Foto: Cremilda Moutinho
O pedagogo Adilson relata a sua experiência com a oportunidade de estudar, em uma época que ainda não havia a inclusão por ações afirmativas: “Eu sou uma pessoa que em relação a minha geração e a minha comunidade, via que o acesso à universidade não estava reservado para todos. Era outra coisa que estava revelada pra gente, negros". Sua realidade foi diferente, o que possibilitou uma transformação em sua vida: "Mesmo não havendo ação afirmativa do Estado na época que ingressei, tive a oportunidade de estar em uma universidade pública e me formar. E isso acaba transformando não só a mim mesmo, mas a minha geração e aqueles que estão no meu entorno; a transformação é pessoal e da comunidade que está inserida, ela transforma gerações. A inclusão também tem esta característica, de se alastrar e começar a se tornar comum a melhoria".
Elielton dos Santos também destacou o quanto a oportunidade de estar dentro da universidade é modificadora de dentro pra fora: "A educação é um poder libertador. A partir do momento em que você aprofunda um pouco mais na educação, seja em qualquer área, isso vai impactar em toda estrutura em que você está inserido. Você não vê as coisas da mesma forma que você via antes por conta desse acesso à educação. O seu posicionamento sobre qualquer situação vai ser mais maduro intelectualmente e objetivo. E esse para mim é o maior poder modificador".
A professora Flávia Lisboa recorda que em 1997, durante o seu primeiro emprego, de uma turma de 30 alunos, seis ingressaram em uma universidade e Aleone, hoje doutorando pela UFMG, era um deles. Ela se emociona com a lembrança: "Confesso que foi até emocionante fazer esse trabalho. Eu voltei no tempo e vi o quanto experiente estou, já quantos anos trabalhados vendo os nossos alunos brilharem, tanto os que fizeram a graduação quanto também os que não fizeram. São pessoas que estão correndo atrás de uma outra forma".
Bianca Franciele com sua professora Mirian / Foto: Arquivo pessoal
As histórias de Aleone Higidio e de Bianca Franciele, do período pré-escolar à universidade, são marcadas por afetos e pelo empenho coletivo de familiares, amigos e professores na transformação de seus destinos.
O conhecimento transformador pela educação se baseia no rompimento de fronteiras e na busca pelo desenvolvimento de pessoas. Para Elielton, "esse poder modificador transforma, a educação transforma. E é um cálculo exponencial. Você que conseguiu ter acesso consegue transformar a sua base ou parte dela. Consegue transformar pessoas que também fazem parte da base de outras. Você se torna referência e significa esperança para muitos que não acreditam ser capazes”.
A importância das ações afirmativas é inquestionável, pois são a chave para um longo processo de democratização. As primeiras mobilizações a favor da inclusão nas instituições de ensino se deram quando lideranças do Movimento Negro brasileiro, nos anos 1980, foram à luta para gritar por direitos de acesso a educação. A partir de 1995, após uma marcha realizada em Brasília, a pauta ganhou força e começou a ser discutida, levando o Movimento Negro brasileiro à Conferência Mundial das Nações Unidas, em 2001, que tratou de assuntos contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância.
Segundo a Constituição Federal do Brasil, as crianças devem ingressar na escola aos quatro anos e permanecer nela até, no mínimo, os 17 anos. Isso significa que o Estado deve, em primeiro lugar, criar condições para que as crianças e adolescentes acessem a escola e que ela seja um espaço para todos e todas, independente da classe social e da raça. Esses direitos foram ignorados pelo Governo Federal ao longo da história do nosso país, mesmo a população negra sendo maioria no Brasil.
Foi em 2003 que a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) iniciou uma política de ação afirmativa em seu processo seletivo, tornando-se a primeira universidade pública brasileira a utilizar uma estratégia de admissão voltada para estudantes pertencentes a grupos sub-representados. O sistema de ações afirmativas aplicado na instituição de ensino já previa reservas para estudantes de escolas públicas, pretos e pardos. Após a iniciativa, a Universidade de Brasília (UnB), em 2004, foi a primeira universidade federal a adotar o sistema de cotas, o que levou a discussão para o nível federal e outras universidades começaram a realizar a implementação, já mesmo antes da obrigatoriedade.
