Foto: Mariana Marques
Ainda hoje, mito da democracia racial nega a existência do racismo no Brasil
Gabriel Borges Moreira e Tiago Maia dos Santos — Março/2023
"Não somos um país racista” é a frase que mais se escuta de grande parte da população brasileira quando algum caso de racismo vem à tona. Welica Ribeiro, uma mulher negra, sofreu racismo no metrô, em maio de 2022, na capital paulista. Uma mulher branca associou o cabelo dela à doença. Em seu argumento, ela proferiu as seguintes palavras: “Tome cuidado com o seu cabelo, porque ele está muito próximo do meu rosto e pode me causar doença”. A autora do crime negou ter feito um comentário racista e diz não ser racista. O caso tomou ampla repercussão, a vítima deu entrevista em canal aberto falando sobre o episódio e recebeu o apoio de muitas pessoas.
Além da luta constante em meio a discriminação, outra peça que contribui para a construção do racismo é a falta de acesso da comunidade negra a serviços básicos, o que é confirmado por pesquisas que mostram em números alarmantes essa seletividade da sociedade.
Uma pesquisa realizada em 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que 32% dos jovens negros não estudam e nem trabalham. A falta de acessibilidade, assim como melhores condições de vida e melhores condições salarias dos pais são apontados como motivos para essa ausência dos jovens negros em determinados ambientes. Uma realidade não muito distante daquela de outros grupos marginalizados na história brasileira, como a população indígena.
Protestos e manifestações marcam a luta dos movimentos antirracistas. Foto: César Diab
As eleições de 2022 comprovaram esta distinção de crenças e posicionamentos em todo o Brasil. Em consequência disso, o país se viu dividido em duas vertentes: uma progressista e uma conservadora, que também esteve presente na realidade dos jovens brasileiros.
Delton Felipe, professor Doutor do Departamento de História e pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-brasileiros da Universidade Estadual de Maringá (UEM) , no Paraná, propõe uma discussão que baseia o conceito como uma ideia, e não uma discussão teórica.
Falsa igualdade
A luta racial no país
Toda a origem da argumentação desses problemas surge lá atrás. O termo “mito da democracia racial” é mais antigo do que entendemos. Desde a chegada de navios portugueses ao território nacional, possuímos registros que mostram a superioridade imposta pelo homem branco. O desrespeito à cultura, à fé e principalmente à raça dos povos originários, que habitavam o local no momento da colonização.
Já em 1501, um ano depois da chegada na nova terra, os portugueses se referiam ao local, como Terra de Vera Cruz, devido às cruzes que ornavam as velas das embarcações, lideradas por Pedro Álvares Cabral. Além dessa espécie de tomada de poder territorial, os povos indígenas foram forçados a mudar costumes e crenças, passando a realizar trabalhos fora da questão de subsistência e se convertendo ao catolicismo. É preciso lembrar, como afirma o indígena da aldeia Pataxó do Sul da Bahia, Taquari Pataxó, 39, graduando em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), que nessa época de colonização e invasão, os povos indígenas foram brutalmente assassinados: “Nosso país houve genocídio em massa dos povos indígenas. Que nós povos indígenas, né? Desapareceu, uma grande parcela de mortos”.
Indígenas comparecem à posse do presidente Lula, que prometeu visibilidade aos povos originários. Foto: César Diab
Essa ideia de igualdade, que nasce junto com a concepção de direito moderno no país, acompanha a sociedade até os dias de hoje. A concepção da mestiçagem no Brasil, por exemplo, que suaviza a ideia da diversidade racial na sociedade, contraria, em vários setores, a ideia do mito da democracia racial, expondo a diferença de tratamento entre raças no país. Um exemplo é o mercado de trabalho. De acordo com o estudo "Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil", divulgado pelo IBGE e referente a 2022, e negros recebem 40,2% menos do que brancos por hora trabalhada, já os pardos 38,4%. Fazendo um paralelo com 2012, baseando-se em estudo do mesmo IBGE, negros recebiam 42,8% a menos que uma pessoa branca, ou seja, a diferença em 10 anos diminuiu 2,6%.
