Após 10 anos da implementação da Lei de Cotas, indígenas e quilombolas somam apenas 1,8% dos estudantes nos cursos de graduação em universidades públicas
Emanuel Silva, Flúvia Barbosa, Mariana Ferreira e Mateus Santos
Junho 2022
''O território é muito importante porque é aqui que a gente trabalha a criação dos filhos. Como filha eu fui criada e agora eu vou criar os meus filhos. Aqui a gente tem as nossas plantações, alimento, ervas medicinais. É aqui que a gente toca os nossos tambores. Tudo inicia aqui'', relata Gracielly Naiara, 30, ao explicar a importância do território para ela e sua comunidade. Formada em Administração, Naiara é organizadora de projetos da comunidade Quilombo dos Arturos, localizada próximo à Contagem, MG, região metropolitana de Belo Horizonte.
A relação estabelecida com um território é definida pelo grupo em que ele reside. Mais de mil povos que habitavam na América do Sul, na região onde hoje está estabelecido como o Estado brasileiro, mantinham diferentes tipos de relação com a terra. Sem muitas distinções do que é homem e do que é natureza. A conexão com seus ancestrais estava na terra, nas rochas, nas montanhas, nos rios, na natureza. Com a chegada dos portugueses, os costumes foram impactados e, por isso, foi preciso encontrar outras maneiras de manifestar suas culturas. Da mesma maneira, os africanos escravizados precisaram ressignificar seus ideais de território para encontrar aqui novos jeitos de praticar suas crenças e hábitos.
A multiterritorialidade do Brasil é evidente e marca toda a sua história de formação. Uma das marcas deixadas pelo colonialismo foi a luta de povos da floresta pela demarcação de seus espaços. Por isso, falar de território aqui é pensar em espaços que estão sempre em tensão e com personagens marcados. De um lado indígenas e quilombolas, que perdem cada vez mais seus direitos pela terra, e de outro, latifundiários e ruralistas que anulam e invadem cada vez mais os espaços desses grupos, com aval do Estado por meio do atual governo. No ano passado, a Lei 490/2007, do Marco Temporal, voltou à tona e avançava no Supremo Tribunal Federal (STF) com objetivo de modificar drasticamente a demarcação das terras indígenas.
Para Aiala Colares, geógrafo, professor e pesquisador na Universidade Estadual do Pará (Uepa), o território se dá a partir das relações construídas pelos sujeitos: “sejam as comunidades indígenas, sejam as comunidades quilombolas, os ribeirinhos, os povos da floresta, de maneira geral, cada grupo produz o seu território. Nesse caso, não apenas em função do poder que se estabelece a partir daquele grupo mas, sobretudo, a partir de aspectos simbólicos e culturais, que é o elemento que hoje a gente entende que participa dos conflitos''.
Segundo o pesquisador, levando-se em consideração a múltipla territorialidade do Brasil, temos diferentes tipos de relações disseminadas na sociedade. Contudo, a visão institucional sobre o território é a que prevalece: "a concepção do Estado e dos grandes agentes econômicos é uma concepção mais política-econômica do território". Numa concepção outra, simbólica-cultural, deve-se considerar que "a cosmologia dos povos da floresta tem suas raízes, ligadas com a floresta e com a natureza”, explica Aiala.
No que diz respeito a indígenas e quilombolas, segundo o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há registro de 305 etnias indígenas, com 274 línguas diferentes e com uma população de aproximadamente 897 mil. Já sobre a população quilombola no país, ainda não há dados exatos, visto que ela não é uma categoria contemplada no Censo. Apagamento que expõe, em diversos aspectos, a realidade vivida por essas comunidades. Contudo, dados da Fundação Cultural Palmares (FCP), de janeiro de 2022, apontam o registro de 3.475 de Comunidades Remanescentes de Quilombos. Além dessas já registradas, há também nove comunidades com processos em aberto, 51 aguardam visita técnica e 200, documentação. Apesar da FCP dizer que “as informações sobre as comunidades quilombolas certificadas são atualizadas mensalmente”, a última atualização foi publicada em 20 de janeiro de 2022.
