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Capa: Matheus Santos e Thaís Domingos

Um diálogo sobre proporcionalidade 

A entrevistada da 31ª edição da Curinga Dossiê é a historiadora e comunicadora Giovanna Heliodoro, conhecida nas redes como Transpreta

Repórteres:

Matheus Santos, Thaís Domingos, Sabrina Mikaelly

Giovanna é Historiadora, Comunicadora, Afrotransfeminista, Speaker do TEDx e Pesquisadora. Integra a ONG EQUI articulando ações acerca da inclusão de diversidade no mercado de trabalho e atualmente é uma das Colunista do site BuzzFeed Brasil. Conhecida como Transpreta, atua há aproximadamente 5 anos como Produtora de Conteúdo nas redes sociais e em 2018 publicou o seu primeiro livro, “Raízes - Resistência Histórica”.

 

Nesta entrevista, Giovanna fala sobre a construção da sua narrativa visual enquanto mulher trans, preta e historiadora e que conseguiu firmar a sua narrativa, além de abrir possibilidades para que novos discursos possam ser criados e compartilhados.

Curinga: Giovanna a Revista Curinga agradece a sua disponibilidade em participar da nossa 31º edição. para iniciar nosso papo, gostaríamos de saber quando surgiu a ideia de criar conteúdo para a internet?

Giovanna: Eu comecei a criar conteúdo desde a pré adolescência, desde os 14 anos, eu sempre fui muito apaixonada por cultura pop. E nesse processo eu e minha prima criamos um Blog Spot sobre notícias do mundo pop. Logo depois disso, passei pelos meus processos de transição e tinha uma necessidade muito grande de me comunicar com as pessoas e mostrar o que eu estava vivendo.

 

Com isso, comecei a consumir muitos conteúdos no YouTube e percebi que não existiam muitos produtores de conteúdo trans. Assim, eu construí o canal Transpreta no YouTube e em seguida outras redes sociais como Instagram e Twitter, como um canal de protagonismo e potencialização das narrativas trans e negras ou seja que outras pessoas trans e negras pudessem falar também. E desde então eu fui criando bolhas e percebendo que eu poderia hackear o sistema por meio das redes sociais.

Quais são suas referências, tanto de vida quanto do trabalho que você realiza hoje, de ser uma comunicadora?

Eu tenho muitas referências e fica difícil pontuar todas, mas confesso que uma das referências surge de um lugar muito pessoal. A ativista Juhlia Santos é uma das grandes matriarcas para mim. Ela foi muito importante para minha inserção dentro do movimento trans, quando eu ainda nem entendia o que eu era, ela me pegou pelo braço e falou: “Vamos fazer parte de um grupo de travestis pretas que eu estou formando?”. Eu disse: “Eu sou drag e não quero roubar o protagonismo de ninguém”. Alguns anos depois, eu passei pelo meu processo de transição e desde então ela virou uma mãe para mim, eu gosto de trazer ela como uma das minhas referências porque costumamos pegar referências  de lugares muito distantes e não citamos quem sempre esteve ao nosso lado, a Juhlia sempre esteve próxima de mim. 

Outra referência é a Lena, que é uma mulher preta, semi-analfabeta, que lutou muito para me mostrar que a educação era uma herança e algo que eu deveria investir na minha vida. As deputadas e vereadoras Erika Malunguinho e Erika Hilton sempre foram importantes para que eu me entendesse dentro do meio político, me ensinaram a buscar ações afirmativas, mudanças efetivas para além da internet e como fazer isso de uma forma real e mais incisiva. 

 

Além delas também, no mundo da música, como: Raquel Virgínia, Açucena, Liniker, Linn da Quebrada, Jup do Bairro e tantas outras travestis. Posso citar Maria Clara Araújo e Ana Flor, que me abriram muitas portas na internet. Eu tenho uma ligação muito grande com elas e uma conexão muito forte e acredito que todas as nossas relações são ancestrais, então eu sempre vou buscar me relacionar com aquelas que me inspiram e estão buscando um mundo melhor.

Quais eram suas expectativas quando você começou? Você esperava ter todo esse engajamento que tem hoje?

Para ser bem sincera, eu confesso que não esperava estar vivendo as coisas que estou vivendo hoje, com a idade que eu tenho, ocupando os espaços que estou ocupando e conquistando várias coisas. Eu acreditava que talvez um dia essas coisas pudessem acontecer, mas não seria hoje, e talvez não fosse ser algo que acontecesse enquanto eu ainda estivesse em vida. Pode parecer um pouco pesado isso que eu vou dizer, mas a minha relação com a morte sempre foi bem próxima. Então, a morte ao mesmo tempo que me assustava muito, sempre me foi imposta como uma certeza. Minha vó sempre me disse que a única certeza que a gente tem é a morte. 

