a Comissão Nacional da Verdade (CNV) não foi respeitada pelas forças militares. Esse pensamento não reflete os ideais da docente: “Eu falo porque eu sou militar de formação, a gente sempre ouve falando que foi uma revolução, então assim, as pessoas não falam que foi ditadura, que pessoas foram mortas e desaparecidas. A Comissão da Verdade nunca foi de fato respeitada pelos militares. Então, o que a gente percebe é que a gente não conseguiu passar esse processo a limpo”.
Mirian ainda explica que a formação baseada na visão do Exército, o racismo estrutural e a ideia de meritocracia implantada na sociedade brasileira condicionam, de alguma forma, o pensamento opressor das forças. Segundo a experiência de trabalho da pesquisadora em Segurança Pública, até mesmo quando trabalhou em grandes favelas da região de Belo Horizonte, policiais nascidos e crescidos naquele meio repetiam atitudes opressoras com os moradores. Isso acontece em função da ideia de superioridade daqueles que conseguem romper as barreiras e dificuldades da mobilidade social em relação aos demais.
A visão de Mirian é corroborada pelo atual Ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida. Em entrevista para o Poder 360, durante a 52ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), sobre a atitude violenta da polícia em relação às minorias, o Ministro destaca que o Brasil reproduz três tendências estruturais, sendo elas: o autoritarismo, a dependência econômica e o racismo. “O Brasil é um país forjado no autoritarismo, numa certa ojeriza, um certo problema com a democracia. A segunda tendência é a dependência econômica, desigualdade que gera pobreza e o terceiro é o racismo. A questão racial não é um elemento lateral, o racismo organiza as desigualdades no Brasil, organiza a violência, tanto a violência do Estado quanto a violência social”, disse Almeida.
A ausência de reflexão sobre essas condições históricas e contextos corrobora situações de violência no país e também pode culminar em situações extremas, como os ataques ocorridos em Brasília e pedidos por intervenção militar que ferem a democracia.
Arte/Montagem: Filipe Nicácio
Ações das Forças de Segurança no Brasil explicitam problemas estruturais herdados da Ditadura
Ana Flávia Domingos, Daisy Silva, Filipe Nicácio, Gabriel Rodrigo e Lorena Correia — Março/2023
No início do ano de 2023, houve um dos maiores ataques de presença popular à democracia brasileira. Uma agressão às instituições aconteceu quase 38 anos depois da redemocratização do país, explicitando problemas na formação das forças de segurança e policiamento.
No dia 08 de janeiro, o Brasil foi marcado por uma orquestrada tentativa de golpe, com participação de extremistas de todos os estados brasileiros. Segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), os vândalos moveram caravanas com cerca de 250 ônibus fretados e mais de 3.900 pessoas de todo país, com destino certo, rumo à sede da Presidência da República, em Brasília. De acordo com o jornalista Luís Nassif, os ataques tiveram semelhanças com a invasão ao Capitólio que aconteceu nos Estados Unidos em 2021. Em território nacional, o acontecimento não foi o primeiro. Em dezembro de 2022, houve uma tentativa de explodir um caminhão com bombas no aeroporto de Brasília. Pouco tempo depois, no dia da posse do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, também houve protestos violentos, com queima de ônibus.
Os ataques começaram às 15h e demoraram mais de duas horas para serem contidos. De acordo com as filmagens das câmeras de segurança do Supremo Tribunal Federal, foi apenas por volta das 18h que a multidão começou a se dispersar. Na noite do dia 08, Lula criticou a ação e a falta de proteção: “Houve incompetência, má vontade ou má fé".
Para o jornalista Luís Nassif, o erro das forças de segurança, responsáveis pela ordem do espaço público, se dá pela própria participação desses militares, muito antes do fatídico dia, nos protestos realizados em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília: “Houve negligência das forças armadas, que permitiram a montagem de acampamentos. A segurança dessas instalações é feita por eles. Então tivemos envolvimento direto das forças armadas muito antes”.
A atitude das forças de segurança e o comportamento da polícia diante da agressividade dos golpistas demonstram uma característica estrutural das corporações militares brasileiras. Segundo a professora assistente no Centro de Educação Aberta e a Distância da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e Doutora em Administração Pública, Mirian Assumpção e Lima, os fatos vistos no dia 08 confirmam um aspecto historicamente intrínseco à Polícia Militar (PM) brasileira, que é a falta de interesse em responsabilizar policiais da corporação: “a Justiça Militar não quer se comprometer, então ela não quer julgar os seus. Ela não quer em alguma medida entender se aquilo foi crime militar, se não foi”.
Heranças do autoritarismo
Histórico de repressão
Carro da Polícia Federal é vandalizado durante os ataques do dia 08 de janeiro - Foto: Joedson Alves/Agência Brasil
Apesar da promulgação da Constituição de 1988, segundo o cientista político Bruno Konder Comparato, o Brasil ainda não passou de forma eficaz pela justiça de transição, sendo isso fundamental para que haja a mudança entre um período autoritário e uma democracia: "Uma justiça de transição com processo de transição precisa ser oficial, o Estado tem que estar a frente disso, ou seja, é uma posição oficial. É um trabalho pedagógico mesmo. Olha-se os erros que foram cometidos e esses erros não podem voltar mais a acontecer”.