Trazendo esse panorama para dentro das instituições públicas de ensino superior, vemos que esses grupos ainda estão pouco inseridos, além de existir uma dificuldade em achar dados concretos sobre eles. Em pesquisas sobre ações afirmativas nas universidades públicas, o Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA) mostra que antes da implantação da Lei nº 12.711/2012, que regulariza a reserva de vagas para cotistas, em 2012, pouquíssimas universidades públicas moviam esse tipo de política. Na pesquisa, publicada em 2019, o grupo relata que foi somente em 2001, por cumprimento de lei estadual, que o estado do Paraná adotou as ações afirmativas para indígenas nas faculdades do Estado.
No que diz respeito às ações voltadas para quilombolas, o artigo “Políticas de Ação Afirmativa para quilombolas nas universidades públicas brasileiras”, expõe que o grupo não era contemplado por nenhuma política específica para o ingresso. Em 2003, houve a abertura de vagas abarcando as questões de raça e situação socioeconômica por algumas universidades, como a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Universidade Estadual do Noroeste Fluminense (Uenf) e Universidade do estado da Bahia (Uneb), mas ainda assim, sem nenhuma vaga específica para o grupo.
Com a implementação da Lei de Cotas, as políticas de ações afirmativas nas universidades federais do país foram padronizadas. Desde 2012, 50% das vagas são destinadas a estudantes de escolas públicas, de baixa renda, de pessoas com deficiência e por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, respeitando a proporção dessa população em cada estado. Através da manutenção da Lei, é possível perceber uma mudança no corpo discente das universidades, porém, muito lenta em relação a quilombolas e indígenas. Segundo a V Pesquisa do Perfil Socioeconômicos e Cultural dos Estudantes de Graduação das Universidades Federais, realizada pela ANDIFES, em 2018, 0,9% dos entrevistados se autodeclaram pretos quilombolas e 0,4% se autodeclaram indígenas aldeados e 0,5%, indígenas não-aldeados.
TERRITÓRIO PARA QUEM?
Há uma dificuldade de acesso em relação a esses dados, o que prejudica o levantamento exato dessas pessoas nas universidades. Jefferson Belarmino, pesquisador do GEMAA, conta que o grupo “faz esse mapeamento para tentar colocar os pingos nos is e indicar como essa política pública está desenhada nas universidades e, para isso, a gente depende das universidades cederem os documentos e que os documentos sejam claros. Coisa que raramente acontece.”
Essa nitidez de informações também falta quando falamos da divulgação dos programas específicos para indígenas ou quilombolas. “São políticas que são pouco divulgadas em modo geral e depende muito do diálogo das militâncias locais com a universidade”, ressalta. Uma outra dificuldade exposta pelo pesquisador é que não há uma quantidade exata das vagas disponibilizadas para cada cota, o que causa um desconforto entre esses grupos.
“Nego não quer voltar pro tempo de cativeiro”. Esse é um dos trechos da música cantada por uma conhecida comunidade quilombola mineira, os Arturos, durante evento comemorativo dos 134 anos da abolição da escravidão, em maio de 2022, na cidade de Contagem, MG. A assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, pela princesa Isabel, foi símbolo de uma batalha pela liberdade, que a população negra já havia iniciado.
Mais de um século depois da assinatura da Lei, o racismo ainda assola as organizações sociais do Brasil, que têm características colonizadoras. Por isso, a luta deste povo vai muito além das disputas territoriais, que são pontos mais facilmente reconhecidos pela mídia. Isso diz sobre a incompreensão e sobre a falta de respeito pela cultura de matriz africana e reforça a necessidade de uma reparação histórica.
O quilombo dos Arturos é uma personificação desta luta. Gracielly Naiara conta que atualmente existe um programa, chamado "Juntos para Transformar", que busca ensinar crianças e adolescentes da comunidade sobre identidade e história dos povos quilombolas e compreender práticas anti-racistas. Para ela, isso é uma necessidade, porque desde a educação básica as crianças sofrem com a falta de empatia e reconhecimento na escola. “A gente ainda tá caminhando a passos lentos, quando a gente fala de trazer a importância desses povos originários para dentro da academia, para dentro da educação básica”, conta.
Naiara, como é conhecida pela comunidade, afirma que apenas o professor de uma única disciplina não é capaz de abarcar toda a complexidade da cultura quilombola: “Muito dessa intolerância, muito desse racismo passa por isso. Hoje nós temos professores, dentro da rede de ensino, que acham que o estudo dos quilombolas, o estudo dos indígenas é de obrigatoriedade do professor de história. Mas não é bem assim, qualquer professor pode trabalhar uma prática anti-racista”. Ela ainda reforça que uma das motivações do projeto é saber que as crianças serão capazes de auxiliar os professores dentro da sala de aula, quando falarem da história desses grupos tradicionais e da promoção à diversidade.
