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Arte: Júlia Morais

Diante das telas

Crise global e isolamento, autoimagem e autoestima dos usuários entra em questão

Repórteres:

Bárbara Marra, Maria Luisa Santos, Júlia Morais, Sabrina Kelly Roza

A pandemia de Covid-19 arrastou a população para um abismo social. Em quarentena e sem poder ver qualquer pessoa além dos limites de casa e das telas ao redor, a opção segura foi nos aproximar mais ainda dessas que se tornaram pequenas janelas para o mundo. A exposição aos dispositivos tecnológicos ampliou as chances de saciar o instinto de estabelecer outros contatos. 

 

Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), fizeram um levantamento que alerta para o uso excessivo de crianças e jovens diante das telas. De acordo com o estudo, esse tipo de exposição diante das telas teve o aumento de 6,5 horas para 10,5 horas por dia durante a pandemia de COVID-19. Além disso, a pesquisa contou ainda com a diminuição das atividades físicas que caíram de 120 para 80 minutos por semana. Sendo recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) entre 150 e 300 minutos de atividades físicas.

 

Por outro lado, essa exposição trouxe, além do olhar para o outro lado, para o inalcançável, o olhar para nós mesmos, refletidos constantemente em videochamadas com familiares, amigos e também nas intermináveis videoconferências do trabalho. Sempre ali, nossa imagem permanece nos observando de volta, em uma contemplação narcísica que escancara urgência do debate sobre a saúde mental dos usuários das redes, bem como sobre o relacionamento moderno com a autoimagem.

Diante do espelho

Como se não bastassem as implicações sociais do tempo prolongado de isolamento, muitas foram as consequências da falta de vínculos presenciais para o bem-estar e a felicidade geral das pessoas. Estudos realizados durante a pandemia por epidemiologistas da University College of London (UCL) indicam que a falta de conexão social altera significativamente as ligações cerebrais, deteriora funções cognitivas do ser humano e pode levar a tipos severos de depressão e à demência. A exposição às telas têm participação direta nessa deterioração e uma de suas consequências mais recorrentes é o Transtorno Dismórfico Corporal (TDC).

 

Esse transtorno é caracterizado pela visão distorcida do indivíduo em relação à sua aparência física. Ao se olhar no espelho, uma pessoa vê todos os defeitos que imagina ter refletidos e ampliados, mesmo que ninguém mais consiga perceber qualquer uma das imperfeições apontadas. No Brasil, 4,1 milhões de pessoas, cerca de 2% da população, sofrem com o TDC, que tem prevalência mais comum em jovens entre 15 e 30 anos. Nas mulheres, a dismorfia surge entre 18 e 30 anos e se mantém em alta até os 60.  Entre os homens, a situação é mais comum entre 18 e 21 anos, mas há uma queda progressiva com o passar dos anos. 

 

Esses números cristalizam uma realidade normalizada há séculos: a pressão estética sobre as mulheres é catastrófica a ponto de causar distúrbios de autoimagem. Tal realidade, que é a tônica da indústria da beleza desde seu surgimento, se torna ainda mais esmagadora no contexto da pandemia, do isolamento, da exposição exagerada às telas, às vidas e aos corpos perfeitos estampados nos feeds das redes sociais.

A percepção deturpada em relação ao próprio corpo pode ter raízes diversas. Segundo Rafaela Marra, 28, psicóloga, essa preocupação excessiva remete a uma obsessão que a pessoa cria, ou pelo corpo como um todo, ou por uma parte específica”. 

 

Marra explica que, atualmente, entende-se que transtornos psicológicos não têm causa única. O TDC pode decorrer tanto da desregulação de neurotransmissores, de questões genéticas, quanto da presença de gatilhos que estão vinculados a alguma crença disfuncional da pessoa a respeito de si mesma. Trata-se de um transtorno que não é isolado e que pode decorrer de um transtorno obsessivo compulsivo, de uma obsessão ligada à ansiedade ou até mesmo à depressão.”

O Transtorno Dismórfico Corporal em números

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Arte: Júlia Morais

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Arte: Júlia Morais

O resultado desse bombardeamento de imagens irreais sobre o cérebro desencadeia uma intensa autocobrança e sofrimento psicológico, além de poder desencadear transtornos alimentares. Estudos do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB-UFRJ) indicam que portadores de doenças como anorexia e bulimia apresentam comorbidade com TDC de 6% a 39% dos casos; das e dos pacientes acometidos, 10% a 32,5% podem apresentar comorbidade com transtornos alimentares (TA). 

O TDC frequentemente precede o T, e pacientes com comorbidade quase sempre apresentam quadro clínico mais grave do que aquelas(es) com apenas um dos transtornos.