Luana Souza,
graduada em Ciências Sociais
Um país indígena
Com o passar do tempo, a história e fala de Taquari Pataxó tendem a se repetir no âmbito social brasileiro. Noticiado através de uma reportagem da Carta Capital e em veículos de mídia do Brasil e do mundo, o avanço do garimpo ilegal, em terras Yanomami, no estado de Roraima, onde, de acordo com o Ministerio dos Povos Indígenas, cerca de 99 crianças, com idade entre um e quatro anos, morreram em 2022, devido à contaminação por mercúrio, desnutrição e fome, evidencia ainda mais o descaso e exclusão dos povos originários no Brasil.
Além disso, é fato que no Brasil, constantemente, os povos indígenas enfrentam um aumento significativo da grilagem, do roubo de madeira, invasões, garimpo e até mesmo implantação de loteamentos em suas terras, evidenciando como a situação está em um nível preocupante no país, deixando os povos originários lutando pela própria sobrevivência. Os dados são da pesquisa do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), realizada em 2018, que registrou 109 casos de invasões possessórias e exploração ilegal. Em 2017, foram 96 casos registrados.
Nessa luta em defesa do território em meio a invasões, é constante a soma de vidas perdidas. Ainda relatado pelo Cimi, o número de assassinatos registrados em 2017 foi de 110 casos, em 2018, 135, e apesar da queda em 2019, com 113, o dado teve seu ápice em 2020, com 182 casos registrados. Taquari Pataxó relata que em 2022 em sua aldeia houve perdas indígenas: “É preciso marcar os nossos territórios, né? Muitos deles são o motivo de tantas mortes, né? Todos os anos no Brasil, inclusive aqui no nosso território pataxó, né? No final do ano a gente perdeu quatro vidas de jovens indígenas na luta pelo território, então um tempo muito curto. Nós perdemos esses jovens e nós não queremos ver os nossos povos, nossos índios, os nossos jovens morrerem”.
Joel Zito,
diretor de cinema
Fatou Ndiaye,
estudante e influenciadora digital
“ Quem não precisa da prática da democracia não vai defender, obviamente, como as grandes corporações”
Aline Souza
Essa Declaração busca igualar uma sociedade desigual, sem levar em conta suas características próprias enraizadas. O historiador diz: “o mito da democracia racial enquanto uma ideia, não como uma discussão teórica, mas como uma ideia, está sustentado na tentativa de construção, na tentativa de efetivar o direito moderno no Brasil”.
Em muitas ocasiões, essa disparidade salarial acomete a população negra do país logo cedo, e como consequência dessa renda menor, surge a dificuldade no acesso a direitos básicos. O mito da democracia racial, portanto, reforça a ideia de que todos são iguais e não se sabe quem é ou não preto, pardo ou indígena, mas não é bem assim.
Como estudado por Charles Wagley (1913-1991), antropólogo norte-americano que foi pioneiro no estudo da antropologia brasileira, em diferentes graus e combinações de mestiçagem se tem desde comunidades onde há predominância do fenótipo de indígenas, como na Amazônia, comunidades que prevalecem traços negróides, mestiços, como em certos pontos da Bahia, e comunidades que contém características de elementos brancos, como a capital do estado de São Paulo.
Luana Souza, 29, é natural de Janaúba, norte de Minas Gerais, e cresceu em uma família humilde com quatro irmãos mais velhos que nunca fizeram o Ensino Superior, a jovem foi a primeira a adentrar o ambiente acadêmico. Porém, até chegar na universidade, foi estudante de escola particular por meio de uma bolsa entre a quinta e oitava série. Luana conta como foi difícil se manter na instituição: “diante dos meus colegas eles tinham muito mais recursos, né assim do que eu sei lá, eu convivia com filhos de de médios e pequenos empresários da cidade então assim. Acho que hoje eu tenho essa consciência, né?”.
Antes de almejar uma vaga na faculdade, Luana decidiu ir para uma escola pública para fazer o Ensino Médio, pois precisava e queria trabalhar como menor aprendiz. Com o intuito de ajudar tanto em casa quanto em despesas pessoais, ela começou a conciliar sua vida escolar com o trabalho. Depois de concluir o segundo grau, Luana conseguiu o acesso ao Ensino Superior público por conta da aplicação das cotas sociais nas universidades brasileiras, matriculando-se no curso de graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) no ano de 2010.
