Existência em meio à ausência
Patrícia Ramos, professora, socialista e candidata a prefeita de Mariana em 2020
Giovanna Massera (@toranja.mecânica), modelo, fotógrafa e criadora de conteúdo digital
Kelly Guajajara, social mídia
Matheus Rodrigues, jornalista, embaixador da RNP+ Uberlândia
A representatividade expressa pelos indivíduos ecoa a busca por direitos
Gabriela Gomes, Jonathan Robert, Laís Limonta e Marina Costa
Junho 2022
Por muitas vezes nos contaram que as paredes têm ouvidos. Mas já parou para pensar que, para além disso, elas falam? Ao mesmo tempo em que recebem informações e conhecimentos, elas os exteriorizam por meio de palavras e imagens. Desde as pinturas rupestres, as paredes armazenam vestígios que não param de ecoar, independente de quanto tempo passe. Apesar de a exposição nas paredes ser uma forma de representação, elas não são necessariamente um tipo de representatividade. O pichador Djan Ivson ou como é conhecido, Cripta Djan, 38, conta ao site Jornalismo Júnior em 2019 que, tratando da arte do picho, o pichador “[...] não faz parte dessa história, ele não tem representatividade, ninguém ensinou pra ele, só ensinaram pra ele que aquilo tem uma importância de memória, então ele se apropria daquilo também pra escrever a memória dele”.
Enquanto a representação diz respeito a pôr algo em cena, a representatividade é algo mais profundo, complexo e, até mesmo, pessoal. Ela, para além das paredes, depende da inserção de diferentes pessoas em lugares que possam tomar decisões e, consequentemente, sirvam aos interesses dos seus. Murais e paredes são exemplos de criação que buscam simbolizar diversos grupos, desde mulheres, negros, pessoas com deficiência (PCDs), LGBTQIAP+, indígenas e tudo o que essas denominações permitem que as pessoas sejam, plurais. Fica claro que essas expressões artísticas dão e multiplicam vozes que, por vezes, foram silenciadas por conta de um passado histórico violento e seletivo que favorece as tradições dos que colonizaram o Brasil. É o que torna, hoje, as representações múltiplas: de luta, de vozes que clamam por mudanças e igualdade, e as que refletem a realidade excludente, em diversos âmbitos sociais.
Pensando no campo político, o Governo Federal disponibilizou dados sobre um aumento da representatividade feminina nas eleições de 2020. Em 2016, o percentual de candidaturas de mulheres para prefeitas era de 12,91%, já em 2020, o valor foi de 13,05%. Entretanto, o valor ainda é pequeno devido à cota que prevê o redirecionamento de 30% das vagas para candidaturas femininas e também a reserva de pelo menos 30% dos fundos eleitorais e partidários para financiá-las. Segundo a matéria “Dirigentes de partidos e Ministério Público relatam fraudes no cumprimento de cotas para mulheres”, veiculada no site da Câmara de Notícias, fraudes foram identificadas por meio do não recebimento de recursos, da falta de oportunidade de contratar pessoas para trabalhar na campanha e das candidaturas de fachada que ocorrerem em todo Brasil.
No total, apenas 658 cidades brasileiras têm sido comandadas por mulheres desde 2021, o que ainda é insuficiente para abrigar as diferentes identidades femininas e cumprir com o propósito da representatividade. Para Patrícia Ramos, 33, mulher negra e candidata ao cargo de prefeita de Mariana, MG, em 2020, não é apenas a existência feminina na política que irá suprir as representações de milhares de pessoas. “Podem ter algumas mulheres que vão me representar, mas pegar uma mulher que é de outra classe como sendo uma representatividade para mim, não necessariamente responde minhas questões como mulher negra trabalhadora”.
