Arte: Lucas Figueiredo
A moda veste ativismos
Mobilizações coletivas no mundo fashion evidenciam a necessidade de descolonizar a moda
Repórteres:
Edimar Rocha, Lucas Figueiredo, Maria Gabriela Meireles e Pedro Henrique Cunha
O mundo da moda ultrapassa o simples fato de vestir-se como uma necessidade básica e tornou-se uma construção social que permeia valores históricos, sociais e econômicos. O ativismo no mundo fashion surge com a necessidade de alterar os padrões impostos por uma sociedade na qual as pessoas com deficiência, negros, periféricos, gordos, a população LGBTQIA+ e muitos outros grupos invisbilizados pelos padrões da moda colonizada, estão constantemente em busca da representação de suas raízes e identidades, aciando a moda como manifestação estética e de resistência.
O que faz a moda ser pauta da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26)? Entre os dias 01 a 12 de novembro de 2021, líderes globais, ativistas, organizações e empresas privadas se reuniram na cidade de Glasgow, na Escócia, para tratar de pautas relacionadas ao meio ambiente e sustentabilidade. A indústria da moda foi um dos assuntos comentados no evento, por meio de fundações e marcas que tem considerável contribuição no impacto à natureza. Durante o evento, uma atualização da Carta da Indústria da Moda para a Ação Climática foi assinada, segundo o site das Nações Unidas, por 131 empresas de moda e 43 apoiadores, renovando o compromisso com ações para combater a mudança climática e conter o aquecimento global.
Dentre os compromissos assumidos na COP26, o grupo afirma que o setor deve agir para conter padrões insustentáveis de consumo, uma vez que a indústria da moda é responsável por 2% a 8% das emissões globais de carbono, com grande impacto sobre o clima, devendo cumprir as metas de redução de emissões pela metade até 2030. Entre as empresas brasileiras, aparecem na lista de marcas que têm considerável contribuição no impacto à natureza o Grupo Soma, a empresa Reserva e o Grupo Renner.
Além de abordagens ligadas à sustentabilidade, em uma metalinguagem autocrítica, a moda vem se reinventando e mudando também a sua forma de representação. É possível ver uma mudança de comportamento nas passarelas nos últimos anos, e um exemplo desse fenômeno foi a última edição da São Paulo Fashion Week. De acordo com o Medium - uma plataforma de blog - oficial da SPFW, a edição de número 52, produzida nos dias 16 e 21 de novembro de 2021, bateu recorde em pluralidade da história do evento, marcada pela maior presença de estilistas negros e diversidade dentro e fora das passarelas. Pela primeira vez na história do evento, um homem trans - Sam Porto, 26 anos, modelo - participou do desfile. Além disso, as cinco mulheres que mais desfilaram são negras, sendo elas Nayara Oliveira, Mariane Calazan, Isadora Oliveira, Raynara Negrine e Elle Maciel, um fato inédito na SPFW.
Acionando a moda como palco para a expressão do ativismo e de movimentos sociais que buscam dar visibilidade às diversas problemáticas envoltas nesse setor - como o racismo nas passarelas, a gordofobia e apropriação cultural - vários pesquisadores estudam e questionam tal fenômeno. Carol Barreto, designer de Moda e docente do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade da Universidade Federal da Bahia, desenvolveu o termo modativismo, que nasceu do incômodo da estilista de viver em um meio no qual não se sentia pertencente por ser uma mulher negra, nordestina e que historicamente sempre teve um lugar subalterno na sociedade.
Segundo a estilista, o conceito de Modativismo abarca modos decoloniais de encadeamento entre formas de pensamento e ação, resultantes de processos criativos e produtivos respeitáveis à diversidade cultural. Na sua obra “Coleção colaborativa Modativismo: uma experiência de ensino-aprendizagem em moda afro-brasileira”, ela explica que surgimento do termo nasceu da importância de resgatar origens e repensar padrões primitivos e ditatoriais no campo da moda. Para além da aparência, nas imersões acadêmicas da designer, o modativismo também valoriza a luta feminista, antirracista e todas as pautas políticas invisibilizadas.
