Humanos.exe
Como extensões do corpo humano, as tecnologias digitais geram dependência em seus usuários
Repórteres:
Kaio Veloso e Paulo Carvalho
“Como extensões de nosso próprio corpo, de nossas próprias faculdades, quer se trate das roupas, habitação, quer se trate dos tipos mais familiares de tecnologias, como as rodas, os estribos, que são extensões de várias partes do corpo. A necessidade de amplificar as capacidades humanas para lidar com vários ambientes dá lugar a essas extensões tanto de ferramentas quanto de mobiliário. Essas amplificações de nossas capacidades, espécies de deificações do homem, eu as defino como tecnologias”.
Marshall McLuhan, 2005.
O pensamento de McLuhan, retirado do seu livro "McLuhan por McLuhan: conferências e entrevistas" de 2005, se mostra atual mesmo passados anos da fala cujo trecho usamos para dar início a esta fotorreportagem. E poderia ser diferente? A cada período histórico, a humanidade avança tecnologicamente. Um dia, ferramentas primitivas para potencializar a caça. Depois, com o agrupamento em aldeias, o ser humano manteve sua evolução tecnológica, com o desenvolvimento da agricultura, a domesticação de animais e o avanço no desenvolvimento da linguagem. Muitos séculos mais tarde, a revolução industrial trouxe inovações que mudaram para sempre a vivência humana. Hoje, a tecnologia da informação e comunicação, em suas múltiplas formas, ocupa nosso cotidiano de maneira tão intensa que, por vezes, nem notamos tamanho o nível de assimilação que fizemos de seu uso. Como protagonistas nesta vivência contemporânea, dispositivos técnicos, como computadores e smartphones foram apontados pelo casting desta produção especial como principais presenças em seu cotidiano, indicativo de uma relação de dependência tão intensa que fica difícil saber onde termina o ser humano e onde começa a máquina. Com essa reflexão em mente chegamos ao título da fotorreportagem - exe é o nome de uma extensão para o funcionamento de aplicativos e software, desenvolvida para o sistema operacional do Windows Microsoft. Trata-se de uma extensão bastante comum, que permite extrair arquivos e armazená-los. Pensando na forma como as tecnologias digitais se fazem presentes hoje, podemos compreendê-las como extensões do próprio ser humano.
A presença constante e a dependência que tais aparelhos trazem ao cotidiano se reflete em números. Na pesquisa “Uso da TI - Tecnologia de Informação nas Empresas”, divulgada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), foi declarado que o Brasil possui 440 milhões de dispositivos técnicos como computadores, tablets e smartphones. Isso equivale a dois aparelhos por habitante. Encontrá-los não é difícil, já descobrir o que se pode fazer sem eles… Na mesma direção, a pesquisa TIC Domicílios 2020, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC), demonstra que aproximadamente 61,8 mi de domicílios no Brasil estão conectados à internet, um aumento de 12% em relação a 2019. Além disso, em 33 milhões de domicílios há computador e internet e, cerca de 152 milhões de brasileiros, entre o público acima de 10 anos, são usuários de internet.
Essa relação com a tecnologia de informação se intensificou com as restrições impostas pela pandemia de Covid-19. Compras de supermercado por aplicativos, delivery de medicamentos, consultas online, home office, uso intensificado de aplicativos de troca de mensagens… as janelas do mundo transformadas pelas mídias sociais.
Os participantes desta fotorreportagem, estudantes do ensino superior que tiveram suas rotinas reconfiguradas desde o início da pandemia, revelaram suas experiências, sensações e desejos frente ao uso constante da tecnologia. Se, por um lado, abriram-se possibilidades de entretenimento e trabalho; por outro, houve momentos em que tudo o que desejaram foram instantes sem o bombardeamento de informações que se traduzem em notificações e hábitos cristalizados quase como vício. Os smartphones foram referidos como os preferidos para realização das tarefas diárias. Eles estão presentes ao acordar e ao adormecer, guardados no bolso ou na bolsa, a postos para serem usados por mero impulso, como meios de entretenimento em filas, passeios e rodas de conversa nas quais faltam assuntos, para assistir séries, adquirir informações em sites, mídias sociais e newsletters. Tudo a um clique de distância. Usados seja para consumir ou para produzir conteúdos, para eternizar momentos em fotos ou vídeos, para conversar com pessoas distantes, estreitar laços e começar novos relacionamentos, ou simplesmente para passar o tempo, ocupando os dedos em algum jogo para baixar em uma app store, não foi surpresa o fato de terem sido apontados como responsáveis pelo esgotamento e pela ansiedade. Sobram desejos por respiro, ainda que por alguns instantes, pois parece cada vez mais difícil imaginar uma vida sem eles, que avançam a cada novo modelo lançado, que aglutinam mais e mais funcionalidades.
Ao retomar o conceito de ciborguização (como definido por Donna Haraway em seu “Manifesto Ciborgue”, livro de 1984), em que homem e máquina tornam-se um só, ser híbrido orgânico e mecânico, capaz de coisas que somente a ficção pode nos fazer imaginar, a interação com smartphones nos provoca: será que a realidade se transformou para nos aproximar de um filme de ficção científica? O que sabemos é que, ainda que distante dos cenários pós-apocalípticos da literatura e do cinema, esta realidade está aí, acompanhando-nos como parte do cotidiano e transformando tudo ao redor, o que inclui, é claro, nós mesmos.
“As máquinas do final do século XX tornaram totalmente ambígua a diferença entre natural e artificial, mente e corpo, auto desenvolvido e externamente projetado, e muitas outras distinções que costumavam se aplicar a organismos e máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas, e nós mesmos, assustadoramente inertes”. Donna Haraway, em “Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia, feminismo-socialista no final do século XX”
Donna Haraway, 1984.
Qual a sua relação com as tecnologias? Qual funcionalidade você mais usa? Em quais momentos não é possível se imaginar sem elas? Essas foram as perguntas norteadoras do percurso criativo para Humanos.exe. Organizados de forma similar ao feed de uma das mídias sociais mais referidas, cada registro - tal qual um fio - contém uma micronarrativa que aborda as experiências das e dos fotografados. Juntos, esses recortes contam uma história comum, sobre a dependência de dispositivos digitais criados pela própria humanidade e de como traços de tecnologia de informação e comunicação impactam subjetividades, seja alterando hábitos e prejudicando o equilíbrio entre online e offline, seja possibilitando novas experiências e possibilidades.
Agora é com você. Descubra já qual funcionalidade você mais usa e com qual personagem você mais se parece no nosso quiz.