pessoas de grande excelência como Lélia Gonzalez, outra antropóloga negra como eu, minha grande referência.

A questão é que nós, pessoas negras, vivemos dentro desse sistema racista, ele impregna em nós também. Então, a gente tem que se desvencilhar dessas ideias porque elas são difusas. Quando a gente fala que o racismo é estrutural, a gente quer dizer que ele organiza toda a sociedade brasileira, se entranhando no jeito que a gente ama, no que a gente acha bonito ou feio, em quem a gente escolhe para trabalhar, ao lado de quem eu sento no ônibus… 

 

No que as políticas de ações afirmativas auxiliam a pensar numa mudança da sociedade e como você vê o funcionamento da Lei de Cotas nas universidades brasileiras? 

 

Toda vez que alguma amiga ou amigo negro entra por cotas numa universidade pública e gratuita, eu sempre parabenizo e celebro muito essa vitória. Mas eu celebro dizendo o seguinte: parabéns para a universidade que ganhou você como aluna. Quando os ambientes de aprendizado ficam mais diversos, isso é uma riqueza, não é um demérito! As pessoas falam “agora vai entrar todo tipo de gente aqui, vai ser um ambiente muito ‘misturado’”. E que bom! Imagina só se você tem uma sala com 50 pessoas brancas, jovens, sem deficiência e sudestinas. Elas tendem a pensar todas de um mesmo modo. Quando há diversidade nos ambientes, a gente tende a ter divergências de pensamentos. E que bom!

Se você me perguntasse hoje se a universidade está cumprindo seu papel em relação a esse propósito eu diria que não. Existem esforços pontuais de estudantes negros que fazem [a graduação] na cara e na coragem, na raça, muitas vezes sem incentivo, sem bolsa, mas que estão ali tentando a ferro e fogo pesquisar. Eu acho que mudar primeiro dentro para depois mudar fora seria mais relevante.

 

Quais mudanças são necessárias para tornar mais efetivas as ações afirmativas, considerando as dificuldades sociais e econômicas que os alunos encontram para permanecer na vida acadêmica?

 

O racismo estrutural se entranha na sociedade brasileira, então se eu derrubo a barreira do ingresso na universidade, isso não quer dizer que as outras barreiras se acabaram. Imagine uma pista de corrida com vários obstáculos. Se a pessoa pulou um, faltam vários. Falta a permanência na universidade, a conclusão do curso, a entrada no mercado de trabalho. E, na entrada, se manter com esse trabalho em que você se formou… São muitas barreiras.

A Lei de Cotas sozinha não resolve, precisa haver uma política de permanência. Isso acontece através do incentivo financeiro, as bolsas. A bolsa por si só não resolve, mas ela ameniza. Outras iniciativas que ajudam bastante: restaurante universitário a preço acessível, o acesso [físico] à universidade, rotas na cidade que levem o estudante de ônibus até a universidade. Tudo isso é fundamental para você conseguir.

Falando aqui do Brasil, no contexto brasileiro, a raça estrutura a classe. A gente sai de negro escravizado para negro empobrecido. Se você for na pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2019, ela vai mostrar que 80% das pessoas mais pobres são negras. Então, a pobreza aqui tem uma cor. Na semana passada saiu uma pesquisa dizendo que 33 milhões de brasileiros estão em situação de insegurança alimentar. Adivinha a cor dessas pessoas? É por isso que essa pautas também são do movimento negro; a gente precisa arrumar políticas públicas efetivas que garantam que essas pessoas possam sobreviver. Hoje em dia, sem o Bolsa Família, nós voltamos para o mapa da fome, 33 milhões de pessoas estão passando fome. Isso demonstra muita coisa. Como um estudante desse vai fazer para entrar na universidade? Mesmo estando lá dentro, vocês conseguem estudar com fome? 

Uma situação se conecta com a outra quando a gente tem um pensamento mais amplo. Pode parecer desconexo falar de fome agora, mas é por esse motivo que a gente tem nas escolas públicas a merenda. Se não tivesse a merenda escolar, talvez as crianças não fariam nem uma refeição ao dia. 

 

Levando em consideração a evidente hierarquia racial que existe no país, como você avalia o posicionamento das instituições em relação ao racismo e o preconceito sofrido pelos estudantes cotistas? 

 

Eu sinto que institucionalmente pouco se faz. Quando a gente denuncia fraude às cotas, isso é uma das maiores frustrações. A gente faz a denúncia e nada acontece. Tem o caso de um estudante branco que entrou no curso de Ciências Sociais na UFC. Ele fez a Graduação inteira fraudando cota, entrou no Mestrado, está terminando o Mestrado dele e o processo não terminou. Ou seja, ele vai receber o título normalmente.

Recentemente eu ouvi um caso no podcast Rádio Escafandro, que falava sobre cotas raciais. Eles trazem a história de uma mulher negra, a Lindinês, que foi aprovada em Medicina depois de denunciar fraude às cotas. As pessoas que fraudaram recorreram, ganharam o direito de assistir às aulas enquanto o processo corre e, então, ela assiste às aulas ao lado da pessoa que roubou a vaga dela fraudando cota. No final, mesmo que esse estudante seja expulso, ele aproveita os créditos, tem dinheiro para ingressar em uma faculdade particular. A Lindinês, vinda de uma família pobre, não teve essa opção. Então imagina só, você denuncia e o próprio funcionamento da instituição acoberta essas pessoas.

É por isso que é tão importante as bancas de heteroidentificação. Há muita polêmica em relação à banca. Dizem que ela comete erros, julga branco o estudante que é negro de pele clara e isso também é verdade. Acontecem casos em que as bancas de heteroidentificação são vexatórias, pedem para as pessoas negras fazerem coisas que não são interessantes. Entretanto, as bancas ainda são a melhor forma de impedir que essas pessoas que fraudam a política de cotas não entrem. Até a gente encontrar o jeito mais adequado, até informar melhor, educar e conscientizar a população brasileira em relação a isso, as bancas de heteroidentificação são necessárias. Eu tenho minhas críticas às bancas, mas se você me perguntar se eu quero que elas acabem hoje, não quero. Eu entendo o quão necessárias e fundamentais elas são para garantir os nossos direitos nesse momento.

Foto: Arquivo pessoal

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