Diante desse impasse de garantia de direitos básicos, do abandono social relatado por Renê, da invisibilidade midiática acerca de uma parcela da população e da evidente falha na aplicação governamental da democracia, em seu preceito de bem-estar social, restam as perguntas: a quem interessa a invisibilidade das pessoas que se beneficiam com os direitos democráticos? E a quem interessa a democracia?
É necessário ressaltar que não só a palavra “democracia” está sob processo de disputa, mas, também, a hegemonia dos governos disponíveis no jogo político de interesses econômicos.
A democracia passa por um movimento de conflito sob moldes institucionais, judiciais e populares. Na visão do professor Valdei, a chamada democracia liberal é passível de questionamento: “Esse modelo é afetado pelos interesses empresariais, corporativos, interesses, hoje, de grandes religiões organizadas. O modelo liberal sempre esteve desafiado pela qualidade da representação. A crise recente é muito a crise dessa qualidade, das pessoas se sentirem pouco representadas pelos representantes”.
Os acontecimentos mais recentes da política brasileira — como o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016 — contribuem para o entendimento dessa fragilidade da democracia e da constante disputa entre as formas de governo, entre a democracia participativa e a liberal.
Tudo isso se deu por diversos processos de “maquiagem” da realidade brasileira, segundo Verônica Salustiano. A advogada popular emprega o termo para explicar o que ocorreu naquele momento: “Você depõe a presidenta legitimamente eleita com base em argumentos que não são jurídicos, que foram ali uma maquiagem no processo para de fato trocar a política econômica e a plataforma eleita pelo povo”. Para o professor Valdei Lopes, essa “maquiada no processo” implica em muitas perdas para a democracia: “Nós tivemos, pelo menos durante o governo Bolsonaro, 4 anos em que houve um completo apagão de governança. O que nos vimos acontecer agora com os Yanomamis é a ponta do iceberg”.
Não é possível dizer que apenas Lula e Bolsonaro sintetizam a pluralidade de crenças, formas de viver e direitos específicos de pessoas e grupos que o Brasil abarca em seu extenso território. Mas também não é possível dizer que essas duas personalidades não protagonizaram o jogo da democracia nas eleições recentes de 2022.
Lula e Bolsonaro concorreram à presidência na eleição que, desde o processo de redemocratização, foi a mais disputada, considerando os resultados dos pleitos realizados desde 1988 pelo Tribunal Superior Eleitoral. A diferença final entre presidenciáveis, no segundo turno, nunca foi tão acirrada (pouco mais de 2 milhões de votos), identificando uma polarização de polos extremo-opostos, que fazem parte cada qual de um projeto de Brasil, implicando diretamente na garantia, ou não, de direitos.
Apesar de uma premissa básica de direitos instituídos, a Constituição os preserva apenas como princípios, explica Verônica Salustiano. Na linguagem jurídica, os princípios são normas que não têm uma aplicação direta. Ou seja, “a nossa Constituição coloca essas coisas no campo de valores, ela não nos dá uma forma de como executar. Então, ela também deixa isso à mercê da vontade política do gestor que opta por como fazer”, diz a advogada.
Em síntese, na concepção de Verônica, a Constituição Federal de 88 “delegou muitas questões sociais do processo político ao legislativo, para que este poder pudesse, então, normatizar os princípios e valores que estão esculpidos pelo texto constituinte”. Ela complementa: “as nossas estruturas e bases sociais são peças tão calcadas em estruturas que não são democráticas — aqui ela define: a formação social brasileira é racista e patriarcal”.
Foto: Eduarda Dias
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Mais do que um regime político, a democracia tem a ver com coletividade. Para além das inúmeras definições da palavra, ela se coloca onde as pessoas têm voz, quando são livres para ser quem são e têm seus direitos garantidos. É nesse sentido que o cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB), Luis Felipe Miguel, ressalta que “a democracia é um regime que promete a igualdade entre todos. Uma igualdade capaz de influenciar politicamente as decisões em sociedade, de forma que as vontades de todas as pessoas consigam ser expressas”.
Dentro da mesma ideia, o pesquisador e historiador Valdei Lopes de Araújo, professor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e presidente da Associação Nacional de História (Anpuh), explica que a democracia possui muitos significados, mas que ela estabelece a promoção do bem-estar social como um parâmetro base em todos. Assim, as decisões coletivas aparecem como primordiais no processo de promoção de direitos e alcance das necessidades da população.