Isso permanece até o ensino superior, lugar onde muitos indivíduos do grupo não se sentem pertencentes até hoje. Naiara, graduada pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac, MG), conta que durante a sua graduação, que só foi possível através do Programa Universidade para Todos (Prouni), concluída em 2019, muitas vezes foi necessário explicar que os negros precisavam estar presentes naquele lugar, que antes era de privilégio branco. “Os brancos tinham direito à escola. E hoje, quando chega essa Lei de Cotas, que veio tardia, ela veio para fazer essa reparação histórica. Porque alguém entendeu que o erro tava lá atrás”, relata.
Sujeitos em busca de identidade, território e liberdade dão vida a eventos tradicionais realizados na Comunidade Quilombola Arturos e na aldeia do povo Xukuru Kariri / Fotos: Fluvia Barbosa, Mariana Ferreira e Mateus Santos
Permanência e acolhimento
Comunidade Quilombola Arturos comemora 134 anos da abolição / Foto: Fluvia Barbosa
Lucas Ribeiro (Quilombo Limoeiro) e Francine Oliveira (Quilombo Baixa da Linha) foram a Brasília reivindicar pela permanência nas universidades / Foto: Ciman Fredini
É o caso também de Lucas Ribeiro, 27, estudante de Museologia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), que faz parte do quilombo do Limoeiro, no município de Entre Rios, interior do estado baiano. Ele conta que antes da graduação, via ao seu redor uma grande porcentagem de pessoas analfabetas, incluindo os seus avós, e por isso enxergava a possibilidade de estudar numa universidade como algo muito distante de sua realidade. Estar dentro desta instituição o fez notar que o universo da educação não é justo: “eu percebi, quando cheguei na universidade, que conhecimento é poder, mas também ele é privilégio. Educação é privilégio. Não é direito”.
As questões vão além de se sentir pertencentes a um espaço, elas falam sobre o acolhimento realizado pela universidade e por grupos de estudantes que frequentam a instituição. Lucas nos conta sobre como tem sido difícil permanecer na graduação, após se mudar para a cidade de Cachoeira, na Bahia, a fim de estudar, principalmente por questões financeiras: “desde 2018, quando entrei na universidade, luto por permanência”. Ele comenta que descobriu a existência de uma bolsa para povos indígenas e quilombolas, mas que a universidade não informa às pessoas sobre a ajuda de custo “porque quanto menos se sabe, melhor para elas", destaca.
A bolsa do jovem já foi suspensa mais de uma vez. Essa ajuda de custo é o que dá a Lucas a possibilidade de estudar, já que ele não tem condições de se manter financeiramente. Durante o seu primeiro ano na graduação, este auxílio foi cortado por um erro de servidor da UFRB. A partir disso, o estudante passou por um dos maiores obstáculos de sua vida: “Isso foi em janeiro, em março minha mãe sofreu uma lesão na coluna cervical, 15 dias depois meu pai ficou desempregado e eu fiquei nove meses sem bolsa dentro da universidade. Eu passei fome”. Ele ainda relembra que pensou em desistir, pois além da falta de dinheiro, não tinha estabilidade psicológica para continuar os estudos. Foi quando os coletivos indígena e quilombola se uniram para ajudá-lo.
Essas dificuldades não são exclusivas dos povos quilombolas. A população indígena também passa por situações que a marcam durante a estada nos centros acadêmicos. Giselma Maria da Silva, 41, graduada em Língua Portuguesa, com licenciatura indígena, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ao contrário do acolhimento recebido por Lucas Ribeiro, nos conta que já ouviu de alguns estudantes palavras regadas de muito preconceito, principalmente no que diz respeito a se manter financeiramente na universidade: “nossa, agora tem índio aqui, mas é o governo que paga e eles são tudo um bando de vagabundo e preguiçoso”.
Dividir a experiência com um grupo de pessoas que sente as mesmas sensações na pele e as ter como uma classe de apoio, pode ajudar a manter um universitário naquele local. Porém, não ter auxílio de uma coletividade, escutar palavras tão duras de pessoas que desrespeitam a cultura tradicional e anulam a diversidade, podem causar traumas complexos e até a evasão desses estudantes.
