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Curinga: Sem ser uma pessoa envolvida na política prática, nas questões do dia-a-dia enquanto cidadã brasileira, como você acha que acontece a participação ativa na democracia?

Aline Sousa: Uma das coisas que eu valorizo muito na estrutura governamental democrática é quando você traz as pessoas envolvidas e interessadas para o circuito do diálogo, quando você cria instrumentos para essas pessoas participarem, e decidirem também. Quem governa, vai trabalhar para o povo, que é quem tem que dizer o que quer e como quer ter acesso a isso ou aquilo. Então, eu acredito que, voltar com os conceitos participativos, com as conferências, trazendo o diálogo, diariamente, é uma forma de praticar a democracia. Mas, como cidadã, eu acredito que cada um de nós tem uma missão (principalmente quem tem esse perfil de liderança, como eu). A gente pode fazer muito além do que já fazemos na nossa caixinha ali de trabalho. Você começa a atuar, sabe? Começa a repreender quando vê atitudes que ferem o direito de alguém, quando você passa a se posicionar diante do seu conhecimento do que é certo e do que é errado, você pratica a democracia.

Por exemplo, um Governo tem uma política de higienização, de retirar os catadores da rua, e a gente (o Sindicato) fala para eles (os sindicalizados) se prepararem, se planejarem e construírem medidas concretas para poder dar condições alternativas para esse público e não repreender, não prender, não derrubar, queimar, levar os resíduos, que são os instrumentos de trabalho e tudo mais. Então, é começar a quebrar esses paradigmas e começar a enfrentar e defender também. E não só defender para si, defender o coletivo. Então, eu acho que a prática da democracia vem nisso, vem na reação das pessoas que tem o entendimento do que está certo e o que está errado; e defender não só a si, mas o próximo.

 

C: Em decorrência das eleições presidenciais de 2022, a democracia virou um tema de muitos debates. Você acredita que o significado da palavra tenha sido desfeito ou ganhado um novo sentido?

 

 

 

Quem não precisa da prática da democracia não vai defender, obviamente, como as grandes corporações. Em quantidade, na lógica, não somos um país com 90% de brancos, não somos um país com 90% de ricos. Então, não faz sentido irmos contra uma ferramenta que vai garantir o direito às pessoas que precisam. O que dá a entender disso é que uma grande parte da nossa população está sendo “induzida” para o outro lado, não sei se essa é a palavra correta. Porque cada um também pensa da forma que quer, é livre para escolher, mas é a forma como a informação chega nas pessoas, e informação é poder…Então, não é uma mudança de significado e sim uma distorção do que é importante para o povo.

 

C: Como você, mulher, negra, mãe, estudante e catadora, definiria a política no Brasil? 

A.S: Eu não entendo muito de política, eu pratico política, mas a fundo, e se tornar uma cientista política está longe ainda. Mas a gente tem um catador que é cientista político,o Alex Cardoso do Rio Grande do Sul. Ele se formou e é ele que faz as análises de conjunto nas nossas rodas de conversa. Do que eu vejo, do que eu leio, do que eu ouço, do que eu participo, no âmbito mundial, eu vejo que para a nossa realidade do Brasil, não tem um outro modelo governamental, porque o Brasil já teve um modelo de ditadura, que não foi bom. E eu acredito também que mesmo sendo um lugar democrático, onde somos livres, ainda há algumas prisões e limitações que seguram o nosso país. Por força externa não somos 100% democráticos. É uma democracia que está sujeita a um outro sistema [capitalista]. Então, eu ainda não consigo ver isso [uma democracia saudável] porque se fosse um país cem por cento democrático não era pra ter uma sociedade [desigual] da forma que tem hoje. O Brasil demoniza o sistema que traz equidade social, igualdade, oportunidade pra quem não tem acesso às coisas. Eu acredito no poder da democracia. Tanto acredito, que participei do ato de consagração deste poder. O que a gente precisa na verdade não é discutir um modelo, e sim, decidir quem vai praticá-lo.

 

C: O que você considera, atualmente, como um dos fatores mais prejudiciais para a democracia no país? 