A psicóloga explica que “a exposição excessiva hoje que nós temos aos corpos irreais, aos padrões inatingíveis, é responsável por reforçar crenças disfuncionais. Uma crença disfuncional a respeito da aparência física ou pela comparação que se faça com esse excesso de estímulos que as mídias apresentam, por exemplo, pode tanto reforçar um transtorno de dismorfia corporal, quanto desencadeá-lo em quem tem propensão, pessoas muito ansiosas ou que já estejam em um quadro depressivo.”

Em virtude de demandas profissionais, Rafaela Marra revela que precisou se inserir na Internet e comenta a exposição a tantos olhares. “É preciso considerar que a Internet hoje é necessária em vários aspectos. Percebo que ela pode adoecer e também orientar, que pode ser favorável ou prejudicial à saúde mental a depender do uso, da frequência e do estado emocional e psicológico de cada pessoa.”

Imagem distorcida e gatilhos

O tratamento para o TDC - associado ou não - costuma variar, sendo imprescindível o acompanhamento psicológico. "De forma geral, o ideal é o acompanhamento multidisciplinar com psiquiatra, psicólogo e com uma equipe médica", indica sobre a necessidade conhecer as crenças que a(o) paciente formulou a respeito de si, a forma como ela ou ele vê o mundo, qual obsessão, qual compulsão.”

Ao rolar pelas atualizações no feed do Instagram, nos deparamos com imagens de "corpos perfeitos", que por trás das telas foram modificados por aplicativos, filtros e cirurgias plásticas. O padrão de beleza se tornou inalcançável e as mídias sociais ajudam a fortalecer a ideia de que é possível alcançá-lo. 

Em oposição aos gatilhos negativos gerados constantemente, existem movimentos de acolhimento, compreensão e debate nas mídias sociais. Perfis como o @movimentocorpolivre, @postadaxmarcada e @normalizecorposreais, trazem o movimento #corpolivre, que valoriza e dá visibilidade a todos os tipos de corpos. Se consumir conteúdos voltados para a estética e aparência física pode nos afetar mentalmente, a produção desse material pode ser igualmente tóxica.

 

Não é de hoje que várias pessoas pregam uma positividade acerca de que estão bem e satisfeitas com seus corpos e vidas. Mas por trás das câmeras, a realidade é bem diferente. Constantemente, somos bombardeados com anúncios, propagandas que nos dizem que temos que estar sempre felizes, e que tudo vai dar certo. Porém,essa é uma realidade impossível e que pode gerar uma positividade tóxica. O artigo When Too Much of a Good Attitude Becomes Toxic (Quando o excesso de atitude positiva se torna tóxico), publicado pela Associação Nacional de Educação dos EUA, alerta que quando um indivíduo é obrigado a se sentir otimista em determinadas situações, e ele não consegue, a sensação é a de sentir-se fracassado.

Obesidade e distância médica

Uma existência irretocável nas mídias sociais é quase regra. Corpo belo, viagens incríveis e casas espetaculares são agenciados como sinônimos da felicidade em tempo integral na lógica de algumas e de alguns influenciadores digitais. A chamada positividade tóxica pode consumir a saúde mental de quem deseja mas não consegue se encaixar nessa "vida perfeita".

Os padrões extrapolam as telas e chegam aos consultórios médicos, especialmente quando o atendimento é para pacientes obesos. Essa doença que segundo pesquisa feita pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), estima-se que no mundo há 604 milhões de adultos e 108 milhões de crianças com diagnóstico de obesidade. Além disso, dados publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), apontam que a obesidade atinge 6,7% dos adolescentes. Já entre os adultos, cerca de 96 milhões de pessoas, ou seja 60,3% apresentam excesso de peso e 26,8% obesidade com maior prevalência entre as mulheres.

 

Esse fator gera impacto psicológico negativo, especialmente no público feminino. Segundo Júlia Canellas, 30 , médica da família, quando se deposita todas as queixas no excesso de peso, o emagrecimento se torna o único caminho. Ela relata que alguns de seus pacientes já sentiram despreparo em profissionais para lidar com o assunto, sendo fundamental pensar quais são as raízes daquilo que suas e seus pacientes referem como discriminação já que, segundo elas(eles), não existe preconceito semelhante em relação às pessoas extremamente magras. 

Fotos: Maria Ribeiro/Fotógrafa

Saúde mental é brincadeira?

Em mídias sociais como Instagram e Facebook encontramos páginas como a “CDA - Clínica para Depressivos Anônimos” com 74 mil seguidores e “Coach de Fracassos” com 690 mil acompanhantes. Perfis como esses fazem do uso de memes - ou seja, imagens virais que são repetidas e imitadas na internet até virarem um trocadilho consagrado e um bordão na boca dos usuários -  para retratar a má saúde mental e as consequências causadas por transtornos psicológicos.

