Ilustração: Thulio Souza
Seguir, curtir, dar match
Relacionamentos online ampliam alternativas para gerar conexões
Repórteres:
Bárbara Machado, Laryssa Lima, Letícia Santo e Thulio Souza
A internet é o principal local dos encontros que não acontecem cara a cara, mas imagem a imagem. Com o impulsionamento da tecnologia, a dinâmica dos relacionamentos agora é outra.
No livro intitulado "Relacionamentos Amorosos na Era Digital", as pesquisadoras doutoras em Psicologia Adriana Nunan e Maria Amélia Penido defendem que os relacionamentos virtuais possuem duas vertentes. A primeira agrupa os casais que se conhecem presencialmente e, por questões de localização geográfica, migram o contato para o ambiente virtual, por meio de aplicativos de mensagem e mídias sociais; a segunda considera quem inicia o contato diretamente nas plataformas digitais, e é quando as pessoas optam por esse meio que sites e aplicativos de relacionamento ganham força.
Em meio às diferentes formas de se relacionar, estudos sociológicos e comportamentais emergem e ressignificam conceitos. Estudiosos como a doutora em Ciências Sociais Alejandra Saladino, por exemplo, repensam a ideia de modernidade líquida, já desde a década passada, bem como sobre como as projeções do passado afetam os relacionamentos afetivos atuais, que são, cada vez mais, superficiais e passageiros.
O conceito de amor líquido e a fragilidade dos laços construídos na modernidade surgem a partir de estudos do filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), e ganham força em contextos sociais de significativas mudanças tecnológicas. Pensando nas novas maneiras de interagir e de se relacionar, o online congrega ferramentas poderosas que permitem mais do que a troca de afetos: proporcionam novos mundos e novas identidades.
O Tinder, por exemplo, é o principal aplicativo de relacionamentos da atualidade e quebrou o recorde de uso ao alcançar a marca de três bilhões de swipes – movimentos de deslize – em um único dia, em 2020. Os swipes indicam o interesse ou não em uma pessoa a partir do seu perfil no aplicativo.
Esse acontecimento foi possível a partir do isolamento social decorrente da pandemia do novo Coronavírus, que transformou relações e fez com que muitas pessoas buscassem se conectar por novos meios. Além disso, com o distanciamento, a necessidade de afeto foi amplificada em proporção semelhante à solidão sentida por muitos. Isso revela que, quanto mais sozinhas as pessoas estão, mais elas buscam diferentes maneiras de se conectar, o que impulsiona o surgimento de relacionamentos na internet.
As relações online, porém, não se restringem ao Tinder ou a aplicativos semelhantes, perpassam as mídias sociais, como Instagram e Facebook, plataformas como o Omegle e até mesmo jogos de realidade virtual.
Status: Em um relacionamento sério
Em nossa sociedade, a forma como as pessoas lidam com seus relacionamentos vem se transformando incessantemente. Isso porque a maneira de demonstrar amor pode estar vinculada às mídias sociais e às visualizações daqueles que nos acompanham ali.
Por isso, postar uma foto com seu parceiro (a), curtir publicações, comentar e enviar postagens via direct funciona como um grande ato de amor. Da mesma forma, o interesse se ressignifica e é preciso entender o que é considerado traição ou quais as marcas do fim de um relacionamento nos novos modos de convivência.
Exemplo recente é o término de um affair por meio de um post no Instagram, sem comunicado prévio ao parceiro. Foi o que contou a advogada criminalista Deolane Bezerra em uma entrevista ao canal do YouTube PodCats, apresentado pelas influenciadoras digitais Camila Loures e Virgínia Fonseca.
Situação semelhante aconteceu com os jovens influenciadores Jade Picon e João Guilherme, que terminaram um relacionamento de quase três anos no fim de agosto de 2021. Diferente da advogada, o término já havia sido conversado pelo casal, mas só foi oficializado a partir de postagens no Instagram que informaram público e mídia sobre o fim de um ciclo.