 

A.S: Acho que o que acerta, assim, no coração da democracia, é a gente achar que ela existe e, na prática, saber que ela não existe. Eu acho que isso vem de tirar o povo dos espaços e, diariamente, construir modelos democráticos e novos modelos de economia, de sociedade, de trabalho, desconsiderando o povo. Por que a democracia é o quê? É o poder do povo. E quando você desconsidera esse povo você falha. E foi isso que a gente assistiu, né? Porque quando você ataca o sistema de votação, em que é o povo que decide, seja favorável a sua opinião ou não, é o povo que decidiu. Se a maioria decidiu Bolsonaro, a gente vai ter que aceitar Bolsonaro; se a maioria decidiu Lula, a gente vai ter que aceitar Lula, se a maioria decidiu Tebet, a gente vai ter que aceitar Tebet. É um instrumento democrático de legitimidade. Então, quando você tira esse poder de escolha do povo e fica concentrado em uma minoria, essa minoria vai decidir o que convém, o que é de interesse dela. Eu acho que a principal doença que tem, o principal câncer hoje que pode ter no Brasil, que vai contra a democracia, que vai contra esse modelo, é quando você retira do povo o seu principal estado soberano. E aí a gente quebra todo o Estado Democrático de Direito.

 

C: Você comentou agora sobre a soberania do povo, mas o que acontece quando o povo se divide, como temos observado?

 

A.S:  Às vezes fica até contraditório dizer que a democracia é o poder do povo, quando parte desse povo utiliza a democracia para fazer o que faz. Por exemplo, eu faço parte de uma cooperativa onde nós trabalhamos juntos pelo bem-estar do grupo, mas, durante quatro anos, tivemos uma pessoa que era militar, que focou nos próprios interesses para ter força em meio a um determinado público, que utilizou esse espaço, as esferas da democracia, para inflar o desejo desse grupo que utiliza de discursos de ódio. Fica óbvio que esse pessoal não vai agir com interesse do povo e sim com interesse próprio. Temos que colocar no governo pessoas que tenham pauta e ações para o bem coletivo e não que defendem, por exemplo, a ditadura militar, que vai beneficiar apenas um pequeno grupo. Dentro dessa lógica, qualquer um poderia ocupar a cadeira de presidente, com qualquer formação, qualquer especialização, desde que o desejo dele esteja abaixo do desejo do povo e respeite o princípio maior do nosso país que é o Estado Democrático de Direito e as instituições que o compõem. Quando eu ocupo um cargo, eu tenho as minhas vontades, mas elas jamais poderão se sobressair do desejo dos demais catadores que me colocaram aqui. São duas coisas que não combinam para mim: uma igreja com sistema militar e uma mídia desregularizada. 

 

C: Você participou de um dos momentos mais marcantes da história recente do Brasil, com um grande significado e que foi muito comemorado por pessoas que se vêem em você. Você se considera um símbolo da democracia brasileira?

 

A.S: Seria muito imaturo da minha parte dizer: “é, eu represento a democracia! Eu sei o que é democracia! Quer saber o que é, então fala com a Aline!”. É tudo muito novo para mim. O meu mundo era limitado à reciclagem e à luta pelos direitos da nossa categoria. Seria leviano da minha parte me ver desse jeito. Eu quero, sim, trabalhar no rumo da democracia, quero ajudar a promover melhoras para a categoria. Mas não sou eu quem decide por eles; nós, no coletivo, decidimos juntos. Não estou dizendo isso para sair como uma boa samaritana, não! Eu acho que quando buscamos conhecimento, vemos aqueles que vieram antes de nós, acabamos fazendo uma comparação e dizendo: “não, o que eu faço hoje também é democracia”. Eu sei que o nosso coletivo é quem de fato representa a democracia. Mas eu sei, também, que eu posso acabar me tornando um ícone de representação da democracia, porque eu sou todas as categorias que compõem o processo democratico, lutam por ele e sofrem com as perdas também, que é a mulher, negra, mãe, pobre, estudante e ativista.

 

C: Qual o papel da militância em um governo democrático e como você utiliza da sua voz para falar sobre assuntos que normalmente não tem visibilidades, como no caso das condições de trabalho de catadores de resíduos?