O acesso legal ao ensino superior para alunos cotistas revolucionou trajetórias pessoais e familiares nos últimos 10 anos no Brasil
Cremilda Moutinho, Cristina Oliveira, Gabriela Dieguez, Marcela Aguilar e Samuel Carlos
Junho 2022
A oportunidade de estar dentro de uma universidade representa transformação social e faz parte da vida de muitos que, por meio da Lei nº 12.711/2012, ocuparam um espaço antes não acessível a todos e todas. A Lei de Cotas, como hoje é conhecida, permitiu o acesso de pretos, pardos, indígenas e outros grupos historicamente marginalizados a uma instituição de ensino. O pedagogo e pró-reitor adjunto de Graduação da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Adilson Pereira dos Santos, afirma que é função da universidade ser representativa, e esta deve ser composta por perfis que reflitam a sociedade em que vivemos. “A política de cotas, que são modalidades de políticas de ação afirmativa, tem como objetivo democratizar o espaço público. A importância crucial da lei é garantir que as instituições universitárias sejam representativas da sociedade como um todo. Sociedade essa que é a sua mantenedora, que sustenta o funcionamento da universidade”, explica.
Aleone Rodrigues Higidio, 30, doutorando em Comunicação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi alfabetizado pela mãe antes de iniciar o pré-escolar e seguiu, por toda vida, sendo aluno de escola pública. Ele contou que mesmo com o incentivo da mãe, o caminho estudantil não foi uma escolha “fácil”. Já na infância percebeu que, apesar do desejo dos pais que os filhos se dediquem aos estudos, a diferença social grita e, por muitas vezes, o caminho se torna impossível para muitos. “Eu acho que essa forma como é pensada a universidade muitas vezes acaba privilegiando certos grupos, porque você gera ali uma dependência de que o aluno esteja inserido no contexto da faculdade quase que 24 horas por dia, mas e aquele que precisa trabalhar? Tem aluguel para pagar? Tem contas no geral? Existe todo um contexto”, relata Aleone.
Flávia Lisboa Costa Moraes foi professora de Aleone na infância. Formada em Pedagogia, atua nesta área há 25 anos, sempre em Cordeiro de Minas, distrito de Caratinga, MG. Ela conta sobre as dificuldades enfrentadas pelos alunos para darem continuidade em seus estudos: "Nossos estudantes são alunos de classe média baixa, filhos de pequenos agricultores, trabalhadores braçais, trabalhadores rurais e professores. Eles estudam em tempo parcial na escola, não temos na totalidade o tempo integral. Então não há uma complementação de carga horária e nem oportunidade para cursos, oficinas e projetos, até porque quando se pensa em oficinas para os alunos faltam também mão de obra especializada e voluntários. Então os nossos alunos perdem a oportunidade de complementar a questão do estudo e quando terminam o ensino médio eles precisam sair para cidades vizinhas para estudar."
TRANSFORMAR A UNIVERSIDADE
Por acreditar na educação como movimento e transformação, Aleone sempre teve o sonho de estudar, e foi através das ações afirmativas que ingressou na universidade. Ele conta que o desejo de ter mais oportunidades sempre existiu e foi isso que o motivou a ser o primeiro da família a cursar e concluir uma graduação: “Meu pai é totalmente analfabeto. A minha mãe conseguiu terminar o ensino básico até a quarta série". Aleone destaca que a oportunidade de entrar na universidade foi transformadora na sua vida: "A educação transforma a sociedade de todas as maneiras. Social, economicamente, cientificamente. Então, acho que tem um ganho muito grande quando as pessoas conseguem ter a possibilidade de acessar, de permanecer, de concluir os seus cursos aí. Isso em diversos níveis”. Seus pais, não tiveram essa chance: "Por mais que meus pais tenham contribuído de alguma maneira com a sociedade, a sociedade perdeu a oportunidade de ter um cientista, mais professores e pessoas que poderiam contribuir de uma outra forma se a educação tivesse chegado na vida delas. Então eu acredito muito na educação nesse sentido”.
