A ONU, que tem como principal objetivo manter a paz entre as nações, dedica atenção a todas e quaisquer questões que podem vir a causar problemas maiores para e entre os países. A fome, a desigualdade social, os direitos humanos e questões econômicas e sociais são assuntos que devem ser cautelosamente debatidos, para que medidas e decisões sejam tomadas, antes mesmo que conflitos sejam gerados e a paz seja anulada.
Em agosto de 1941, ainda em situação de guerra, o documento foi concebido como um suporte de esperança para o mundo após confronto, que tinha como principal meta ofertar a autodeterminação entre os países. Essa ação falava, acima de tudo, em direitos de igualdade de gênero, sugerindo o poder de escolha sobre circunstâncias soberanas e políticas, tendo em vista que, até então, as mulheres não tinham direito à voto, o que interferia diretamente na escolha do governo local, por exemplo.
No arquivo, toda a população teria direito a autodeterminação e por isso deveria usufruir de seu poder de escolha, seguindo os princípios da igualdade, um dos pilares fundamentais para uma sociedade democrática.
A Carta foi um suporte para despertar a necessidade de implantação da garantia dos direitos humanos, além da intenção de impedir que outros eventos como esse voltassem a ocorrer. Ela também serviu como base para a elaboração das Nações Unidas, que posteriormente, no dia 24 de outubro de 1945, se tornou a ONU.
Dessa forma, os direitos humanos são tidos como normas que afirmam e protegem a dignidade de todos os indivíduos, definindo que todos devem se respeitar, não havendo distinção de cor, nacionalidade, orientação sexual, religião, opinião política ou quaisquer outras questões morais. Além dessas, a relação direta entre a democracia e esses direitos está assegurada no artigo 21º, inciso 3, da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos; e deve exprimir-se através de eleições honestas realizadas periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que conserve a liberdade de voto.”
Foto: Mathias Reding / Pexels
Em um mundo com diferentes regimes políticos, a democracia oscila, mas não cessa
Henrique Chiapini, Luciana Cristine, Mariana Ferreira, Marcella Pontes e Sergio Aroeira — Março/2023
Na última década, as discussões acerca das ameaças à democracia estão mais evidentes no cenário mundial. Diversos países, assim como o Brasil, sofreram ações causadas por grupos contrários ao governo vigente, se tornando palco de violências políticas que se caracterizam como atos antidemocráticos. Neste panorama, surge a dúvida: para onde vai a democracia no mundo?
O conceito em torno do termo “democracia” tem sido muito discutido e questionado, sobretudo, quando analisado por uma perspectiva internacional. Um dado importante, e que justifica o interesse pelo termo, diz respeito à queda de índices relativos à democracia mundial. Segundo a pesquisa Economist Intelligence Unit (EIU), líder em inteligência de negócio, mais da metade do globo, no ano de 2020, não tem a democracia em sua totalidade. Além disso, os números enfatizam o declínio de 3,7% deste regime no planeta em relação ao ano anterior.
Embora o resultado reflita sobre uma certa decadência da democracia global, este momento pode ser passageiro. Getúlio Alves, professor no Departamento de Gestão Pública da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), explica
Com o intuito de engajar esses potenciais transformadores da sociedade, o TSE também criou a campanha “Bora Votar!”. A iniciativa tinha como objetivo aumentar o número de eleitores entre 16 e 17 anos, já que esses jovens não são obrigados a votar. Os esforços
Pêndulo democrático
Bandeira das Nações Unidas é hasteada em Viena, capital da Áustria, país considerado pela revista The Economist como democracia plena.
Foto: Niklas Jeromin / Pexels
Um aspecto relacionado à situação democrática ou não de um país, segundo David Gomes, professor efetivo da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é a economia: "um dos elementos imprescindíveis para entender a atual crise da democracia, é a dinâmica econômica que se implantou no mundo, a partir do final da década de 1990, e esse debate econômico está totalmente ausente dos debates que predominam hoje, no Direito e na Ciência Política, sobre a crise da democracia”. Isso faz com que países absolutistas, por exemplo, não tenham seus regimes criticados, sendo a questão econômica uma espécie de “salvo-conduto” sobre possíveis abusos políticos.