No entanto, existem no Brasil debates que vão contra a aplicação de políticas públicas no Ensino Superior, alegando que todos têm e tiveram a mesma oportunidade durante a vida. Uma das críticas mais recorrentes é a questão da auto identificação. O deputado federal por São Paulo, do partido União Brasil, Kim Kataguiri, propôs em fevereiro de 2022, um Projeto de Lei que tinha como fundamento extinguir o critério racial em questão de cotas sociais, argumentando que essa ferramenta deveria ser destinada a uma parcela mais pobre da população independente da cor. O professor Delton explica a necessidade da marcação racial em questão das políticas afirmativas: “Quando a gente por exemplo fala em políticas de ação afirmativa para a população negra, o objetivo de políticas afirmativas para a população negra é combater o racismo. Agora, olha que interessante, o racismo é um potencializador da desigualdade social, então quando você combate o racismo o outro efeito que acontece é diminuir as desigualdades sociais desses grupos, então isso é importante”.
Além dessa questão da funcionalidade das cotas raciais, o docente e historiador menciona um outro tópico a respeito da complexidade de se criar uma política pública e fazer com que ela funcione na prática. Para ele, os corpos jurídicos responsáveis pela criação de leis fazem manobras e estratégias que dificultam a aplicação da lei na prática, o que torna essas normas menos eficazes. “As políticas públicas elas são elaboradas a partir de um corpo jurídico e o jurídico é elaborado a partir de determinações de que as pessoas vão agir de acordo com a boa fé, muita das vezes são manobras administrativas para que essas políticas públicas elaboradas a partir de lutas de diversos grupos não tenha sua eficácia como deveria ter”, explica.
A busca por igualdade ainda é desafio para a sociedade brasileira. Foto: Mariana Marques
Um caminho de esperança a ser construído
No ano de 2023, o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), fundou o Ministério dos Povos Originários, sob o comando da Deputada Federal por São Paulo, Sônia Guajajara, em resposta às reivindicações históricas dos povos indígenas. Este foi o primeiro Ministério na história voltado para os nativos. Outro Ministério importante é o da Igualdade Racial, que tem como Ministra a ativista Anielle Franco. Em 2003, Lula criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República. A antiga secretaria passou a ser Ministério. Além disso, foi aprovada no dia 12 de janeiro de 2023 a Lei 14.532, que estabelece que a prática de injúria racial é agora expressamente uma modalidade do crime de racismo, tratada de acordo com o previsto na Lei 7.716/1989.
Esses dois órgãos são de extrema importância para os dois grupos mais afetados pela falta de ações afirmativas e políticas públicas no país. Delton Felipe acredita que ambos os Ministérios podem ser grandes mecanismos para reduzir os casos de racismo no Brasil e são grandes avanços históricos. Porém, é preciso ter apoio de toda a bancada política para que projetos e pautas propostas pelas duas Ministras sejam de fato, aprovadas e postos em prática no país. “É um processo que depende que o Estado, o governo e todos os seus ministros também se atentem a isso. Não adianta elas elaborarem projetos extremamente bacanas, se a Justiça [Ministério] não se comprometer com isso… afinal de contas, nós estamos no governo de coalizão, nós vamos ter ministros que nunca pararam para pensar na pauta racial”, afirma.
Além do historiador, o estudante indígena Taquari Pataxó também pensa que, apesar de ser um grande avanço, ainda estamos longe de alcançar as metas das lutas dos povos orignirários e dos negros. “A [Ministra] Sônia é uma guerreira, uma lutadora, mas não basta apenas ser uma guerreira. É preciso também, que outras forças entram também em sintonia, não pode aguardar somente da Sonia, ela vai fazer o melhor para os povos indígenas, mas depende de orçamento. Depende de quanto o governo está disposto a contribuir para a causa”, explica.
Em agosto e setembro de 2001, foi realizada a Conferência de Durban, na África do Sul, que tinha como objetivo tratar de assuntos como racismo e ódio aos estrangeiros. Naquela época, o Brasil assumiu ser um país racista e deixou claro qual é o papel do Estado neste enfrentamento. Porém, só após 22 anos, foram criados pela primeira vez dois Ministérios que discutem e propõem projetos e pautas sobre assuntos como racismo, intolerância e discriminação. Os Ministérios podem ser possíveis caminhos para chegar na igualdade racial.
Taquari Pataxó,
estudante de direito da UFBA
Além disso, temos outras alternativas, como acredita Taquari Pataxó na educação, e que ela precisa ser reformulada: "Os livros didáticos, a própria historiografia, a própria universidade, mudar as suas ementas, os seus currículo nas escola precisa mudar tudo isso, né? Então essa mudança tem que partir também do estado, né?”