Renata Pitombo Cidreira, jornalista, professora associada da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Universidade Federal da Bahia) e estudiosa do jornalismo de moda, explica que o conceito de “modativismo” - ativismo na moda - começa a se delinear por volta de 2017, para tentar descrever como esse fenômeno na moda pode intervir de forma positiva na sociedade para minimizar e diluir determinadas ferramentas de preconceito que são acionadas na indústria, referentes a classes sociais, raças, gêneros e outros. Para Pitombo, o movimento é uma forma de intervir para que esse campo da aparência e da mobilização social estejam ativos na sociedade e possam romper barreiras. “Me parece que o modativismo passa a ser muito mais do que um conceito e se torna um aporte metodológico”, declara a jornalista.
E não é de hoje que a moda atua como um agente de protesto que busca dar voz às causas sociais. Por meio de manifestações históricas, como os Panteras Negras e a Queima de Sutiãs, a moda possibilitou o surgimento de ativismos, por exemplo, contra o racismo, a conquista da equidade de gênero e os direitos das mulheres. O infográfico abaixo apresenta alguns movimentos e personalidades que marcaram o mundo fashion e influenciaram na conquista de direitos dos negros, das mulheres e, sobretudo, na luta pela igualdade de ir e vir.
Infográfico: Lucas Figueiredo
Bruna Coelho, 34, sexóloga
De volta à São Paulo Fashion Week, um dos eventos mais importantes de moda no Brasil, a empresa Mile Lab estrelou no desfile com assinatura da estilista e diretora criativa da marca, Milena Nascimento. A empresa criada pelo artista Breno Luan, 17, trouxe arte, movimento e resistência para a passarela, com 16 peças que representam o dia a dia das periferias de Grajaú (SP). O objetivo foi marcar a necessidade do acesso e caminho às pessoas que vivem na periferia, mostrando que é possível - e necessário - se vestir bem, com estilo e consciência.
Arte: Lucas Figueiredo
O artista define a estética da Mile Lab como marginal e ativista, e exalta que o objetivo da marca é dar pertencimento e reconhecimento do corpo periférico no mundo, para além da comunidade. “O corpo periférico pode e deve chegar na moda e em todos os lugares que ele quiser, mas é essencial que a sociedade ofereça o acesso, que nos é negado quando o quesito é o lugar de onde nós viemos. O nosso maior desejo é trazer aqui, em nossa marca e nossas peças, aquilo que não nos é mostrado sobre nós”, afirma o jovem.
Com acessórios e vestimentas cobrindo o rosto, modelos usam Mile Lab na SPFW para representar a moda da periferia.
Imagens: Marcelo Soubhia/Fotosite - Via Uol
Com a mesma pauta de resistência, ativismo e acessibilidade, a empresa Reserva, criada em 2004, lançou recentemente uma coleção com peças adaptadas para pessoas com deficiência, a linha Adapt&. A iniciativa surgiu por meio de uma parceria com a Equal Moda Inclusiva, na qual produziram roupas adaptadas e acessíveis idênticas às clássicas peças da marca, com ajustes ergonômicos e funcionais, trazendo independência, autonomia, empoderamento e pertencimento atrelados aos conforto e estilo.
Imagem da campanha
Fonte: divulgação / Reserva
A nova coleção é a primeira produzida pela marca às pessoas com deficiência e objetiva repensar os padrões de modelagem e aviamentos para não causar desconforto. “Nós começamos um estudo de modelagem, matéria prima e acabamentos especiais para atender o maior número possível de pessoas com deficiência”, cita Felipe Crepalde, coordenador de estilo da Reserva. Segundo ele, parte dos funcionários da empresa são pessoas com deficiências e todo o time da Reserva e os seus fornecedores foram capacitados para desenvolverem esses produtos. “Temos uma gama de lojas que já são acessíveis ou estão em processo de adaptação do espaço, e um projeto para que a maioria delas se torne um local mais inclusivo, diverso e democrático”, afirmou Crepalde.