Foi no Complexo de Favelas do Alemão, em 2005, que Renê Silva, um garoto de 11 anos fazendo “brincadeira de criança”, promoveu a articulação entre as demandas da comunidade em que vivia e a visibilidade diante do poder público. Naquele ano, Renê criou o que hoje se tornou um jornal popular de grande alcance, o Voz das Comunidades.
A mídia promovida pelo Voz, “feita de dentro” como coloca Renê, possibilitou que as reivindicações e a imagem da comunidade não fossem atreladas ao estereótipo que a grande mídia carregava. “Quando eu abria a grande mídia, eu nunca me via representado, e eu precisava mostrar um novo olhar da favela, então eu me via no papel de mostrar a minha realidade, de reivindicar políticas públicas, a nossa luta já vem aí há 18 anos”, conta Renê.
As denúncias promovidas pelo Voz das Comunidades são um exemplo atual de como o abandono do poder público indica falhas no exercício pleno e na compreensão que, tanto Luis Felipe Miguel quanto Valdei Lopes, explicam a respeito da defesa de direitos e do bem-estar social. Logo, a democracia não se define apenas pela conceituação da palavra, mas também pelo conjunto de ideias que promovem a sua manutenção, como a garantia de afeto, saúde, educação, liberdade, segurança, infância e juventude, diversidade, entre outros.
Verônica Salustiano, advogada popular e coordenadora da ABDJ
Palavra que age
Representação indígena marca presença na posse do atual presidente Lula em 1º de janeiro de 2023. Foto: César Diab
“ Nós não devemos ser todos iguais para termos direitos, mas que podemos ter direitos iguais dentro de nossas diferenças.”
Valdei Lopes de Araújo
Garantia de direitos, garantia à democracia
Logo após a Segunda Guerra Mundial, com a promulgação dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, o termo “democracia” passa a ser visto de maneira positiva, ganhando amplitude internacional. O significado de se declarar democrata alcança, então, profundidade no debate político e, hoje, as formas de exercer democracia se tornaram: como a democracia direta, liberal, a representativa e a participativa.
A democracia, no aspecto formal da palavra, como coloca a advogada popular e coordenadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABDJ), Verônica Salustiano, implica na construção de poderes da República, que são independentes entre si, apesar de dialogarem e atuarem em funções semelhantes.
No Brasil, o modelo vigente é a democracia representativa, por meio dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Para o exercício dos cargos políticos, “a gente vota e é votado”. Na linguagem formal, significa poder exercer direitos políticos em uma organização social de país enquanto nação — em termos jurídicos, de um território.
Atualmente, mais de 156 milhões de eleitores compõem o pleito eleitoral nacional, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral — TSE. Crucial neste processo foi a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988, que não se relaciona somente aos processos estabelecidos pelas eleições federais, estaduais e municipais, mas também com toda a aplicabilidade dos direitos políticos e fundamentais.
No dia 15 de março de 2019, sindicatos e movimentos sociais protestaram contra os cortes de verbas na educação e a contra reforma da previdência. Foto: Ane Souz
Essa data é, para o professor Valdei, tanto simbólica como fundamental para o fortalecimento da democracia brasileira. Como ele destaca, “no ano passado, estávamos comemorando 200 anos de Independência do Brasil. Foi uma data importante de reflexão sobre a nossa história como coletividade. E nessa história de 200 anos, talvez nenhum momento tenha sido tão importante quanto a Constituição de 1988”.
Após um período de mais de 30 anos de Ditadura Civil-Militar no Brasil, a Constituição de 88 foi redigida e promulgada e a sociedade se abria politicamente para novas eleições. Nesse momento, considerar direitos básicos na lei suprema foi uma conquista considerável à história do Brasil. “Foi uma constituição que criou as bases para o Sistema Único de Saúde — SUS, ou seja, que qualquer indivíduo que nasce nesse território tem direito a saúde básica. Foi uma conquista importante, da mesma forma que a educação é um direito universal, uma obrigação do Estado. Então, uma série de direitos foram regulados naquilo que a gente considera a nossa lei-base, a qual é a Constituição”, observou o professor Valdei.