Uma das pesquisas realizadas pelo GEMAA, entre fevereiro e junho de 2018, disponibilizada em 2020, mostra os motivos e os percentuais da evasão dos universitários pretos e pardos. No grupo de mulheres negras, 59% dos motivos de abandono dos cursos são devido a dificuldades financeiras e problemas de saúde mental ou física. Já no grupo de homens negros, 63% das razões são dificuldades financeiras e falta de tempo para conciliar trabalho e estudo.
Esses dados são essenciais para discutir sobre a importância das bolsas para a continuidade dos estudos de muitos alunos. Visto que estudar com qualidade ocupa muito tempo. Giselma é a prova viva desta situação: “era bem puxado, tinha dia da gente fazer trabalho, que ia dormir quatro, cinco horas da manhã e tinha que acordar seis horas da manhã pra ir pra faculdade”.
Saberes estruturais
Na Aldeia Xukuru Kariri há um espaço destinado ao ensino para as crianças / Foto: Mariana Ferreira
A entrada na universidade não é, portanto, o único desafio. No que diz respeito à permanência, os conflitos originados pela falta de saberes desses povos neste espaço também são motivos de debate. Como bem lembra Naiara, é importante reafirmar o protagonismo: “a cada dia que passa, a gente sente necessidade de valorizar este saber.” O que nos leva a questionar: quanto mais as culturas Indígenas e quilombolas poderiam contribuir se não fossem ignoradas, esquecidas, roubadas?
Para o pesquisador Jefferson Belarmino, do GEMAA, esta deficiência do sistema demonstra a necessidade de circulação dos múltiplos conhecimentos para quebrar narrativas eurocentristas: “programas específicos, bilíngues e que de fato trazem o conhecimento indígena para dentro da universidade são pouquíssimos.”
Ao olhar para a educação indígena em todos os níveis de ensino, é possível ver avanços, mas ainda não existe um sistema que atenda completamente suas necessidades, respeitando interesses e modos de vida. Constitucionalmente, de acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), os povos originários, possuem “direito a uma educação escolar específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária, conforme define a legislação nacional que fundamenta a Educação Escolar Indígena”. Por meio da Constituição de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, a educação desses povos passou a ser responsabilidade do Ministério da Educação (MEC).
Segundo o antropólogo e professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Gersem Baniwa, em pesquisa publicada no ano de 2012, dos 12 mil professores atuando em escolas indígenas em 2011, 11 mil eram indígenas; quadro inverso há 20 anos, quando os professores brancos representavam o total de 96% da equipe docente. Em 2018, o Censo Escolar de Educação Básica identificou 3.345 escolas indígenas, mais de 250 mil matrículas e cerca de 22 mil professores, o dobro da pesquisa anterior.
Com a valorização das suas línguas, culturas e seus lugares de pertencimento étnico, surge um novo desafio: como transformar mais de 500 anos de história e de saberes extintos em uma educação em diálogo com esta e outras culturas?
Para o acesso à universidade, a Lei de Cotas é uma das boas políticas que possibilita a valorização identitária dos povos originários, mas ela é apenas o primeiro passo porque, mesmo abrindo as portas, não garante 100% o acesso. De que adianta a reserva de vagas, se muitos deles mal sabem a existência desse benefício, ou ainda não sabem o português, ou são obrigados a integrar o ensino superior por meio de sistemas padronizados, como o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), programa do MEC que possibilita o ingresso à Universidade Pública sem a necessidade do vestibular próprio, ou pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)?
Giselma Maria Silva, que pertencente ao povo Xukuru Kariri, da aldeia Arapowã Kakiá, antes mesmo da graduação, já transferia conhecimentos ao seu grupo, mas após urgência de professores formados, decidiu se profissionalizar a fim de proporcionar um retorno educacional.
Durante entrevista, Giselma fala da sua trajetória na universidade / Foto: Mateus Santos
Da graduação, ela relembra como era estar na universidade, longe dos seus e das vivências que a permitiam ser Giselma. “Não tinha como a gente fazer a nossa cultura lá dentro, mas de vez em quando a gente levava as coisas que sabíamos que era do nosso ritual, ia fazer pedido, agradecer. Mas só entre nós, para levar o público, acho que o povo ia pensar que a gente tava até fazendo coisa errada”, afirma.
Giselma também recorda que sua cultura só era discutida quando professores indígenas visitantes, como Gersem Baniwa, estavam ministrando as aulas: “A gente falava muito da cultura quando vinha professor indígena, eles falavam um pouco da deles lá e a gente falava um pouco da nossa aqui”.