Ainda sobre o processo de produção das peças, o Fashion Coordenador explica que o preço acessível das peças também foi uma preocupação para a empresa. “É fato que elas custam um pouco mais na produção, já que elas levam novos zíperes, velcros e reforços internos para não machucar. Mas não achamos democrático se ela custasse mais do que nossas peças básicas. Elas possuem o mesmo valor da nossa coleção inicial”, concluiu.
No vídeo a seguir, Crepalde apresenta a linha Adapt&.
Felipe Crepalde conta como surgiu a ideia e o início do projeto da linha Adapt& da Reserva e Equal Moda Inclusiva
Arte: Lucas Figueiredo
“A Reserva é uma marca apaixonada por pessoas e ver esse público não representado traz um incômodo a empresa. É a nossa intenção ser mais democrática”
O pertencimento e a identidade do corpo periférico
A moda periférica surge em meio a população que convive nas comunidades e deseja reafirmar suas identidades, ressignificando o conceito de moda. Agora, a moda não é mais algo padronizado, pois na comunidade se valoriza as crenças individuais, os gostos e a forma de se expressar de cada um por meio da roupa, e buscam, além disso, representar essas manifestações por meio dos desfiles realizados muitas vezes nos próprios territórios.
As matérias primas usadas nas confecções das roupas são oriundas, em diversos casos, de materiais recicláveis que são reutilizados e dão uma nova “cara” a essas peças. E, todos os envolvidos na cadeia de produção da moda periférica costumam ser moradores da própria comunidade, assim como os modelos, o que fortalece a economia local, gera empregos, traz representatividade e o fortalecimento da cultura periférica.
Fundada em 2016, a marca Dugueto é um empreendimento voltado para a produção de peças de roupas numa comunidade periférica em Salvador, o Complexo Nordeste de Amaralina. Adriano Soares, idealizador e dono da Dugueto, explica que o objetivo da marca é pegar aspectos da comunidade e transformar isso em conceito para aplicar nos produtos da moda. "Isso traz representatividade em todos os nichos e também nossas próprias realidades com o tema das coleções e inspirações”, diz.
Arte: Lucas Figueiredo
“Isso traz representatividade em todos os nichos e também nossas próprias realidades com o tema das coleções e inspirações”
Além de prezar por um modo de produção que tende a envolver colaboradores da própria comunidade, a moda periférica também procura trabalhar a questão da sustentabilidade durante o processo de confecção das peças de roupas. No caso específico da loja Dugueto, a marca costuma doar os retalhos da produção para ONG’s do próprio Complexo de Amaralina e para artesãs locais, nos quais os tecidos são usados para confecção de outras peças como tapetes, capas para caixa d'água e gorros para crianças.
A técnica utilizada que consiste em criar novos itens a partir de materiais já existentes é chamada de upcycling. O objetivo é reduzir a quantidade de resíduos e diminuir a necessidade de exploração de matéria-prima para gerar novos produtos. No mundo da moda, o upcycling surgiu como uma solução para estimular clientes a comprar somente o necessário, reutilizando a mesma peça por vários anos, tendo em vista o grande consumo de água, energia e produtos químicos poluentes que são usados pelas indústrias têxteis.
A visibilidade das iniciativas que buscam causar mudanças neste cenário vem ganhando força, em certa medida, devido a uma pressão do público que não se sente representado nas coberturas midiáticas sobre moda. O documentário Favela é Moda, lançado em 2019 pelo diretor Emílio Domingos, retrata a trajetória de uma agência de moda e produção localizada na comunidade de Jacarezinho no Rio de Janeiro, a Jacaré Modas.
Para o diretor do filme, o documentário reflete uma mensagem de quebra de padrões e de estereótipos. A ideia é representar a moda como uma manifestação cultural em contraponto à noção de glamour tão presente neste universo. “A sociedade tem esse lado também progressista, de querer ver uma diversidade nas passarelas e nos editoriais de moda”, afirma Emílio Domingos.