Verônica Salustiano acrescenta que a Constituição brasileira é muito avançada no que diz respeito à quantificação de direitos sociais, direitos fundamentais — os direitos humanos positivados. Está na Declaração Universal dos Direitos Humanos e a gente traz para nossa Constituição, explica: “a dignidade da pessoa humana, direito a diversidade, igualdade entre homens e mulheres, a reparação histórica relacionada a questão da escravidão, da questão dos povos e comunidades tradicionais”.
A busca pela conceituação de democracia no país refere-se a muitas observações sobre limites e sobre aquilo que envolve o exercício prático das aplicações dos direitos-base da Constituição de 1988. A advogada Verônica dialoga com o que Renê Silva experiencia por meio do Voz das Comunidades: “a democracia não pode ser vista apenas como um processo formal. Porque se for só isso a gente esvazia todas as outras concepções que fazem parte da participação da sociedade na vida pública”.
A pressão popular histórica também ecoa esse processo de organização formal da democracia e da constituinte brasileira dos anos 1980. Sem, por exemplo, a luta da professora carioca Leolinda de Figueiredo Daltro (1860 – 1935), não seria possível ou seria tardio que as mulheres votassem no Brasil. A sufragista e feminista fundou, em 1910, o Partido Republicano Feminino, considerado o primeiro partido político feminino do país e responsável por defender o direito ao voto para as mulheres, bem como a abertura dos cargos públicos a todos os brasileiros, indistintamente. Esse e outros exemplos explicam como a luta popular ganha força na democracia e fortalece a garantia de direitos.
Vivência democrática
Ainda na tentativa de sintetizar o conceito da palavra e seus processos, o professor Valdei Lopes de Araújo diz: acho que democracia sempre teve a ver com igualdade e, hoje, a gente pensa a democracia como igualdade nesse horizonte de diferença: "que nós não devemos ser todos iguais para termos direitos, mas que podemos ter direitos iguais dentro de nossas diferenças".
Dia Nacional de Paralisação da Educação contra os cortes nas verbas e contra reforma da previdência
Foto: Ane Souz
Segundo Verônica Salustiano, a experiência vivenciada pelo Brasil mais próxima da definição de Valdei, que entende a democracia como um horizonte para a garantia de direitos específicos, foi através da chamada “democracia participativa”. Para a advogada, o período que compreende o que ela chama de “maior grau de experiência democrática”, ocorreu durante os governos Lula e Dilma (2003 – 2016).
Nessas administrações, houve tentativas de aumento da participação popular através da criação de conselhos de políticas públicas. Alguns dos conselhos criados foram Conselho da Pessoa com Deficiência, Conselho da Pessoa Idosa, de Direitos Humanos, de Saúde, de Assistência Social, de Política para Mulheres, da população LGBTQIA+, de Igualdade Racial, Quilombola e Indígenas.
O jornal Voz das Comunidades é um espelho de como esses conselhos funcionam na prática, quando se busca visibilidade às pautas que surgem nos conselhos municipais nas favelas. “Eu vejo muita gente com projetos, muita gente falando. Com a internet, por exemplo, muita gente dando opinião sobre tudo, falando sobre tudo… mas acredito que ainda não haja um incentivo tão grande para as pessoas conseguirem colocar suas ideias em prática”, explica Renê Silva.
Essa falta de incentivo que Renê pontua pode estar relacionada às falhas presentes na estrutura política e na democracia, como Verônica descreve: “esses conselhos são basicamente consultivos, não possuem um caráter de vincular a decisão do conselho a aplicação. Ou seja, em outras palavras, a prática democrática é muito distante da implementação de leis que funcionam, de fato, no Brasil.”.
Na visão da jurista, o que o país poderia experimentar, que o aproximaria de uma democracia plena, são: “mecanismos que fizessem que essas decisões dos conselhos fossem vinculativas ao gestor, para que ele aplicasse de forma que a comunidade organizada, que participa do conselho, esteja inserida nessa construção da política e na própria fiscalização”, afirma Verônica.
Democracia em disputa
Uma das experiências relatadas pelo jornalista Renê Silva, na construção política da coletividade através da comunicação, foi a emergência das necessidades das pessoas nas favelas, ignoradas pela mídia e pelo poder público. “A gente não via na mídia falando sobre problemas relacionados a saneamento básico, eu não via falando sobre a falta de iluminação pública, falta de banheiro, a situação da fome”, relata.