O Catar, sede da Copa do Mundo de 2022, por exemplo, possui um governo monárquico absolutista. De 2013 para cá, o “Emir” - termo direcionado a maior autoridade local - Tamim ben Hamad Al-Thani é o líder político do país. A família Al-Thani comanda o território desde 1825, seguindo a lei islâmica (sharia), que une traços socioculturais e econômicos. Algumas dessas normas envolvem a proibição ao consumo de bebidas alcoólicas, a necessidade de vestimentas específicas, a falta de liberdade para as mulheres e a criminalização da homossexualidade e do adultério. Apesar disso, não houve impedimento à realização de um evento de alcance global e pretensamente “humanitário”, como aconteceu com a Copa do Mundo de Futebol no Catar.
Durante a competição, atletas de várias seleções protestaram contra o governo catariano por solidariedade a causa LGBTQIAP+, visto que a homossexualidade é criminalizada no território. O código penal do local prevê dez anos de prisão a quem se envolver em relações homossexuais e três anos para quem fizer “apologia”.
que o regime político não é fixo, pelo contrário, é oscilante. Ou seja, por mais que haja uma queda na democracia, conforme a pesquisa afirma, o professor acredita não ser uma verdade absoluta, mas sim um período de instabilidade. Neste sentido, ele também pontua a necessidade de se definir sobre em qual local a questão está sendo discutida, considerando que cada país tem perspectivas, pontos de vista e modelos de funcionamento diferentes. Como exemplo, Getúlio cita a distinção entre os Estados Unidos e o Canadá.
Getúlio Alves,
professor de Gestão Pública da UFOP
O professor exemplifica que, apesar de estarem geograficamente próximos, estes países, no começo desta década, passavam por momentos políticos divergentes e, consequentemente, tinham respostas sociais contrárias. Em 2021, enquanto nos Estados Unidos a população apoiadora de Donald Trump invadia o Capitólio como forma de rejeição à reeleição do presidente Joe Biden, o Canadá era destaque não só pela economia estável, mas também nas questões sociais, como bons índices na educação, baixo desemprego, direitos garantidos, entre outros. Getúlio relata que a discrepância entre os países é uma forma de esclarecer a fluidez e volatilidade da democracia.
Onde começam e acabam os Direitos Humanos?
Oscilante ou não, a democracia é questionada primeiramente no seu conceito, portanto, em como é representada. Para isso, o termo é formalmente estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU), que o caracteriza como um valor universal expresso pelo povo para determinar o seu próprio sistema político, econômico, social e cultural, sendo uma forma da sociedade de participar de todos os aspectos que definem o futuro dos países.
Não apenas no Brasil a democracia é tomada como pauta essencial, mas em várias partes do mundo. O termo foi usado pela primeira vez entre os séculos V e IV a.C, em Atenas, na Grécia Antiga, quando os cidadãos poderiam participar das medidas políticas da cidade. Na época, as pessoas que tinham esses direitos eram indivíduos de classe alta e, portanto, a chamada democracia, contraditoriamente, era restrita, abrangendo conceitos amplos e diferentes dos quais conhecemos hoje. Segundo o professor Getúlio: “se na Grécia antiga, a democracia significava simplesmente o governo do povo, hoje isso não se aplica mais, porque a própria evolução da nossa compreensão política já levou isso para vários outros pontos de divisão”.
Até a ONU se tornar o que conhecemos hoje, foi percorrido um caminho não tão amistoso. Durante a Segunda Guerra Mundial, países como Itália, Alemanha e Japão propagaram ideologias autoritárias e extremistas, sendo também responsáveis pelo massacre de minorias étnicas na Europa. Nesse cenário precário, em que pouco se falava sobre direitos humanos, representantes dos Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética reuniram esforços para traçar um horizonte pós-guerra, que tinha como objetivo unir as nações e estabelecer assistência social e econômica entre elas.
Segundo publicado no site oficial das Nações Unidas, foi nesse primeiro momento que a Carta do Atlântico, também conhecida como Declaração de Princípios, surgiu, em 1941. Os líderes dos Estados Unidos e Reino Unido planejaram um futuro pacífico e igualitário no panorama que sucederia o ano de 1945, com o fim do conflito.
“ A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos; e deve exprimir-se através de eleições honestas realizadas periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que conserve a liberdade de voto.”