Bruno Comparato explica que justiça de transição é o processo de reconhecimento das violações dos direitos humanos cometidas durante uma Ditadura Militar. O processo, que é oficial, prevê responsabilização dos envolvidos com o intuito de gerar harmonia nas sociedades afetadas. Ainda para Comparato, a falta de eficácia da justiça de transição no Brasil é um dos motivos para a característica violenta das forças de segurança no país, uma vez que foram formadas no período da ditadura e treinadas para combater um “inimigo interno, medo da subversão, dos comunistas”.
Comparato ainda destaca que o processo dessa transição brasileira foi muito mais lento que nos demais países da América do Sul. Em um comparativo com outros países latinos, por exemplo, enquanto na Argentina a Comissão Nacional sobre desaparecimento de pessoas foi criada logo após o fim da ditadura e no Chile foi criada em 1990. No Brasil, a Comissão só foi instaurada cerca de 25 anos depois de anunciada a transição.
A falta de punição e julgamento dos envolvidos nos crimes da ditadura e a postergação desse processo, de certa forma, impede que haja uma reformulação do nosso modelo de polícia. Isso porque a manutenção desse caráter combativo, que é herança do Exército, não é repensado. Essa é também a visão da professora Mirian Assumpção e Lima, que chegou a atuar na Secretaria Nacional de Segurança Pública durante o primeiro governo do presidente Lula. De acordo com Mirian, a formação militar segue uma ideologia de preparo para o combate de guerra a partir do momento em que as forças policiais se tornaram reserva do Exército, em 1964, tendo perdido em parte o caráter civil do policiamento.
Essa decisão vigora até hoje, como é possível observar no Artigo 144 e parágrafo terceiro da Constituição Federal: “As corporações militares, se existentes, destinadas, primordialmente, à manutenção da ordem pública e da segurança interna e ao exercício de outras funções, nos termos da lei, constituir-se-ão em forças auxiliares e reserva do Exército, subordinadas aos Governadores dos Estados”. Além disso, a professora ainda destaca a existência do Artigo 142 da Constituição, que coloca o exército como uma espécie de poder moderador: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".
Mirian Assumpção Lima,
professora da USP
É possível notar que a Polícia agiu de forma diferente em episódios recentes de confronto entre forças de segurança e manifestantes. Em 2020, quando movimentos pró e contra o ex-presidente Jair Bolsonaro se manifestaram na Avenida Paulista, em São Paulo, a Polícia Militar paulistana utilizou de força para conter manifestantes que não apoiavam Bolsonaro. Segundo o então secretário-executivo da Polícia Militar, Coronel Álvaro Batista Camilo, em entrevista, à época, à rede CNN, “a confusão teria começado após provocações do grupo pró-Bolsonaro”, porém apenas o grupo contrário sofreu retaliações da tropa de choque.
O uso exacerbado de autoridade das forças policiais é também frequentemente observado em manifestações menores. Em 2022, professores da rede municipal da cidade de Belo Horizonte, que reivindicavam de forma pacífica pagamento do reajuste do piso do magistério, foram agredidos pela Guarda Municipal. Devido à ação, um dos servidores que participava do ato teve que ser socorrido.
Para o cientista político Bruno Konder Comparato, a diferença de comportamento das forças de seguranças se dá pelo enraizamento de pré-conceitos que são intrínsecos à sociedade. Para ele, em um país em que há fortes repressões a grupos sociais menorizados, isso se reflete nas forças policiais, assim como em todas as esferas sociais. De acordo com Comparato, “a polícia faz parte da sociedade brasileira, todos os preconceitos da população estão na polícia também”.
Esses episódios de abuso de autoridade policial negligenciam conceitos democráticos, como a necessidade de manutenção da dignidade humana, valor absoluto da atual Constituição brasileira. Na medida em que esses acontecimentos se tornam corriqueiros em meio a população, há uma iminente preocupação com a preservação da democracia no país.
“ A democracia é um regime que se pressupõe que a gente vai resolver nossa diferença pelo debate e não pela força, pelos argumentos, confronto de ideias, a gente vai pela negociação e não pela força.”
Bruno Konder
Policiais patrulham evento de carnaval na cidade de Mariana, MG - Foto: Filipe Nicácio
No Brasil, a guinada de atos antidemocráticos, principalmente ligados aos ideais da extrema-direita, preocupa inclusive a comunidade internacional. De acordo com a pesquisa Variações da Democracia (V-Dem), do instituto Variações da Democracia, da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, em 2020, o Brasil foi o quarto país que mais se afastou da democracia, num contexto de 202 nações analisadas. Em um índice que mede de 0 a 1, o país obteve uma nota de 0,51, o que representou uma queda de 0,28 em relação à última pesquisa feita pelo instituto no ano de 2010. Na pesquisa, a queda do Brasil só não foi maior que Polônia, Hungria e Turquia.