 

A gente sabe que a expectativa de vida de uma travesti é muito pequena. Hoje é muito doido ver que existem pessoas que me veem em um lugar de endeusamento, eu estou aprendendo a lidar com isso. É muito diferente.  É muito surpreendente quando as pessoas me param na rua para falar que se inspiram e que aprendem muito comigo. Isso é muito gratificante. Eu nunca pensei que eu, enquanto uma corpa travesti preta, pudesse ser vista como referência, sabe?  Eu nunca imaginei isso. Sobretudo quando me veem não só como uma referência de história em si, mas como uma referência de intelectualidade. Quando eu consigo acessar esse espaço eu acredito que eu tô promovendo de alguma forma uma mudança, que não começou comigo, mas a partir de muitas travestis que me antecederam pra que eu pudesse estar aqui hoje. 

Como você enxerga sua relação com seus seguidores? Você acha que eles se enxergam em você?

É muito difícil descrever isso tudo, mas eu chamo meus seguidores de minhas amadas, eu amo muito essas pessoas porque elas transformaram minha vida. Se hoje eu posso fazer propaganda de um produto de cabelo é graças a elas. Porque não é sobre representatividade, é sobre proporcionalidade, eu não quero representar todas as travestis, porque eu nem sequer vou dar conta de representar todo mundo, e eu nem quero esse papel. Por isso, eu falo sobre proporcionalidade, porque eu não quero ser a única, porque é muito triste você ser a única, a única pessoa preta, única pessoa marginalizada, única pessoa trans, única mulher. Por isso eu falo sempre de proporção.

Como aconteceu a sua transição do YouTube para o Instagram?

Essa migração aconteceu de uma forma muito involuntária e talvez contra minha vontade. As plataformas digitais mudam ao longo do tempo. Hoje a gente tem várias funcionalidades no instagram que a dois meses atrás não tínhamos. Assim como no TikTok, são várias redes que vão surgindo e mudando a forma de nos comunicarmos. O YouTube era uma  grande plataforma para se criar vídeos e o instagram para fotos. No momento em que eu comecei a produzir conteúdo, eu contava com a ajuda de um amigo e ele pulou fora do barco e foi fazer outros projetos. Eu fiquei pensando como eu iria fazer. Lembro que fiquei aproximadamente um ano sem postar no YouTube e, depois desse tempo, surgiu a ferramenta IGTV, eu vi como uma oportunidade de postar vídeos mais longos. Assim, consegui conquistar esse público dentro dessa plataforma falando sobre o que eu queria falar. 

 

Quando eu comecei a produzir para o YouTube, eu tinha muita dificuldade porque não sabia como fazer, qual a melhor ângulo, qual é a melhor luz, então, se você observar os meus primeiros vídeos e os de agora, é possível perceber uma evolução, porque eu fui aprendendo fazendo e assim eu me transpassei do YouTube para o instagram.  Hoje eu tenho outro projeto, que é o de voltar para o YouTube, porque eu também entendi que essas plataformas nos deixam muito refém. 

 

É como se você alugasse uma casa, se o instagram resolver apagar meu perfil agora, acabou, se o fiador decidir pedir a casa de volta acabou. Então eu costumo usar essa metáfora para as pessoas entenderem que é importante a gente está se comunicando em múltiplas plataformas, para que não tenhamos nossa voz silenciada ou reduzida ou limitada a um único lugar.

Como você definiu a estética visual do seu Instagram?

Eu adoro falar sobre os processos de criação e poucas vezes as pessoas me perguntam sobre isso. A estética do meu perfil inicialmente partia muito de uma identidade visual ligada à comunidade trans, então as cores predominantes eram sempre o branco, azul e rosa, que são as cores da bandeira que representam a comunidade trans e travesti. Depois eu quis mudar e trazer um pouco mais a minha cara, considerando também, que eu não queria ser somente reduzida a falar de questões travestis e transexuais. Como comunicadora e com formação em história, eu tenho potencial intelectual e cultural para falar de diversos temas, como os álbuns da Beyoncé, Adele, sobre o look que eu quero usar no verão ou os novos produtos de skincare. 

 

Eu acredito que tenha versatilidade para falar sobre essas coisas, então nesse momento eu comecei a mudar a minha identidade visual que tenha mais a minha cara, nesse momento eu parto para um outro lado que é trazer uma identidade visual mais ligada a humor, satira, deboche, que faz parte da minha realidade. Então comecei a me jogar nesses vídeos mais engraçados, porque quem me conhece sabe que eu sou uma palhaça.