Clariza Rosa, uma das fundadoras da Jacaré Modas, acredita que o papel dessas agências conseguiu de alguma forma impactar no panorama atual da moda. “A gente olha pro cenário hoje e vê a quantidade de empresas que estão indo neste mesmo caminho”, declarou a empreendedora. A ideia dela é abrir caminhos para que outros indivíduos consigam desfrutar das oportunidades que surgem, sem ter que se sujeitar às dificuldades enfrentadas pelas gerações anteriores.
Para a empreendedora, outra importante discussão neste universo é o próprio conceito de Moda Periférica. "Continuamos colocando tudo dentro de caixas, e separando de uma maneira hierárquica, classista e racista, quando a gente fala que isso aqui é moda e isso é moda de periferia, ou quando dizemos que isso é empreendedorismo e aquilo é empreendedorismo negro”, explica Rosa. De acordo com Rosa, esse tipo de divisão não contribui de forma efetiva para o fortalecimento das iniciativas de moda, realizadas na favela. Ela ainda explica que há outras maneiras de reconhecer estas práticas: “Para mim, tem muito muito a ver com um conhecimento muito vivo daquilo que está pulsando nas pessoas nas ruas, dificuldades que são reais, questões que são reais e soluções que são reais também”, conclui.
A escala produtiva e os impactos da indústria têxtil
No documentário francês “The True Cost" (2015), com direção e roteiro de Andrew Morgan, a designer de moda, a italiana Orsola de Castro, afirma em uma de suas falas que no universo da moda comunicamos aquilo que somos por meio da nossa roupa. O documentário revela bastidores sobre o universo da moda, quando grandes marcas, localizadas em países desenvolvidos, ainda fazem uso de um modelo de produção centrado no lucro com a exploração de mão de obra em economias emergentes.
Com foco em produzir mais e mais para atender a demanda do mercado, a indústria têxtil negligencia e põe em risco a situação dos trabalhadores envolvidos no processo de produção das roupas. Devido às condições de trabalho a que os funcionários são submetidos, com baixa remuneração salarial, falta de direitos trabalhistas e ambientes insalubres, põe-se em risco a própria integridade dos operários. Prova disso, foi o acidente ocorrido em 24 de abril de 2013, na periferia de Daca, capital de Bangladesh, onde o desmoronamento de um edifício que abrigava fábricas têxteis vitimou mais de 1000 pessoas.
A produção “The True Cost” também evidencia uma outra reflexão: as consequências ambientais e sociais para as populações que estão presentes nos países onde as fábricas da indústria têxtil estão localizadas. A contaminação de rios e solos, por exemplo, ocasionada pelo despejo dos resíduos tóxicos das fábricas torna o consumo da água impróprio para o uso humano e afeta a qualidade dos alimentos. A situação afeta diretamente a saúde das pessoas, na medida em que leva ao surgimento de doenças que podem reduzir drasticamente a expectativa de vida, como cânceres e limitações físicas.
Julia Codogno, especialista em Moda e Sustentabilidade e pós graduada em Gestão Estratégica de Moda pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) conta que, durante suas passagens profissionais por grandes marcas, percebeu muitas empresas ainda presas a processos conservadores. “A gente via ali uma conduta, muita baseada somente na lucratividade, não que isso não exista ou não aconteça ainda”, declarou a consultora de moda. A especialista explica que a presença de um sistema linear pode ser considerada o maior obstáculo atualmente, em termos de produção na indústria da moda. “Há um sistema muito agressivo, onde se produz uma grande quantidade de produtos, produz-se produtos de baixa qualidade, na maior parte das vezes com uma modelagem não funcional ou inteligente”, reconhece Codogno.