Giovanna Massera, 25, mulher negra e PcD, pensa de forma semelhante. Ela afirma que tem dificuldade de se ver em outras pessoas apesar de algumas similaridades, assim como quando é inserida nos espaços em que faltam acessibilidade. É perceptível que o Brasil possui potencial de desenvolvimento infra-estrutural para sanar o problema de acesso, mas não o faz com veemência. Como demonstra Giovanna, a quantidade de experiências negativas pela falta de acomodações é um reflexo da falta de representatividade de um grupo que é constituído por pelo menos 45 milhões de brasileiros, o que se refere a 24% da população de acordo com informações do último censo realizado, em 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em oposição a essa falta de espaço, a internet se torna uma alternativa para a visibilidade desse e de muitos outros grupos. Como divulgado pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC), em 2021, 81% da população brasileira faz uso dessa tecnologia. Como resultado, Giovanna (@toranja.mecanica) viu uma oportunidade de criar conteúdos diários sobre si mesma, além de divulgar e conscientizar sobre a luta PCD. Um exemplo disso foi o seu relato a respeito da edição brasileira de 2022 do festival Lollapalooza, que prometia um bom acomodamento das diferentes necessidades desse público e deixou a desejar. Outras influencers PCDs, como Lorrane Silva, conhecida por pequena Lô (@_pequenalo), contou para seus mais de 4,4 milhões de seguidores sobre os pontos negativos do evento.
Entretanto, apesar do novo lugar de oportunidades de exposição e trabalho que a internet se tornou, a representação assumida por esse grupo ainda é pequena, visto que faz parte de apenas 1% das publicidades nas redes, como apuraram as empresas com foco e análise de dados de marketing, Elife e SA365, em 2021. Ademais, essa representatividade também não acontece nos espaços físicos, uma vez que, como relata Giovanna, “a maioria dos espaços são feitos pensando no público geral e no que é mais barato e trazer acessibilidade é algo que tem custo e muitos lugares não querem ter esse custo a mais porque vai ser um ou outro [PcD que irá frequentar] e não a maioria”.
Kelly Bone Guajajara, 25, social mídia do projeto Mídia Índia e sobrinha do fundador Erisvan Bone Guajajara, também comenta a necessidade de ocupar e pertencer a espaços que todos têm direito. Ela, sendo e defendendo as causas indígenas, espera que a população mude “totalmente a visão pré-histórica que tem sobre os povos indígenas, [além de] tirar aquela forma de que os indígenas apenas devem permanecer dentro do território [e que eles] podem ocupar as ruas e as redes”.
Esse pensamento construído de onde e como os indígenas devem ocupar espaços ocorre desde os princípios da colonização, visto que são os povos originários brasileiros um dos primeiros a resistirem a ameaças aos seus direitos há mais de 500 anos. Em 1993, algumas proteções foram compiladas na Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), de modo que: “os povos indígenas têm o direito coletivo de existir em paz e segurança como povos distintos e de serem protegidos contra o genocídio, assim como os direitos individuais à vida, integridade física e mental, liberdade e segurança da pessoa”. No entanto, o documento por si só não significa que existam ações que o representem e contemplem a inclusão indígena veementemente na sociedade. Kelly comenta essa lacuna: “A cidade não me representa, o Estado não me representa, o país em si não me representa, porque não nos sentimos à vontade mediante a tanto preconceito e tanta dificuldade das pessoas entenderem que somos pessoas, seres humanos, que somos normais”.
Neste contexto, uma das formas de buscar o pertencimento e a representatividade é através da mídia, na qual a presença de indígenas nas redações jornalísticas tradicionais é de 0,2%, conforme dados do Perfil Racial da Imprensa Brasileira e IBGE, de 2019. Um valor muito pequeno e que gera espaço para que as mídias alternativas surjam e criem canais de comunicação e reivindicação com foco específico nos seus povos e direitos, como é o caso da rede Mídia Índia, da qual Kelly faz parte. Criado em 2017, esse coletivo indígena surgiu com a intenção de, nas palavras da própria equipe, “romper uma comunicação hegemônica e não participativa”, a fim de garantir uma “comunicação representativa”.