 

E hoje estou passando por um novo projeto que é de mudar minhas redes e trazer identidade a elas. Hoje estou no processo de entender o que eu quero explorar em relação ao conteúdo de editorial. Eu tenho uma equipe junto comigo, A Map Brasil. Estamos construindo um projeto para melhorar essa identidade, tenho uma relação mútua com minha equipe, então hoje a minha identidade visual além de ter essas características da comunidade trans, também tem as minhas características e do público, ou seja, o que as pessoas tão querem de mim e o ques as pessoas querem ver. 

Quais são suas estratégias para driblar os algoritmos racistas que estão presentes nas plataformas de comunicação, que privilegiam pessoas que se encaixam dentro do padrão visualmente aceito?

Minha principal estratégia é mudar um pouco minha narrativa e mostrar uma outra Giovanna,a qual as pessoas não estão acostumadas e não querem  ver nessa posição. Eu acho que o meu público se divide em dois lados: os que gostam de ver a Giovanna militando, falando de assuntos sérios e os que gostam de me ver debochando e postando memes o dia inteiro, se deixar. Esses dois lados dizem muito sobre o que eu vou produzir e o que o instagram espera que eu produza.  No instagram de fato os algoritmos não estão a meu favor, não estão a favor de pessoas pretas e transexuais, basta ver como nossos vídeos sempre caem.

 

No meu caso em específico eu confesso que o instagram sempre foi uma plataforma que entregou bem os meus conteúdos, é importante lembrar que os algoritmos foram criados por pessoas brancas, cisgêneras, heteronormativas, que estão dentro do mercado da tecnologia que criaram esse algoritmos a partir do pensamento delas, mas também do pensamento da sociedades. Então os algarismos são um reflexo do que a sociedade está fazendo. Então eles são nada mais do que robôs que foram treinados para reproduzir  os nossos comportamentos e os nossos comportamentos estruturalmente são racistas, transfóbicos, capacitistas, machistas, gordofóbicos. 

 

É muito fácil a gente culpar o algoritmo sem entender toda essa cadeia. E eu penso que as possíveis estratégias são incentivar crianças pretas, jovens e até adultos, a cada vez mais entrar nesse ramo da tecnologia, informação e da inovação, porque a partir do momento que a gente se vê dentro dessa cadeia a gente faz com que esse sistema passa a contribuir com nossos potenciais. Eu comecei a mudar esses dois lados de conteúdo porque eu entendi que quando eu militava muito o instagram não entregava os meus conteúdos, ou quando eu falava de política, mas quando eu falava de um um meme o instagram entregava e era super engajado, mas eu entendo que isso depende muito do público.

 

As pessoas estão muito mais acostumadas a ver travestis falando de dor e sofrimento. Então um post em que eu estou toda machucada, ensanguentada engaja muito mais do que um post que fala  eu retifiquei meu nome e consegui uma nova identidade, por exemplo. Tem essa diferença do que as pessoas querem consumir e o que eles querem consumir a partir do que eles esperam que pessoas trans estejam falando em redes sociais. As pessoas querem muito alimentar essa pornografia da dor, quando eu falo de prosperidade travesti, as pessoas não querem ouvir sobre isso. 

Qual o impacto que você acredita que a sua imagem traz? Como você vê o fato de ser uma inspiração para as pessoas que estão te acompanhando?

Eu acho muito importante falar sobre isso, porque eu recebo umas mensagens muito assustadoras, que é alguém me mandar um direct dizendo que não tem dinheiro para comprar um pão, que foi expulsa de casa, morando numa cidade do interior e não sabe o que fazer, que sente medo de morar na mesma casa que o seu pai porque sente medo em relação à própria vida. 

 

Eu nessa posição de ser uma porta voz da comunidade trans, não quero ocupar o lugar da representatividade, eu acho que eu nunca vou representar todas as pessoas da comunidade trans, e nem tão pouco todas as pessoas pretas, porque nós somos diversos. E eu não quero unificar o que seria a representatividade, pois acho que se tem a necessidade de alguém ser representada é porque existe um problema .

Como você acredita que as redes sociais podem ser um espaço de democratização do conhecimento?

Eu fui aprendendo que a educação era uma forma de me potencializar. Eu sempre gostei muito de estudar, mas ao mesmo tempo eu era uma criança nerd, hiperativa. Fui me dando conta de que eu queria muito fazer História. Mas eu não sabia qual era a história que não foi contada a partir do momento que eu entrei na faculdade de história, eu entrei com o objetivo de contar as histórias que não foram contadas. 