Em uma outra perspectiva, é comum que pessoas que se relacionam há algum tempo sejam consideradas, de fato, um casal após a primeira postagem nas mídias sociais. E, pensando em como eu me vejo no mundo, é perceptível que a vida real parece só ser oficializada para os ciclos de convivência após o relacionamento ser publicado online. Tal qual os términos são percebidos pela ausência ou pela exclusão de fotos no Instagram.
Para entender melhor essa questão, conversamos com a sexóloga Bruna Coelho, 34, que trabalha há dez anos com casais do mundo inteiro a fim de entender novas formas de relacionamento. Para ela, a explosão da internet fez com que os casais também fossem se adaptando à nova era.
Ilustração: Thulio Souza
“Essa nova geração está mais conectada, eles são nativos digitais, então conseguem ter mais habilidade para lidar com isso. É uma questão também de adaptação às mudanças. Temos por um lado uma facilidade em comunicar e informações mais expressas. E, por outro lado, também novas ideias do que seria essa linguagem.Por exemplo, o flerte com as curtidas e como é essa abordagem para paquera. Em relação aos namoros, como é o acordo do que é permitido em relação ao comportamento na rede social, desses limites do relacionamento e até mesmo o que configura traição, por exemplo.”
Bruna Coelho, 34, sexóloga
Bem-me-quer, mal me quer
Tuany Vergara, 26, viveu uma história interessante ao conhecer seu grande amor no Tinder, quando tinha apenas 18 anos. Em 2014, Tuany buscava conhecer pessoas, fazer amizades e, quem sabe, até viver um romance. Foi quando começou a usar o aplicativo. Funciona assim: a partir de fotos e uma breve descrição de si, as pessoas deslizam os dedos nas telas dos seus celulares para a direita ou esquerda, indicando interesse em conhecer alguém. Caso o movimento seja recíproco, uma janela de bate-papo pode ser iniciada.
Algum tempo depois, cansada da forma como os relacionamentos surgem, Tuany decidiu curtir o perfil de todas as pessoas que apareciam. E, em 25 de julho daquele mesmo ano, ela começou a conversar com Matheus.
Do Tinder, a relação seguiu para o WhatsApp, aplicativo de troca de mensagens instantâneas. Tuany Vergara já sabia que, talvez, aquele fosse mais do que um simples match. A amizade floresceu a partir das afinidades e passou para um novo patamar comunicativo: as conversas por mensagem de texto cederam espaço às chamadas de vídeo no Skype, plataforma de troca de mensagens, ligações e videoconferências.
Tuany e Matheus passaram a fazer parte da rotina um do outro, embora nunca tivessem se visto pessoalmente. A grande “virada” da relação se deu no carnaval de 2015, embora o rapaz não fosse exatamente o que Tuany esperava. Quer saber o desfecho dessa história? Então ouça o relato completo!
Ilustração: Thulio Souza
A psicóloga especialista em relacionamentos Joyce Garbazza, 31, explica como alguns comportamentos podem nos afetar e impactar em nossas relações. Ao ser questionada sobre as influências dos aplicativos e sites de relacionamentos, ela conta que
Ilustração: Thulio Souza
“Infelizmente, temos vivenciado relações frágeis em que, geralmente, as trocas são sexuais e com pouca intimidade afetiva. Percebo que as pessoas têm se perdido em um jogo, em que não é permitido mostrar o seu total interesse a pessoa com a qual está se relacionando. Vejo que os aplicativos contribuem e facilitam essa interação, é importante que as fotos sejam verdadeiras vitrines para que o outro possa apreciar e decidir se vale a pena ou não iniciar uma conversa. Procedimentos estéticos e filtros nas fotos são cada vez mais comuns, buscando passar uma imagem de perfeição, como se o perfeito sempre fosse aceito e amado.”