Mesmo que ironizem e banalizem as situações, por mais sérias que sejam, tal conteúdo gera identificação e consequentemente, visibilidade. Confira um exemplo:

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Reprodução internet

As tendências presentes no compartilhamento dos memes se tornaram um caminho utilizado pelos “digitais influencers”, que precisam promover seu conteúdo de acordo com o que está em evidência nas redes, para se manterem nos assuntos mais comentados. Junto desses profissionais estão as grandes marcas que além de contratá-los para executar as “trends” - coreografias, músicas e desafios que estão em alta nos aplicativos - , também se aproveitam da visibilidade dessas pessoas para tratar de assuntos que deveriam ser restritos a profissionais. À saúde mental é um deles.

 

Quando uma empresa contrata um influencer para falar de um determinado tema, essa escolha não se dá por acaso. A relevância, popularidade e o alcance nas redes desse influenciador é levada em conta. Com o propósito de atrair mais público, as marcas falam o que os seguidores gostariam de ouvir, e isso se dá através dos influenciadores digitais, que emprestam suas vozes e corpos em prol de uma causa. 

 

Que o marketing de grandes empresas têm se aproveitado da visibilidade dessas pessoas, todos sabem, mas quando o assunto a ser tratado na publicidade é saúde mental, há muito a ser levado em conta. Nem sempre essas instituições têm o interesse genuíno em abordar um tema que está em pauta, o que acaba por transformá-lo apenas numa  jogada de marketing para se promoverem e gerarem lucro: “Não são todas as pessoas que são capacitadas a falar sobre saúde mental. Hoje nós temos muitas blogueiras, líderes religiosos, coachs que orientam a respeito da saúde mental que podem muito mais prejudicar a pessoa do que orientar e auxiliar de alguma forma”, alerta Rafaela. 

Ela também ressalta, a importância de estar conectado a  profissionais habilitados sobre o assunto nas redes sociais: “Então, sempre falo que para falar de saúde mental em rede social é muito importante que você detenha o conhecimento, seja capacitado sobre aquilo e, para aqueles que buscam também fontes de informação referentes à saúde mental dentro das mídias, procurar sempre um profissional capacitado.”

 

A internet é, de fato, um via de comunicação vasta, que não será deixada de lado tão cedo. Em muitos aspectos, a vida se tornou mais fácil com a sua inserção no cotidiano. Entretanto, da mesma forma que nela podemos abstrair de nossos problemas e do sofrimento que, inevitavelmente, nos alcança em algum momento da vida, também podemos nos afundar ainda mais nele em meio às comparações e discursos tóxicos ali propagados. 

O acompanhamento psicoterapêutico deve ser feito durante toda nossa trajetória para o auxílio em campos como autoconhecimento, solução de conflitos e  melhora da saúde mental. É importante refletirmos, de acordo com Rafaela, sobre a dificuldade de acesso à terapia e, portanto, da responsabilidade que marcas e pessoas públicas têm que ter ao abordar transtornos e exporem uma aparência modificada e inatingível.

 

A psicoterapeuta nos dá a tônica de como lidar com o bombardeio de padrões a que estamos submetidos: “Todo mundo é vulnerável, basta a gente ser um ser humano para estar vulnerável a essa ampla gama de informações que nós temos a todo momento nas nossas mãos. Mas é muito importante a pessoa entender, através do autoconhecimento, quais são seus limites, quais são os gatilhos que a afetam e como conviver com eles da forma mais saudável possível, para poder manter o seu equilíbrio emocional e entender a sua forma de se comportar, de interagir com o mundo”, conclui a psicóloga.

 

Mesmo que, na maioria das vezes, ironizem e banalizem a situação, o que importa para os criadores é que o meme gere identificação e um pouco de abstração do sofrimento. Porém, nem sempre isso ocorre de maneira positiva, o que pode gerar mais medo de procurar por uma ajuda especializada em pessoas que eventualmente sofram de algum transtorno.

O que ressalta a importância de estar conectado a  profissionais habilitados sobre o assunto nas redes sociais: “Eu sempre falo que para falar de saúde mental em rede social é muito importante que você detenha o conhecimento, seja capacitado sobre aquilo e, para aqueles que buscam também fontes de informação referentes à saúde mental dentro das mídias, procurar sempre um profissional capacitado”, explica a psicóloga.

 

O acompanhamento psicoterapêutico deve ser feito durante toda nossa trajetória para o auxílio em campos como autoconhecimento, solução de conflitos e  melhora da saúde mental.  Mas é importante refletirmos, de acordo com Rafaela, sobre a dificuldade da grande maioria das pessoas de acessarem uma terapia e, portanto, da responsabilidade que marcas e pessoas públicas têm que ter ao abordar transtornos e exporem uma aparência modificada e inatingível.

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