Aleone Higidio com sua primeira professora Flávia /
Foto: Arquivo pessoal
Aleone Higidio com sua turma de mestrado na Ufop / Foto: Arquivo pessoal
Os resultados da V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos(as) das IFES, divulgada em 2019 e realizada pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estudantis (Fonaprace), vinculado à Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), mostra o crescimento contínuo da participação de pardos e pretos no sistema de educação superior federal entre os anos de 2003 e 2018. A pesquisa foi realizada contabilizando os estudantes de cursos de graduação presenciais de todas as 63 universidades federais existentes no Brasil até fevereiro de 2018.
A implementação das ações afirmativas mostra que o aumento da presença de grupos marginalizados dentro das universidades é um caminho contínuo para uma transformação social. O economista Daniel Duque, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV), explica que o passado escravocrata no Brasil deixou sequelas intrínsecas na população. Ele afirma que, majoritariamente, temos uma elite intelectual branca, e que ainda não vemos muitos negros ocupando posições de prestígio no mercado de trabalho. A consequência dessa realidade é que desde a infância a população negra tende a ter outras aspirações, tendenciosas a profissões que não necessariamente precisam ter o diploma de graduação. “As cotas sociorraciais servem justamente para quebrar essa profecia autorrealizável. Elas tensionam a população não branca pra posições de destaque, o que vai mudar a forma de como a sociedade olha esse grupo; com isso muda as dinâmica de discriminação, de modo a minimizá-la em longo prazo”, diz Duque.
Aleone na Universidade Federal de Minas Gerais, onde cursa o doutorado / Foto: Cremilda Moutinho
Elielton dos Santos Oliveira, 23, graduado em Turismo pela Ufop, foi aluno cotista e relatou a sua visão diante da objeção e barreiras de muitos da sua comunidade não estarem incluídos na universidade: “É um processo sociocultural tão enraizado que dá a entender que eles não possuem capacidade de permanecer em uma instituição, porque daí vão vir as cobranças, você precisa trabalhar, você precisa de dinheiro para cópia de folhas, para pagar a moradia, comprar material, essas coisas. Então, tudo isso conta nessa fórmula". Ele comenta que para se ter um resultado positivo, é necessário que todos esses fatores estejam alinhados, o que normalmente não acontece: "As pessoas que conseguem fazer esse movimento contrário têm uma capacidade de resiliência muito grande, de sempre recorrer, saber pedir ajuda. E aos poucos essa pessoa vai se fortalecendo, mas isso não deveria ser o normal, né? Todos deveriam conseguir”.
Diante das dificuldades encontradas no caminho, a educação se mostra como ponto transformador e é capaz de fazer com que além da conquista de um espaço social, os estudantes também conquistem oportunidades e dêem retorno para a sociedade. O pedagogo Adilson Pereira ao refletir sobre a importância da presença de cotistas dentro de uma instituição de ensino, explica a existência de uma via de mão dupla nesse processo: “Toda a sociedade se beneficia quando essas pessoas adentram a universidade. Pensando no curso de Medicina, é um dos cursos que eram homogêneos em se tratando de questões raciais e sociais, era um perfil de alunos muito singular. À medida que a universidade recruta pessoas que refletem a sociedade, essas pessoas tensionam a própria universidade a refletirem sobre a saúde da população negra, a saúde da mulher negra, a saúde da população trans e todos os aspectos que são demandas da sociedade”. Assim, complementa Adilson, “a presença de grupos historicamente excluídos dentro da universidade é uma contribuição e um retorno para a sociedade como um todo”.