Joyce Garbazza, 31, psicóloga e especialista em relacionamentos
Quase sete anos depois do primeiro like, Tuany e Matheus ainda vivem um relacionamento sólido e saudável. Esta é uma entre tantas outras histórias com “final feliz", fato que revela que, apesar das nuances de se relacionar online, é possível viver algo sincero mesmo no universo offline. Isso porque ainda que as percepções sobre a outra pessoa tenham sido diferentes a partir do primeiro contato presencial, a intimidade conquistada nos aplicativos traz consigo a essência dos dois indivíduos.
Afeto e imagens
Bárbara Reis, 26, conta uma história que aconteceu quando tinha entre 14 e 15 anos de idade, em meados de 2018. Tímida, com poucas amizades e uma vida bastante regrada pela vivência religiosa determinada por sua mãe, Bárbara se sentia presa e infeliz em seu mundo. Naquele momento, percebeu nas mídias sociais uma espécie de refúgio na rotina.
Fã de animes, um tipo de desenho animado japonês, ela descobriu no extinto Orkut, uma rede social conhecida, dentre outros motivos, pelas comunidades criadas e pelo grande volume de contas falsas, uma comunidade de fakes de Naruto. Foi ali que Bárbara pôde se reinventar a partir de uma Sakura, personagem do desenho, colorida de vermelho e amarelo.
Em suas interações na comunidade, conheceu Joyce, que apresentou a ela seu irmão "Freegells", em alusão à marca de balas. Entre conversas no Orkut e Windows Live Messenger (o popular MSN) e por mensagens SMS no celular, Bárbara e Freegells — que ela viria a descobrir que se chamava Arthur — construíram um relacionamento amoroso.
Embora Arthur fosse tímido e não conversasse muito por ligações, ele já havia enviado fotos e aparecido por alguns minutos em chamada de vídeo, o que foi suficiente para nutrir o início do relacionamento. Mais tarde, entretanto, Bárbara viria a descobrir mais detalhes sobre a relação de Arthur e Joyce. Quer descobrir o desfecho surpreendente desse caso? Então, aperte o play e saiba de tudo!
Ilustração: Thulio Souza
Sobre como lidar com a frustração ao descobrir que uma pessoa é diferente do que dizia ser pelas telas, Joyce Garbazza questiona se “foram as suas expectativas sobre como a pessoa seria que foram frustradas?” Em caso afirmativo, ela completa: "A pessoa não necessariamente mentiu, você pode tê-la idealizado. Esse sentimento é complexo e difícil de lidar e podemos, por vezes, responsabilizar os outros por uma frustração que é nossa.”
Contudo, a psicóloga ressalta que “Por outro lado, se ela fingiu ser algo que não era, aí sim a responsabilidade é dela e é importante devolvermos essa responsabilidade, não de maneira agressiva, mas de forma a nos lembrar de que não temos culpa de acreditar no que nos foi dito.”
A vida por trás das telas cria oportunidades para que cada um molde a sua própria imagem e realidade àquilo que deseja demonstrar. Seja nas mídias sociais, via melhores recortes da rotina ou ângulo para fotos, seja nos aplicativos de relacionamento, a partir da escolha estratégica de imagens que favoreçam atributos físicos ou que remetam a um determinado comportamento ou personalidade, esse universo possibilita que sejamos quem realmente queremos ser em um espaço em que são gerados milhões de dados por minuto.
Tudo isso pode ser explicado por diferentes motivos, que perpassam desde a autoimagem e a autoestima, até crimes cibernéticos. Afinal, a possibilidade de reconfigurar a própria identidade e de viver diferentes versões de si pode ser tentadora para quem experimenta diversas inseguranças no dia a dia.
Fakes também amam
A interação que deixa de lado o contato físico cria um ambiente em que as imagens importam ainda mais. Ao criar um perfil, o usuário passa pelo processo de seleção das suas melhores fotos, a fim de se apresentar de forma mais atraente na cartela de pretendentes.
A psicóloga Joyce Garbazza conta que pessoas com baixa autoestima podem acabar recorrendo aos fakes na tentativa de se passarem por outras pessoas para participar da dinâmica virtual. "Isso pode ser reflexo da dificuldade em lidar com aspectos que percebe de si mesma e cria um perfil paralelo, onde ela se sente desejada, aceita e aprovada socialmente", conclui.