Ao mesmo tempo que vemos nas paredes e muros uma representação e mensagens que clamam a busca pela representatividade, temos as cotas como uma forma de concretizar a presença das pessoas pouco representadas em meio ao desmonte da educação, as fraudes, a defasagem e a luta pela permanência. Muros, dessa forma, são espaços de manifestação, que guardam histórias e movimentações. Elisabete Kamei e Ronaldo de Oliveira, autores da pesquisa “Grafite ou pichação: manifestações visuais em espaços não convencionais – o que mobiliza essas manifestações?”, publicada em 2013, afirmam que “[...] a arte é uma verdadeira expressão de atitudes e valores presentes em múltiplos espaços”. Os símbolos expressos em muros e paredes, muitas vezes de modo transgressivo, é uma forma comunicativa de protesto, mas é também um meio de expressar a arte e a cultura. Entretanto, muitas vezes, a comunidade e o próprio autor não valorizam essa forma de comunicação visual.
Os muros são como gravadores que registram, de maneira quase imperceptível aos olhos que passam pelas ruas, a dor ou desejo de ser quem são. Mostrá-los aqui é um chamado ao público para enxergarem o que passa despercebido na rotina da vida: o clamor pela representatividade.
Contudo, mais do que enxergar essa realidade, é necessário agir. Patrícia nos demonstra que não basta apenas existir uma representante mulher na política se ela não abrange os interesses negros e das classes menos favorecidas. Da mesma forma que ter espaço online ou em mídias alternativas para exposição de uma luta específica, seja no caso de Giovanna ou Kelly, não substitui a representatividade física nos espaços e em direitos. Como Matheus reflete, é necessário construir a representatividade por meio de exposições informativas e de políticas públicas que vem para expandir a inclusão. Portanto, é essencial o entendimento, para mais do que “escutar” paredes e murais, (r)existir, em todos os lugares, é preciso.
Além de Kelly lutar por essa comunicação inclusiva, ela também trava uma luta a favor das questões LGBTQIAP+ no cenário indígena. Matheus Rodrigues, 30, também defende essas causas, só que com o olhar de quem fez parte do ambiente universitário e desenvolveu um senso político durante esse período. Formado em Jornalismo pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e atualmente embaixador da Rede Nacional de Pessoas Vivendo Com Hiv e Aids (RNP+) de Uberlândia, sua inserção na luta pelos direitos se relacionou diretamente quando descobriu, em 2019, que era portador do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), ainda durante sua graduação. Para ele, a junção de estar cursando a faculdade e a descoberta do diagnóstico foi muito importante ter acontecido simultaneamente: “foi ali que comecei a me inteirar pelas causas LGBTQIAP+ e isso fez com que eu me munisse de ferramentas e de argumentos muito importantes que possibilitaram a minha luta do HIV e da AIDS também”.
No cenário universitário, entender e lutar por diferentes causas LGBTQIAP+ é dar força e buscar por reconhecimento de causas que afetam milhares de pessoas - situação que fica mais clara quando observamos números que dão perspectiva a essa comunidade. Em 2019, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) disponibilizou uma pesquisa que tinha como resultado a porcentagem de 16,4% dos estudantes da graduação de 63 universidades que dizem pertencer a esse grupo.
Por isso, mais do que uma voz LGBTQIAP+, que fala para diversas pessoas a respeito de sua experiência ao longo dos anos sobre sua orientação sexual e sobre a doença que afetou mais de 381.793 brasileiros de diferentes idades, gêneros e sexualidades de acordo com o Ministério da saúde entre 2007 e 2021, Matheus enxerga que adentrar o ambiente universitário pode ser muito complicado para quem nunca teve o mínimo. Por isso, de acordo com o site “Politize!”, políticas afirmativas, como as das cotas, possuem um peso de “reparar o déficit de representatividade”, assim como de caminhos que possibilitem que o acesso dos que nunca tiveram voz não seja tão difícil. Afinal, “estas nada mais são que políticas que visam eliminar a desigualdade, discriminação e marginalização historicamente acumuladas e originadas em questões de gênero, etnia, religiosidade, raça”.
VOZES DOS MUROS
Foto: Jonathan Robert