Com todo seu potencial de consumo, que afeta praticamente todo indivíduo residente no território nacional, a indústria da moda é um dos ramos de negócio de maior impacto, do ponto de vista financeiro, para a sociedade brasileira. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e Confecção (Abit), no Brasil, o faturamento anual em 2019 desse ramo girava em torno de 185,7 bilhões de reais. Empregando cerca de 1,5 milhões de empregadores diretos e 8 milhões indiretamente, é a segunda maior empregadora na indústria de transformação, perdendo apenas para a de bebida e alimentos (juntos). A indústria da moda, com milhões de toneladas de artigos produzidos anualmente, revela ainda uma outra faceta: a necessidade de matéria prima suficiente para suprir a demanda dessa produção em larga escala, e os impactos ambientais e sociais proveniente dessa situação.
Os ativismos no campo da moda também refletem essas questões. A exemplo da preocupação com o uso consciente de agrotóxicos na produção agrícola (especialmente no cultivo do algodão, matéria prima importante para o setor) e o desperdício de recursos hídricos, que são algumas das consequências ambientais presentes na escala produtiva da indústria têxtil. O algodão, tido como matéria prima básica na confecção das roupas, ocupa uma posição de destaque quando o assunto é o uso de agrotóxicos na agricultura brasileira.
Segundo a nutricionista e especialista em Agroecologia, Sophia Sol, os agrotóxicos usados nas lavouras não impactam somente a planta que está recebendo a substância e os efeitos vão além, atingindo toda a lavoura e entorno. “Isso se agrava com as pulverizações das áreas, que ocasionam dispersão dessas substâncias pelo ambiente, contaminando amplas áreas e atingindo populações distantes de onde os agrotóxicos são pulverizados”, afirma. A especialista também chama atenção para o fato de que, independente da rota percorrida pelos agrotóxicos, o ser humano sempre será o receptor final.
Informações da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (ABRAPA), mostram que o país é o 2° maior exportador de algodão do mundo e o quarto maior produtor mundial. No Brasil, a cultura ocupa a quarta posição em relação ao uso geral de pesticidas nas lavouras agrícolas, contabilizando 10% do valor total de pesticidas aplicados no país, de acordo com relatório da Organização de Mídia Independente Modefica. Considerando todas as etapas envolvidas no ciclo de vida das peças de tecido, a utilização do algodão causa impactos ambientais em todas elas, desde o processo de produção da matéria prima até o descarte final das roupas. Dentre as principais consequências ambientais estão o consumo de água, a aplicação de agrotóxicos e o uso do solo. A tabela a seguir mostra os principais impactos associados ao uso do algodão nas etapas de produção e consumo.
Arte: Lucas Figueiredo
Na vanguarda desses impactos ambientais e sociais, um movimento específico presente na indústria da moda ganha destaque, o fast fashion. O conceito surgiu quando marcas do ramo têxtil resolveram adotar um modelo de produção rápida e em grande escala, no qual as roupas produzidas tinham um tempo de vida reduzido. Em decorrência disso, as peças tornaram-se mais baratas e a um custo de produção reduzido. Contudo, as consequências dessa prática logo se fizeram presentes. Além da poluição decorrente do uso de metais e a poluição causada pela emissão de gases poluentes, houve uma imensa quantidade de lixo descartado no meio ambiente, causado pelo acúmulo das roupas cada vez mais descartáveis. Renner, C&A, Shein e Zara são exemplos de lojas de departamentos adeptas à moda de consumo rápido.
Sem preocupação com os impactos ambientais, a moda rápida utiliza-se de tinturas de baixa qualidade, insolúveis ou a produtos à base de materiais pesados, com a confecção de tecidos sintéticos derivados de combustíveis fósseis, que têm forte impacto na emissão de gases poluentes na atmosfera. Segundo o blog da Unicamp, Ciência em Revista, só no Brasil são produzidas cerca de 170 mil toneladas de tecidos por ano, grande parte desse material torna-se inutilizável devido ao descarte incorreto, o que impede a sua reciclagem. Com um preço mais barato no mercado, a matéria-prima também tem o seu custo reduzido e, portanto, fibras naturais são deixadas de lado e dão lugar às fibras químicas, que levam cerca de 200 anos para se degradar.