Este é o caso de Mahyara Oliveira, 25, que, em 2010, utilizava o Orkut a fim de equilibrar uma rotina pacata, em que ia para a escola, não tinha muitos amigos e, inclusive, sofria bullying por parte de alguns colegas. Ao retornar para casa, ela imediatamente se conectava ao mundo online.
Mahyara conta que, quando tinha cerca de 14 anos, ansiava por novas experiências. Naquele período, ela percebeu que seu maior desejo era poder ter outra vida, contar uma nova história e realmente ser a Mahyara, mas sem mostrar sua verdadeira face, pois ela reconhecia ser uma companhia agradável, ainda que com traços de insegurança.
Mas a história que começou no Orkut ganhou novas proporções quando chamadas de voz e ligações via Skype passaram a fazer parte da rotina. Mais do que isso, seu grande momento foi quando Mahyara, sendo David, conheceu Ana* (alteramos o nome a pedido da fonte para preservar sua identidade). Quer saber como? Então ouça o relato completo!
Ilustração: Thulio Souza
No relato em áudio, Mahyara conta quais foram as suas motivações para criar o perfil falso, em que se passava por David. Aspectos como a distorção da autoimagem e a baixa autoestima, que estão comumente relacionados, são dois dos principais motivos pelos quais ela tomou a decisão. É interessante observar que essas duas características são comuns tanto a pessoas que criam contas falsas quanto a pessoas que, por idealizar a imagem de alguém e se acomodar com aquele afeto, vivenciam esse tipo de relacionamento.
Mahyara conta que encontrava em seu fake uma versão de si que ela realmente admirava e acreditava ser capaz de se relacionar com outras pessoas. Porém, a jovem não imaginava que uma fuga da própria realidade poderia se tornar um problema amoroso. Mas, mais do que isso, ela sequer pensava sobre as implicações de forjar uma nova identidade para si.
Porém, é preciso ter cuidado para diferenciar fakes que querem se divertir daqueles em que a pessoa por trás das telas pode, de fato, ter uma má intenção, viu? Desde perfis criados para perseguir pessoas, o que ficou conhecido como stalkear, até contas que praticam vendas falsas, atos de difamação e crimes sexuais, as possibilidades são inúmeras quando não se sabe quem está do outro lado da tela.
Para além das implicações que acreditar em um fake pode trazer para a pessoa que sofreu o crime, há soluções legais para amenizar suas consequências. É possível, por exemplo, realizar uma denúncia por falsidade ideológica, além de registrar boletins de ocorrência e ajuizar processos de acordo com o crime cometido pela conta falsa.
Dessa forma, com os recursos legais, encontrar a pessoa por trás do perfil será muito mais viável. Além disso, em 2012 foi sancionada a Lei Carolina Dieckmann, Nº 12.737/2012, que é voltada para repressão de crimes virtuais e delitos informáticos.
Joyce, que é especialista em relacionamentos, explica como ser enganado por um perfil falso pode afetar as pessoas.
Ilustração: Thulio Souza
“Pensando que a nossa autoestima pode ser afetada a qualquer etapa da nossa vida e que algumas fragilidades nos acompanham desde a nossa infância, ser enganada por um perfil falso nas redes sociais pode despertar gatilhos emocionais, que podem levar a pessoa enganada a duvidar de si mesma, pois ela pode erroneamente acreditar que não merece o afeto verdadeiro, além de poder atribuir a si a responsabilidade de ter sido enganada.”
Joyce Garbazza, 31, psicóloga e especialista em relacionamentos
Entender como a Ana* e tantas outras pessoas se sentiram após descobrirem viver uma relação com alguém que não é quem diz ser, é difícil. Afinal, cada um vivencia e percebe o mundo e as pessoas ao seu redor de forma diferente. Mas, uma coisa é certa: nutrir sentimentos por alguém que, teoricamente, não existe gera uma grande frustração.