Justiça de transição
Na história do país, é possível observar alguns episódios em que o uso da força se sobrepôs em detrimento dos preceitos democráticos. A última tentativa de atentado à democracia, no dia 08 de janeiro deste ano, aconteceu quase 40 anos depois do fim da Ditadura Militar brasileira. Posterior ao final desse período ditatorial, foi só em 1988, e sob forte pressão popular, quando houve a promulgação da chamada “Constituição Cidadã”, tendo ajudado no processo da redemocratização - e é a que vigora no país até hoje.
Os ataques do dia 08 de janeiro foram considerados atos antidemocráticos, assim como outros que marcaram a trajetória da política brasileira. Esses momentos, contra a democracia, mesmo tendo acontecido há anos, refletem ideais autoritários e se assemelham com a tentativa de tomada de poder com o uso da força.
Dados da violência policial
A característica estruturalmente racista da Polícia está refletida tanto no sistema prisional, em que a quantidade de encarcerados brasileiros pretos e pardos é majoritária, representando cerca de 67,4%, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho de 2022, quanto nas estatísticas de violência policial em diversas cidades do Brasil. Em Salvador, BA, por exemplo, o relatório anual de 2022 do Instituto Fogo Cruzado, em mapeamento da violência na região metropolitana da cidade, aponta para a ausência de informação, por parte da polícia, sobre as vítimas de violência armada. É estimado pelo relatório que 2% das informações perdidas são sobre o gênero das vítimas e 73% em relação à cor. Na análise dos autores do relatório, “a falta de informações é por si só uma informação importante. Apesar da raça ser um elemento-chave para compreender a dinâmica das mortes violentas no país, o que não é falado, não é compreendido; é como se não existisse. O problema é varrido para debaixo do tapete e a desinformação permite aos governos negar padrões de racismo”.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2021, embora o país apresente uma queda em relação a 2020, as mortes decorrentes de intervenções policiais no Brasil ainda apresentam alto índice, se comparado à série histórica da divulgação, desde 2013. Em 2021, o Brasil registrou uma redução de 4,2% referente ao ano anterior, sendo a primeira vez que apresentou queda em relação ao período subsequente. Entretanto, em relação aos anos analisados, o país apresentou alta de 277,80%.
O Anuário também divulgou uma relação por Unidade de Federação, na qual Amapá, Sergipe e Goiás apresentaram as maiores taxas de mortalidade por intervenções policiais civis e militares. Em contrapartida, os estados que registraram as menores taxas foram Distrito Federal, Minas Gerais e Rondônia.
Esses dados reafirmam que os abusos de autoridades policiais colaboram para um ciclo de violência e colocam em risco a segurança pública, a vida de civis e dos próprios policiais. É ressaltado ainda, de acordo com o Anuário, que “algumas mortes pela polícia ocorreram em situação de legítima defesa, muitas resultaram do uso ilegal da força”.
O alto índice de violência policial registrado no Brasil reforça que existem problemas estruturais nas forças de segurança. Essas problemáticas não são recentes, são herdadas também de um histórico de autoritarismo enraizado em parte das corporações militares.
Os problemas que envolvem as forças policiais brasileiras indicam de forma direta a necessidade de reforço de preceitos democráticos em todas as esferas da sociedade, inclusive nas institucionais. Para a professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz, diminuir a letalidade policial não é um processo descomunal que necessitaria modificar a Constituição. Em artigo para a Revista Fórum, Jacqueline afirma que: “Sem delimitação, controle e constante aprimoramento desta autonomia não tem como garantir a estabilidade e a previsibilidade no exercício do poder por governos legais e legítimo. Sem governabilidade sobre os meios de força tem-se a constituição de autarquias sem tutela que aprisionam governantes em seus gabinetes, chantageiam parlamentares, silenciam oponentes, pautam a Justiça e ameaçam a sociedade”.
É necessário ter o diálogo e a articulação de ideias, sem o uso da força. Segundo Jacqueline, essa é a razão pela qual as reformas policiais continuam sendo pontos fundamentais para o estabelecimento do Estado Democrático de Direito. Na medida em que isso é negligenciado, não há espaço para ter uma força policial democrática. É o que problematiza o cientista político Bruno Konder Comparato: “Existe uma questão central em toda definição de democracia. A democracia é um regime que se pressupõe que a gente vai resolver nossa diferença pelo debate e não pela força, pelos argumentos, confronto de ideias, a gente vai pela negociação e não pela força. O que é a polícia? É um órgão do Executivo que utiliza justamente a força, como característica central. São servidores públicos autorizados a utilizar força”.
Para Mirian, que esteve na corporação durante parte do período ditatorial no Brasil, os fatos acontecidos entre 1964 e 1985 não são reconhecidos como Ditadura pela maioria dos policiais militares. Internamente o pensamento é que o que foi feito durante o período foi de fato para a “manutenção da pátria” e que, por isso,
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