As empresas adeptas ao fast fashion, por sua vez, mantém um número reduzido de funcionários e, quando ocorre o aumento de produção, quarteirizam o serviço, aderindo ao trabalho informal e com mão de obra análoga à escravidão. Países como China, Camboja e Bangladesh, bem como alguns países da América Latina possuem focos de trabalho escravo. A rede de lojas espanhola Zara admitiu em um depoimento à CPI do Trabalho Escravo da Assembleia Legislativa de São Paulo que, em 2011, houve escravidão na produção de suas peças e que não havia monitoramento dos seus fornecedores na época.
Em contrapartida, o slow fashion, modelo que preza pela produção “devagar” dos vestuários, está focado em buscar aumentar o ciclo de vida do produto, com tingimentos naturais, menos agressivos ao meio ambiente, além da transparência nas relações de trabalho. Em 2004, o termo ficou mundialmente conhecido por meio de um movimento que promove a consciência socioambiental com uma aproximação entre o produtor e o consumidor. O modelo de indústria Cradle-to-Cradle ou “do berço ao berço” disponibiliza vestuários que, após o uso, serão reaproveitados de volta à indústria. Nesse viés, podemos citar o crescente número de brechós que existem hoje com o objetivo de comercializar roupas de qualidade e com preços acessíveis.
O slow fashion traz a consciência a respeito de todos os processos de criação de uma peça, pequenas coleções são desenvolvidas e há uma grande importância com a humanização durante a confecção, ou seja, o produtor tem o seu trabalho reconhecido e valorizado. O consumidor tem a oportunidade de conhecer as etapas de produção da sua peça, o responsável por cada estágio de confecção, adquirindo, assim, autoconsciência e priorizando a moda local, feita por meio de suas raízes e que se preocupa com o meio ambiente. Vínculos são estreitados, histórias são construídas e contadas em cada tingimento, e cada peça é única, desenvolvendo, assim, um relacionamento específico com cada consumidor.
Sendo assim, estão cada vez mais presentes as iniciativas que prezam por uma moda consciente, responsável e transparente. O Fashion Revolution, movimento mundial que busca trazer questionamentos sobre a origem das matérias primas e a transparência das marcas, nos processos de produção das roupas, no Brasil, atua desde 2014. Entre as ações do Fashion Revolution, existe a campanha #QuemFezMinhasRoupas?, que tem o objetivo de estimular as empresas do ramo da moda para que ajam com transparência sobre questões de trabalho, sustentabilidade e ética, ao mesmo tempo que incentiva os consumidores também a entender o histórico e a procedência das peças que consomem.
A moda sustentável se preocupa em minimizar os impactos ambientais na produção de tecidos e também no descarte das peças usadas, com métodos para auxiliar toda a sociedade a repensar a forma como consumimos e, principalmente, a curiosidade de sabermos o que estamos consumindo. Conforme pesquisa realizada pela Universidade Tiradentes, segundo a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, a indústria têxtil está entre as quatro indústrias mais poluentes do mundo e que mais consomem recursos naturais.
Também conhecida como eco moda ou moda ecológica, a moda sustentável vem do eco design e tem o principal objetivo de usar métodos de produção que reduzam os impactos ambientais, com a utilização de menos recursos e com a preocupação de produzir peças que tenham um longo ciclo de vida útil. Para isso, busca-se usar tecidos de fibras orgânicas, corantes naturais e colas menos tóxicas para evitar a poluição dos oceanos e lençóis freáticos, como também a reutilização de tecidos e materiais descartados. Algumas alternativas adotadas são o uso de algodão orgânico, fibras de abacaxi, bambu e de cânhamo. Na sustentabilidade desses materiais, considera-se o processo de como as fibras são transformadas em tecidos, a capacidade de renovação da fonte e a pegada de carbono total do material.