Em busca do sonho
Andressa Braga Lima, 21, cursa História na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Ela sempre estudou em escola pública e morou em Lagoa Formosa, distrito de Patos de Minas, MG. A cidade pequena não permitia fácil acesso à educação, a não ser pelas instituições particulares nas cidades próximas. O desejo desde criança de estudar e o estímulo da mãe foram o incentivo para a construção de uma nova história dentro do seu ciclo familiar. Ela é a primeira da família a ingressar em uma universidade federal: “Os meus pais têm muito orgulho, eles querem que eu seja independente e acham que com a educação eu domino mundo; e estou mostrando isso para os pequenininhos, é bom influenciar os primos e todo mundo ao seu redor, não tem nada melhor do que estudar, conhecimento ninguém tira da gente e podemos ainda temos o poder de compartilhar”. É por causa da Lei de Cotas que Andressa vai transformar o meio em que vive: “Eu comecei a estudar em busca de um sonho e a inclusão por meio das cotas me permitiu isso, a população tem que conhecer seus direitos e valorizar a educação para que cada vez mais haja transformação”.
Para muitas pessoas que estão no espaço da universidade foi preciso coragem. Bianca Franciele de Fátima, 23, moradora de Elbas, distrito de Tiradentes, MG, teve que mudar de cidade e deixar sua família para cursar Engenharia de Controle e Automação na Ufop. Para a mãe de Bianca, Maria Augusta de Fátima Silva, 58, que trabalha como doméstica, foi difícil ver a filha indo embora, mas ela afirma que a mudança foi para o bem dela e que vai sempre incentivá-la: “É difícil porque nunca imaginei ela sair de casa, ainda mais sair tão nova, foi uma mudança muito grande. Nunca passou pela minha cabeça que ela ia sair de casa assim, só se fosse para casar, algo assim. Para estudar nunca pensei. Mas pensamos: se for para o bem dela, vamos ajudar, vamos apoiar. E a mudança é que agora ela está sempre estudando, é pouco tempo que ela tem disponível pra gente, mas a mudança sendo pelo bem dela é o que importa”. Após a conclusão da graduação, o plano de Bianca é continuar aprendendo cada vez mais, além de trazer retorno financeiro para a família que acreditou no seu sonho e na sua capacidade de crescer pessoalmente e intelectualmente.
Bianca Franciele com sua família / Foto: Arquivo pessoal
O mesmo aconteceu com Elielton dos Santos, 23, que nasceu em Campos dos Goytacazes, RJ e se mudou para Ouro Preto para cursar Turismo. Ele conta que diversos fatores o influenciaram a ingressar na universidade, mas um que representa todos os motivos é a busca por novas oportunidades: “Acredito que muitas das vezes que a gente consegue algum acesso é através da educação, e eu vi isso ao ingressar na universidade, é preciso coragem para fazer mudanças, mas pela educação sempre vale a pena, e ela que nos move”. Atualmente, Elielton já está com o seu diploma na mão e cursando o tão sonhado Mestrado, enfrentando novos desafios na Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Hoje em dia, mais uma vez, estou vivendo o novo, me mudei para uma nova cidade, para conhecer novas pessoas e para aprender novas coisas. É fascinante a expansão que a oportunidade de estar na universidade me permitiu”, relata.
Ele afirma que toda a sua trajetória na educação não foi fácil, mas que a Lei de Cotas foi a porta de entrada para que ele, como cidadão, fosse mais um representante no grupo de intelectuais do nosso país. “Eu estudo para compartilhar conhecimento. Espero que a minha representatividade dentro do espaço da educação seja inspiração para outras pessoas. Foi possível pra mim, mas apesar das dificuldades, meu sonho se concretizou. Meu desejo é que cada vez seja possível para todos”, orgulha-se.
O poder transformador da educação
Adilson Pereira dos Santos, pedagogo e pró-reitor adjunto de graduação da Ufop
Aleone Higidio, doutorando em Comunicação na UFMG
Daniel Duque, economista e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
Bianca com sua turma de Automação na Ufop / Foto: Arquivo pessoal