 

A.S: Essa pergunta é boa porque é quando eu apareço, né? Quando as pessoas e o mundo passam a conhecer a gente. Eles não sabiam nem quem eu era. Para você ver o tanto que as pessoas não nos conhecem. Até na nossa própria casa, que é no nosso país, você vê pelas manchetes “uma mulher negra coloca a faixa no presidente”. E olha que aquela mulher negra estava com identidade visível para o mundo, além de mulher negra, eu sou catadora. Eu estava com a nossa camiseta do Movimento Nacional de Catadores que é a nossa identidade, o símbolo de um movimento que já tem 20 anos de luta no nosso país, que representa uma parcela de 801 milhão de catadores e catadoras. Nós somos milhares aqui no Brasil. Como as pessoas não nos conhecem? Não sabiam que aquela blusa era do Movimento Nacional de Catadores? As redes sociais digitais mostraram muito claramente que as pessoas não sabem como funciona, não sabem a importância do que representamos, não sabem sobre o nosso trabalho.

Foto: Anthony Christian

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Aline Sousa fala sobre o papel da sociedade civil na luta pela melhoria da democracia e do planeta

Mariana Marques e Erika Vicenti/ Fotos: Eduarda Dias e Matheus Victor — Março, 2023

Diante de um momento delicado para o cenário político no Brasil, o mundo assistiu à democracia nacional passar por seu ciclo natural, com muitas expectativas e emoções variadas, no dia primeiro de janeiro de 2023. Em algo que podemos definir como um espetáculo visual, que demonstrou força e união, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) subiu a rampa do planalto, em Brasília, acompanhado de representantes da diversidade sócio-cultural do Brasil e tomou posse do cargo de presidente, eleito por meio do voto popular, tendo a faixa presidencial colocada por uma mulher, negra, mãe, catadora, estudante e ativista.

Aline Sousa é presidente da Central de Cooperativas de Trabalho de Materiais Recicláveis do Distrito Federal  (CentCoop) e atua na defesa dos direitos dos catadores de resíduos e do meio ambiente. Da noite para o dia, assistiu sua vida ser foco mundial, sendo alvo de mensagens de apoio e elogios, assim como críticas e ataques virtuais, por defender e participar de um momento importante para o sistema democratico - que vem passando por desafios e ameaças, assunto que ela aborda nesta entrevista.

Aquela faixa e a repercussão que deu, eu agradeço muito a Deus por isso. Porque isso me trouxe um discernimento e uma sabedoria para conduzir e aproveitar aquela visibilidade. Aproveitei para falar da política nacional de resíduos sólidos que poucas pessoas conhecem. E para falar do nosso trabalho, da realidade dos catadores no país, para falar da gente, da nossa identidade - e temos muito orgulho dela! Temos vários desafios e tentamos aproveitar para trazer um dos principais problemas atuais, que é o consumismo da sociedade, porque o ciclo do resíduo não acaba quando você bota o lixo na sua porta. Muito pelo contrário, os ciclos dos resíduos só começam quando o caminhão passa na sua porta e leva embora. Nós, catadores, somos instrumentos. Na nossa concepção, vem primeiramente a sobrevivência, a gente quer reciclar pra ter uma renda, para poder sustentar nossas famílias. Mas a gente sabe dos impactos do nosso trabalho para a sociedade, que é uma questão de saúde pública. Será que a gente tem mais uns 10 planetas reserva para quando destruirmos este, podermos mudar para outro? Então, estamos garantindo às futuras gerações que reciclagem é vida. Ela é o braço direito e esquerdo do meio ambiente. 

 

C: De acordo com a sua experiência, como é possível equilibrar democracia e cuidados com o meio ambiente?