Manifestação em prol da garantia de direitos básicos é realizada em Ouro Preto. Foto: César Diab
Para Salustiano, no Estado Democrático de Direito do Brasil, conforme é definido hoje, muitas políticas essenciais ficaram nesse campo da negociação e do diálogo e não da publicação direta. Também, segundo ela, isso se dá em decorrência de uma “dívida tremenda com a memória, verdade e justiça no Brasil do período da Ditadura em si, porque foram anistiados os ditadores”.
Da Constituição ao pleno exercício da cidadania
É possível afirmar que a Constituição de 1988 trouxe valores relacionados aos ganhos coletivos e direitos específicos, mas ela sozinha não permite mecanismos que possam ser aplicados diretamente. O que faz com que a democracia participativa se mostre cada vez mais necessária para a implementação dos direitos individuais e civis, além do exercício pleno da cidadania.
Verônica acredita que é necessário começar a pensar na Constituição a partir de mecanismos que protejam a democracia: “A gente precisa fazer com que esses mecanismos de ruptura drástica da nossa democracia, se eles forem necessários, sejam mais democráticos, num aprofundamento e numa participação popular.”. A advogada afirma que “para que esses processos não fiquem delegados somente as estruturas que já estão postas. Quando você retira completamente o poder do povo e deixa ele decidir somente no poder eleitoral, você tem uma fragilidade muito grande na própria democracia, e nossa constituição nesse sentido precisa ser mudada”.
Propostas de reformulação da Constituição acontecem constantemente por meio de emendas parlamentares que, na atual estrutura política, compreendem grande parte das perdas e das conquistas por direito. Ocorre que, como coloca o professor Valdei, as disputas passam pela palavra e pela comunicação que, há anos, está em crise no Brasil. “O que mais compromete a democracia hoje é a qualidade do debate público. Houve um retrocesso muito grande na qualidade desse debate, porque as pessoas que não participavam dele amplamente começaram a participar, mas orientadas por sujeitos de mídia que estavam a serviço de um projeto destrutivo, como o Brasil Paralelo”, explica o docente.
No geral, são condutas agressivas, não-consultivas e não-democráticas, de injúria racial, social e sexual, com grandes elementos de revisionismo histórico. Valdei reitera: “toda ciência está sujeita a processos de revisão, mas quando se fala de revisionismo a tendência, hoje, é entender isso como uma estratégia negacionista. A própria existência do sufixo ‘ismo’ dá um caráter de que o revisionismo não é uma verdadeira revisão historiográfica, não é um verdadeiro compromisso com o avanço de um conhecimento historiográfico”.
Ainda segundo o historiador, o que setores da direita fizeram desde o impeachment da presidente Dilma foi se apropriar dessa ideia de revisão historiográfica, sem pesquisa, para promover interesses políticos e ideológicos. Não apenas setores de intelectuais, mas também, e principalmente, setores da sociedade civil, do direito e da mídia, nacionais e internacionais. O que coloca todo o processo de comunicação e a disputa pela democracia e hegemonia de poder em crise. A crise da palavra.
A crise da palavra
Para o povo Guarani, a palavra tem sentido enraizado na tradição e na organização social. Ñe’ẽ significa “palavra” e significa “alma”. Como coloca a antropóloga Gabriela Chamorro, no livro "Brasil: construtor de ruínas" da jornalista Eliane Brum: “a palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os povos chamados Guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências da palavra. Deus é a palavra. As crises da vida — doenças, tristezas, inimizades, etc. — são explicadas pelo afastamento da pessoa de sua palavra dinamizadora”. Para os Guarani Kaiowá, a palavra é “palavra que age”.
De um lado, um Brasil que se constitui sob a base das coletividades representadas por movimentos sociais, como o Voz das Comunidades, de Renê Silva. E de outro, um Brasil que se pauta no revisionismo histórico do Brasil Paralelo.
A disputa constante pela apropriação de direitos e interesses demarca, também, uma disputa acirrada pela democracia. O Brasil sobe, na posse do então presidente Lula, em 1° de janeiro de 2023, em um ato simbólico, a rampa no Palácio do Planalto com o menino Francisco, Aline Souza, o Cacique Raoni, Weslley Viesba Rodrigues Rocha, Murilo de Quadros Jesus, Lucimara Fausto dos Santos, Ivan Baron e Flávio Pereira. Rumo à esperança de uma construção participativa, coletiva e plena. Até que a palavra, como define os Guarani-Kaiowá, se torne ação. Afinal, para onde vai a democracia brasileira?