Para além disso e qualquer outra questão, mesmo determinados alunos desistindo da graduação, alguns pelas dificuldades, outros pelo interesse em seguir por outro caminho, Giselma hoje é professora e, nas palavras dela: “Ninguém baixou a cabeça, fomos até o final [...]. Foi uma formação puxada, mas formamos.”
Do mesmo modo que as comunidades indígenas, os povos quilombolas compartilham da falta de um sistema que englobe os seus saberes. A trajetória em busca de um país que reconheça institucionalmente a sua cultura e o seu povo aos poucos vem sendo percorrida. Segundo o MEC, desde 2003, com o início da vigência da Lei nº 10.639, a cultura afro-brasileira se tornou obrigatória no ensino fundamental e médio.
No que se refere à universidade, o panorama é o mesmo: o local onde se oficializam os saberes do país, quando são construídos, seguem teorias eurocêntricas. A falta desses conhecimentos e, consequentemente, a tentativa de apagamento apenas permanecem porque esses povos repassam de geração em geração. A administradora Naiara, ao falar sobre esta problemática, cita a necessidade da interação entre povo e as instituições de ensino: “eles falam dessa questão da 'comuniversidade', que é essa troca. A comunidade precisa ir para dentro da universidade e a universidade precisa vir para dentro do território, para que cada um entenda o seu lugar e o que ambos podem fazer para melhor fortalecer esse laço de cultura.”
Como se não bastasse, a falta de reconhecimento desses saberes não é o único caminho para a descolonização, mas também as próprias iniciativas de inclusão que, por sua vez, são baixas. Segundo Jefferson Belarmino, das 69 universidades federais no país, 44 possuem reserva de vagas apenas pela Lei Geral, o que significa que não há outras políticas e ações que permitam a entrada desses povos. Eles apenas podem ter acesso pelo Enem, sem nenhum outro programa específico que leve em consideração suas línguas, aprendizados e saberes. “Uma das grandes reivindicações dos movimentos indígenas, de modo geral, é que ele tenha mais amplitude para entrar na universidade, o que começa pelo processo seletivo específicos que são praticados por pouquíssimas universidades”, ressalta o pesquisador.
Jeferson também não deixa de lembrar do momento político que vivemos, onde o reconhecimento e a valorização das diferenças e discursos de matrizes multiculturais têm sido cada vez mais ignorados, em uma tentativa de tornar o Brasil um povo só. “Tem todo um sustentáculo que deve manter esse tipo de ação afirmativa específico que tem sido sucateado e que dificulta sua implementação e sustentação”, afirma.
A luta dos povos indígenas e das comunidades quilombolas ultrapassa as dificuldades encontradas na permanência durante todos os anos de graduação e pós-graduação. A vida fora das universidades ainda é um desafio para esses grupos, visto que a falta de oportunidade de empregos, cotas em concursos públicos, entre outros, é algo bastante difícil para quem busca pela sobrevivência e por uma qualidade de vida digna.
E depois da universidade?
Homens do povo Xukuru Kariri dançam durante evento tradicional da aldeia / Foto: Mateus Santos
Muitos povos indígenas e comunidades quilombolas enxergam o diploma no curso superior como algo fora da realidade. Mesmo que as universidades tenham tornado o ingresso desses grupos mais acessível, o processo de entrada, permanência e finalização da graduação ou pós-graduação, ainda é incerta. Após a conclusão desse ciclo, os desafios para embarcar no mercado de trabalho após a universidade, infelizmente já são esperados.
Para Nayara Fraga Paulino, 23, estudante de Letras da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e moradora da Comunidade Quilombola Vila Santa Efigênia, em Furquim (Distrito da cidade de Mariana, MG), a preocupação em relação ao seu futuro é um fato. Mesmo ingressando na universidade pública, percebeu a falta de cotas específicas para quilombolas na universidade: “sabe uma coisa que eu senti falta? Eu achei que teria vaga específica para quilombolas aqui. Porque tem essa comunidade, acho que em Passagem de Mariana [Distrito da cidade de Mariana, MG] também tem uma comunidade quilombola. Então, assim, até vaga de emprego lá na escola [Escola Estadual Monsenhor Morais, de Furquim] tem, mas o restante não tem essas vagas próprias”, ressalta.