Logo, essas medidas alternativas fazem parte do consumo consciente, uma vez que objetivam transformar a relação da moda com o meio ambiente, de modo a priorizar materiais menos agressivos, além de incentivar a valorização do consumo local de forma sustentável, como os brechós. Aliando sustentabilidade a um consumo consciente, os brechós dão novos sentidos às roupas, ressignificando vestuários e claro, aumentando o ciclo de vida das peças, de modo a reduzir os impactos no meio ambiente e valorizando as individualidades de cada roupa.
Os brechós surgiram por volta do século 18 e 19, mas não nasceram carregando esse nome. Nas famosas feiras ao ar livre da Europa, inicialmente em Paris, os mercados das pulgas, como eram conhecidos, vendiam peças de roupas sem muito cuidado com a higiene, cheiravam mal e eram sujas, por isso, muitas vezes, esses locais eram infestados de pulgas, dando origem ao nome. Atualmente, os brechós ganharam muito espaço com a ascensão da internet e das redes sociais, impulsionando novos empreendedores a abrir sua lojinha virtual e compartilhar o consumo consciente pelo mundo afora.
E com a empreendedora Júlia Guimarães Aquino, não foi diferente. Natural de Itabira, em Minas Gerais, a estudante de direito de 23 anos é dona do Brechó das Minas Gerais, que tem como premissa a moda sustentável, a revolução do consumo e o desapego. O brechó, que surgiu durante a pandemia, possui peças exclusivas e com um preço acessível, possibilitando uma experiência única de compra. “A grande maioria dos brechós possuem um cuidado extra em detalhes, como a embalagem das peças, a identidade visual e até em dar brindes ou os chamados "mimos" a todos os consumidores”, afirma a estudante.
E as etapas de aquisição das peças dentro de um brechó envolvem muitos processos e cuidados. No Brechó das Minas Gerais, dois modelos são usados para adquirir as roupas vendidas. O primeiro é a consignação, no qual as clientes desapegam de suas peças, as deixam no brechó e cabe à dona, portanto, avaliá-las, no que tange a limpeza, avarias, manchas, o estado de uso e conservação. A outra forma utilizada é o garimpo, na qual peças de outros brechós e bazares (em sua maioria beneficentes) são compradas.
Em todos os casos, o processo de curadoria é fundamental para avaliação das peças, no quesito higiene, aspecto e odor. “Caso seja necessário, lavo as roupas ou deixo de molho. Após secas, costumo fazer pequenos consertos, como retirar as bolinhas, cortar fios soltos, pintar algum detalhe, etc. Para consertos maiores, a depender da peça, levo até uma costureira. Antes da venda, todas as peças são passadas e posteriormente são embaladas e destinadas a cada cliente. Na curadoria, a intenção é cuidar da peça, consertar pequenas avarias e entregar cada roupa no seu melhor estado para a cliente”, declarou a empreendedora, que desde sempre foi adepta à moda sustentável e hoje concretizou o seu sonho em forma de brechó.
Iniciativas como o Brechó das Minas Gerais representam um avanço na forma de consumir e surgem como alternativas sustentáveis, com o objetivo de valorizar a cultura local e o consumo consciente. Em meio a tantas inovações na indústria têxtil, o ativismo torna-se matéria-prima essencial para expandir o conceito do que de fato é a moda, para todos os corpos e todas as cores. Bem como disse Dario Caldas, professor, escritor e estudioso do campo da moda, em seu blog Observatório de Sinais (ODES), o ativismo faz bem para a moda. Para ele, “o mais significativo é o fato de que a moda está sendo fiel às suas vertentes transformadoras”. Caldas escreve que a relação umbilical com a mudança social é o novo ethos da moda contemporânea e não há onda conservadora, nem crítica ideológica que poderá detê-la.
Pode-se dizer, portanto, que moda e ativismo é um casamento para marcar uma nova era, em que mudança social, desenvolvimento sustentável, pluralidade e inclusão sejam tão prazerosos quanto uma bainha bem feita, uma roupa amarrotada e um dress code (código de vestimenta que indica a maneira mais adequada para se vestir em determinada ocasião).