Ferramentas para além da educação
Além da escola e dos livros didáticos, outro caminho importante para se ter uma igualdade racial e uma democracia plena é pensar no audiovisual como forma de auxiliar nesse embate. Joel Zito Araújo, roteirista e diretor de cinema, comenta sobre o papel realizado pelo audiovisual: “O audiovisual tem um papel auxiliar, não é nada mágico. Vai depender da intermediação e de quem usa isso. Porque eu acho que a gente nunca pode esquecer o papel do professor, o papel do agente comunitário do agente cultural, essas figuras são fundamentais para escolher esse audiovisual mas ao exibir o audiovisual provocar um debate interessante oferecer outras alternativas para que as pessoas tenham um ponto de vista diferente sobre o mundo”.
Os filmes de Joel provocam discussões relacionadas ao mito da democracia racial no Brasil. Muitas das temáticas de seus documentários abordam os debates raciais, apresentando um certo didatismo para falar do assunto, adentrando a TV aberta, cinemas, streaming etc. O diretor entende que essas pautas precisam de um apoio externo para despertar um lado crítico na população. “Uma estratégia para filmes que ajudam o Brasil a pensar sobre si mesmo, seria interessante se a gente tivesse projetos juntos ao Ministério da Educação para que esses filmes circulassem nas escolas. Esses filmes estarem presentes em todos centros culturais, bibliotecas”, reflete.
O setor audiovisual no Brasil, há décadas, convive com uma espécie de eugenia midiática, percebida nos meios televisivos ou em filmes exibidos no cinema. A disparidade de personagens protagonizados por atores brancos em relação aos papéis dispostos a pessoas negras evoca na maioria dessa população a falta de reconhecimento e identificação do outro lado da tela. O documentário “A negação do Brasil”, realizado e dirigido por Joel Zito, fala sobre a presença do negro nas telenovelas brasileiras. Joel faz um panorama de como as mulheres negras são apresentadas nos produtos, geralmente como “domésticas, babás e em alguns casos donas de casa”. Sobre os homens, Joel retrata a posição dos negros como geralmente “capatazes, matadores de aluguel, caseiros”. A partir daí, é notória a existência de um enviesamento responsável por colocar em papéis secundários e terciários, homens e mulheres pretas.
Além disso, temos outras alternativas na educação, como acredita Taquari Pataxó: "Os livros didáticos, a própria historiografia, a própria universidade, mudar as suas ementas, os seus currículo nas escola precisa mudar tudo isso, né? Então essa mudança tem que partir também do estado, né?”
Outra importante ferramenta para a disseminação de conteúdo audiovisual e principalmente um espaço de debates políticos, que vem crescendo consideravelmente nos últimos tempos, são as redes sociais. Fatou Ndiaye, 17, é uma estudante senebrasileira - nascida no Brasil e filha de senegaleses - que ganhou notoriedade usando esse meio para compartilhar seu conhecimento sobre democracia, política e racismo. A jovem militante acredita que precisamos tomar cuidado com o que é falado nesse meio e até onde podemos falar o que queremos: “A rede social, podem ser utilizadas para criar espaço, para exercer democracia, para legitimar discursos democráticos, mas também elas vêm sendo utilizadas como um local para se propagar mais ódio ainda, né?”
Fatou entende que é mais que necessário que as pessoas participem dos debates políticos na internet e que seu conteúdo tenha o objetivo de visar certas parcelas da população: “tem muita gente no Brasil que precisa consumir conteúdo político, que tem o direito de consumir conteúdo político, só que muitas vezes é impedido porque as pessoas usam um academicismo para falar de política que não precisa, a minha luta sempre foi tentar fazer o meu conteúdo ser o mais acessível possível”.
Para que a discussão do mito da democracia racial no Brasil perca a força imposta por aqueles que usam essa ideia como negação do racismo no país, é cada vez mais necessária a inclusão da população em discussões raciais. É necessário o entendimento do tema como um todo, seja por meio de plataformas como as redes sociais, o audiovisual, mas sem esquecer que a principal ferramenta é a educação.
Um diálogo para importantes questões na luta pela democracia brasileira: o Estado, a mídia e o povo.
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