Isabel Fraga Gonçalves, 36, Pedagoga formada pela Universidade Estácio de Sá (Unesa), também moradora da Vila e professora da Escola Estadual Monsenhor Morais, uma escola pública de quilombolas do distrito, complementa que tudo isso se dá por causa da gestão do município, devido à falta de reconhecimento da comunidade como quilombola. “A administração pública da cidade ainda não reconhece a gente como remanescentes quilombolas. Já está registrado, mas a administração pública ainda não reconhece. Esse fato da gente não ter aquela cota em concurso público voltada para quilombolas, as faculdades ainda não têm essa vaga, é devido a isso”, explica.
O mercado de trabalho para indígenas e quilombolas é algo que tem sido discutido em várias partes do país. Em 2022, um levantamento realizado pela Defensoria Pública do Estado da Bahia (Dpe/BA) aponta que das 27 unidades federativas que dispõem de Defensoria Pública, 24 delas, ou seja, 88,9% reservam vagas para a população negra em concursos públicos. No entanto, somente quatro delas têm cotas para quilombolas. Já para indígenas, 17 Defensorias do Brasil possuem cotas específicas.
Já Lucas Ribeiro, ao ser questionado sobre o que pretende para seu futuro, deixa evidente os motivos pelos quais a permanência na universidade, mesmo que seja difícil, é algo que pode levá-lo a lugares ainda mais altos. “Eu quero e desejo ir mais além. Quero fazer um mestrado fora do país, quero poder ter novas possibilidades, quero ter dinheiro e sair pra curtir um pouco a vida, quero poder chegar, quem sabe, aos 50, 60 anos e dizer ‘nossa, experimentei muitas coisas’”, relata.
Além do que deseja conquistar, Lucas fala sobre a importância de estar no espaço institucional, servindo de incentivo para aqueles que buscam ultrapassar as barreiras encontradas tanto nas instituições, quanto no futuro a ser alcançado. “Minha comunidade tem um nível muito grande de pessoas analfabetas ou até analfabetos funcionais. Quero muito poder contribuir com a comunidade negra, com o trabalho da ação da rede. Eu tenho muitos sonhos nessa vida e sempre me achei numa caixinha apertada, então a universidade tem me possibilitado de voar”, comenta.
Ainda que a universidade seja uma grande porta de entrada para que os povos indígenas e comunidades quilombolas tenham mais conhecimentos para seguir na sua luta constante por espaços, voz e mudança de vida, desde os antepassados, outras portas ainda precisam ser “quebradas”.
Diante disso, Lucas entende que apenas seus estudos não dão a garantia de trabalho: “eu entendi que Ensino Superior não é garantia de emprego no final das contas. Porque o governo dá a possibilidade, mas não fomenta o mercado e o trabalho”, explica.
A Lei de Cotas, seja ela geral ou específica para indígenas e/ou quilombolas, mesmo que transforme vidas, tal ato ainda não é suficiente. Infelizmente, a busca pelo ingresso nas instituições não é a luta final para esses povos. O território do mercado de trabalho, também pertence a eles e nada mais justo do que tornar esses espaços mais acessíveis. Reconhecer a luta dos indígenas e das comunidades quilombolas é primordial para perceber a força que eles carregam até os dias de hoje. Vê-los em ambientes visibilizados como a política, programas televisivos, entre outros, são exemplos perceptíveis e extremamente importantes para enxergar os resultados dessas conquistas diárias da busca pela sobrevivência desses povos.
Mesmo assim, até chegar a esse reconhecimento, muita coisa precisa ser feita. Nayara Paulino, por exemplo, não pensa em desistir e diz que vai continuar persistindo na conquista por reconhecimento digno. “É continuar a luta, porque ela é árdua né. Os nossos antepassados já começaram, a gente ainda sofre esse preconceito, eles carregaram o peso maior e agora é hora da gente lutar também. Eles não tinham voz, hoje a gente 'está tendo'. É um pouco ainda cortado, limitado às vezes, é sim. Mas hoje a gente tem uma voz maior”, conta.
A luta desses grupos, iniciada antes mesmo de 1888, ainda não terminou e infelizmente está longe de acabar. A busca por espaços, moradias, alimentação, estudo básico, superior, mercado de trabalho, entre outros, são territórios que precisam ser conquistados por esses povos diariamente. Os territórios estão postos, mas eles ainda não podem ser acessados por todos.
Fotos: Mateus Santos / Montagem: Thayane Santos