 

A.S: Como eu já disse, a decisão certa ou errada está nas mãos do povo e é a mesma coisa em relação ao meio ambiente: tudo, não só sobre a coleta de resíduos, faz parte da decisão do povo. Acabamos de superar uma estrutura de decisão de um dos principais órgãos que deveriam defender o nosso ecossistema, que era o Ministério do Meio Ambiente, onde ficou entendido, por um longo tempo, que quanto mais destruir o nosso ecossistema, melhor para a economia do país. Não tinha um olhar ambiental, um cuidado. Era explorar, queimar, aterrar, degradar, sabe? Ao trazermos alguém que não apenas vive a questão ambiental, nasceu nesse meio, mas também estudou sobre isso e sabe como lidar com esses dois fatores, que é o caso da nossa até então ministra Marina Silva, alguém que traz essa conexão e trabalha com respeito ao meio ambiente e o desenvolvimento, as coisas melhoram. Não tem como você querer gerar dinheiro de algo que você não cuida, e que vai precisar para garantir a própria vida. Desmata tudo, acaba com a nascente, não tem mais água. Você não vai precisar de água pra viver? 

Para cada problema na sociedade, eles vem com projetos faraônicos e milagrosos que até a gente se surpreende; traz uma planta milagrosa da Europa, que já foi recusada por outros países, mas chega aqui e quer vender e gerar uma calamidade ainda maior, em um país com a saúde pública já fragilizada, usar uma coisa dessas que pode gerar câncer nas pessoas, problemas respiratórios, sabe? Nem aterro sanitário é uma tecnologia muito aceitável para nós, porque contamina o ambiente em volta, a água do rio, como estamos vendo acontecer aqui em Brasília no rio Melchior.

 

C: O nosso dossiê tem como proposta debater sobre o futuro da democracia e por isso, é oportuno te questionar: Para onde vai a democracia?

Reciclar o mundo

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A categoria de catadores de recicláveis tem um movimento organizado que luta pelo próprio bem-estar, mas também pelo da população.
Foto: Eduarda Dias

Aline subiu a rampa do planalto junto a outros representantes do povo para entregar a faixa/ Da esquerda para a direita: Aline Sousa, Flavio Pereira, Cacique Raoni Metuktire, Lula, Francisco Carlos do Nascimento e Ivan Baron/ Foto: Ricardo Stuckert

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 Quem não precisa da prática da democracia não vai defender, obviamente, como as grandes corporações
Aline Souza

 Nós devolvemos o Brasil para o mundo, voltamos para o circuito internacional, e para o próprio povo
Aline Souza

A.S: Não basta dizer: “é um país democrático”, tem que praticar. Existem diferenças de governança que têm a mesma nomenclatura, mas as práticas são distintas. Então, quando você realmente pratica a democracia, é visível. Antes as pessoas não ligavam muito para a política, sendo que tudo é política na nossa vida, até dentro de casa é política. Agora as pessoas querem saber, estão buscando informações, é por isso que tem toda essa disputa de informação certa ou errada que chega até as pessoas, porque é realmente uma disputa de mentes. 

Esse modelo de democracia que traz essa roupagem vem com o povo que sempre o defendeu, que é o povo que precisa dessa prática.

A.S: Ela vai para o mundo mesmo, né? O Brasil surpreendeu o mundo de tal maneira que recebemos diversos diplomatas aqui para presenciar esse momento tão importante (risos). Nós, defensores da democracia, nos tornamos alvos, mas nunca se tratou de mim, de vocês, e sim do modelo de sistema que defendemos. Quando o mundo vê o Brasil de ontem e o de hoje que está caminhando, nos tornamos exemplos a serem seguidos por outros países. Quando eles veem essa “fênix” que foi a

democracia brasileira, eles assistiram a uma aula, sabe? O Brasil foi professor. Porque depois de tudo o que passamos, voltar com toda essa força, esse poder, eles tiveram que vir aqui para garantir que era verdade. Nós devolvemos o Brasil para o mundo, voltamos para o circuito internacional, e para o próprio povo. Mas nós ainda temos muito o que melhorar, em relação a dar suporte para as minorias, combate às desigualdades, o que eu acho muito difícil de acontecer dentro de um país voltado para os interesses capitalistas. Tem muita gente que vem, tira tudo o que pode daqui e deixa a gente sem nada. Particularmente, eu não tenho muita esperança de que o mundo vai se libertar desse modelo, que querendo ou não, acaba indo contra a democracia. O sistema capitalista de acúmulo de riquezas vai contra o modelo democrático.

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