 

Na minha graduação foi quando eu passei pelo meu processo de transição e eu procurei qual era o primeiro registro de transexuais no Brasil. Quem escreveu essa história? Estava na hora de reescrever a história com as nossas narrativas. Como o conhecimento produzido na universidade tá chegando na minha quebrada? Eu pensei que estava na hora de escrever essas histórias que não estão nos livros, pensei em como fazer isso de uma forma mais popular, acessível e menos acadêmica. 

Como você passou a se enxergar depois de compartilhar a sua vida, sua rotina e seu conhecimento, isso mudou a forma  como você passou a se enxergar?

Mudou. Porque eu passei a acreditar mais em mim. Passei a acreditar no que eu falo, no que passei a ter mais certeza do meu amanhã. Há alguns anos atrás eu não tinha expectativas do que eu queria contribuir para o meu ano seguinte. Hoje, eu já sei o que eu quero construir no próximo ano. Mudou também a forma com que as pessoas me veem socialmente, porque hoje eu não sou só uma pessoa travesti na rua. É como se as pessoas me vissem como uma pessoa travesti que consegue transpor as formas com que elas querem se comunicar. Talvez eu seja uma travesti que as pessoas cisgêneras dão conta de ouvir, porque se elas forem conviver com uma travesti  que vivencia o trabalho sexual e precisam tirar o seu sustento, mesmo que contra a sua vontade, através do trabalho sexual, elas nao dão conta de conta de conversar com essas travestis, porque elas nao passaram pelo processo de “higienização” que eu reconheço que passei. Isso me ajudou a me sentir mais confiante, porém a Transpreta é uma persona da Giovana, a qual as pessoas acessam uma parte da Giovana.

Esse ano você recebeu uma indicação ao Troféu Imprensa. Como vê a importância desse reconhecimento em relação ao seu trabalho e a sua trajetória?

Jamais! A Giovanna, que era uma criancinha, que cresceu em um bairro chamado Campo Alegre e hoje está sendo indicada ao prêmio Troféu de Imprensa, que é um prêmio ao qual parte de um lugar muito conservador de comunicadores e comunicadoras que estão em um lugar de prestígio e também de mídia tradicional, é um prêmio que está de alguma  sub representando e hoje buscando incluir a diversidade para suas categorias e eu to ali justamente na categoria de diversidade, o que é o mais engraçado. Mas que ao mesmo tempo é muito gratificante, significa que a minha narrativa tá sendo meramente reconhecida, ela tá servindo também como base para que tantas outras pessoas como eu consigam pensar na possibilidade de acessar esse espaço. 

Você se define como travesti, uma identidade não-binária latino americana. Como o conteúdo que você traz se relaciona com a sua vivência?

Ele se relaciona com a minha vivência a partir do momento que ele parte uma narrativa trans. E independente do contexto ou do tipo de conteúdo que eu estou produzindo, é importante ressaltar de onde é essa narrativa. É importante para mim evidenciar esses espaços e que eu sou uma travesti, preta. Me reafirmar enquanto travesti ocupando os espaços que eu tô para além dos atos políticos. reconhecer que sua identidade latino americana e que ela não existe em nenhum outro canto do Brasil que não aqui, é a partir daqui que a gente constrói uma narrativa única. Então quando eu me reafirmo como travesti, eu quero evidenciar tantos outras que me antecederam e quanto esse movimento é simbólico é necessário.

A Giovana do agora, que compartilha sua vida, o seu conhecimento na internet, é o resultado do seu processo de reconstrução?

Com toda certeza, a Giovanna do ontem já foi muito baixa, escrota, desnecessária, ao mesmo tempo, também que ela foi muito potente e fortalecedora da Giovanna do hoje. Eu acredito que a gente tá sempre buscando se desconstruir, mas não existe a desconstrução uma vez que você precisa reconstruir algo a partir do que você desconstruir, então eu quero dizer que hoje eu acredito muito que tudo que eu vivi anteriormente está conectado ao meu presente e ao que estou construindo para o meu futuro. Porque eu acredito numa lógica de tempo que não é eurocêntrica, entre passado, presente e futuro, mas que parte de uma diáspora africana. Onde o tempo é ancestral, circular e pode ter múltiplas possibilidades. Eu tô construindo o hoje porque ontem tinha uma criança, uma adolescente que não sabia como se construir e que hoje tá aí pensando no seu amanhã e isso é muito gratificante. Então, muito obrigada!

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