Artigo 21º, inciso 3, da Declaração Universal dos Direitos Humanos
Da base ao topo, dos direitos ao voto
O professor Getúlio Alves faz, também, uma analogia comparando a democracia à estrutura de um iceberg. Ele relaciona a parte maior do bloco com os direitos humanos, e a sua ponta com o voto, sendo a soma total a “democracia”: “Só uma pontinha do iceberg, mas ele é a ponta! É o que a gente precisa fazer, porque se você chegar ao ponto de corromper esse processo do voto, o seu sistema tem grande chance de estar fragilizado por dentro. Então, por isso, a gente vê, por exemplo, reforços na estrutura dessa democracia, que podem parecer muito pouco, mas eles são muito valiosos num país que a gente vive”, afirma o docente.
Em 2002, a Comissão dos Direitos Humanos da ONU definiu alguns princípios cruciais à democracia. Listamos 12 deles:
Os princípios democráticos regem em torno, principalmente, da igualdade na qual todos devem ter garantia à dignidade, à vida plena, à liberdade e à segurança como ideais básicos.
Um índice criado em 2006 pela revista inglesa The Economist, referente às ações democráticas no mundo, lista o nível de democracia dos países em um ranking de posições de 1 a 167. A revista também analisa os países segundo cinco critérios. São eles: pluralismo e processo eleitoral, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis (direitos civis básicos). As nações são avaliadas por notas de zero a dez para cada categoria, sendo: democracias plenas (notas entre 8.01 à 10), democracias imperfeitas (6.01 à 8), regimes híbridos (4.01 à 6) e regimes autoritários (0 à 4).
A partir da avaliação dessas categorias, e, posteriormente, diante de um cálculo em que os resultados definem um regime político, é possível associar como os países se comportam, sabendo do seu tipo de governo e como ele se comporta. Estes cinco parâmetros são, portanto, determinantes para pensar o modo de administrar um país.
Logo, retornando a pesquisa da EIU, o declínio de 3,7% da democracia mundial está diretamente relacionado ao enfraquecimento desses critérios na maior parte do globo.
“Tu vai reclamar do quê?”
Leila Martinez, 56, é guia brasileira e estrangeira no Catar, país que ocupa a 114° posição no ranking da revista The Economist. Ela expõe alguns dos problemas de conduta dos países, levantados pelo professor David. Como narra Martinez, o Catar, país considerado antidemocrático, é conhecido como um dos mais ricos do mundo. A digital influencer afirma que: “O governo provém tudo, mesmo para os catares, ou estrangeiros, então as pessoas que estão aqui, elas nem têm críticas para fazer para os governantes, não existe essa possibilidade. Morar num país que te dá segurança, te da saúde, te dá transporte, tu não paga imposto, tu tem casa, tem escola. Então assim, tu vai reclamar do quê?”
De fato, o Catar é um país economicamente desenvolvido. No entanto, mesmo que Leila comprove esta perspectiva, há de se considerar, também, que a experiência da guia turística é apenas um “ponto fora da curva”, no que diz respeito à garantia de direitos democráticos. No Catar, onde 90% da população é estrangeira, as pessoas vivem em situação de desigualdade social se comparadas aos 10% de nativos, que mesmo sendo minoritários, são a parcela da população com acesso aos benefícios econômicos do país. Portanto, a negação de direitos humanos à maior parte do povo torna o Catar um país antidemocrático, confirmando a relação proposta por David.
No que lhe diz respeito, Leila Martinez, por meio de suas redes sociais, compartilha algumas curiosidades sobre a realidade catari, expondo a cultura nacional e seu regime político. Em uma das publicações feitas por ela, a brasileira ressalta a linha de sucessão monárquica do país, que diverge completamente dos parâmetros estabelecidos anteriormente sobre governos democráticos.
Vigilância necessária
Outro país que confirma a lógica proposta pelo professor Getúlio é o Egito. O país tem uma das civilizações mais desenvolvidas da história, e, hoje, uma nação com uma República conduzida pelo Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF). Para que chegasse no que pode ser considerado um regime democrático, depois de 23 anos de ditadura, foi necessária uma onda de protestos da população. Em 2011, após intensa intervenção dos egípcios, que buscavam a derrubada do governo ditatorial, se instalou a revolução denominada “Revolução de Jasmin”, responsável pela renúncia do então presidente Hosni Muralak. Este movimento desassociou o país do antigo parlamento e suspendeu a constituição vigente da época.
Muhammad Sayed, nativo de Cairo, no Egito, visita um dos mais famosos pontos turísticos do Egito, o Templo de Abu Simbel, em Aswan, às margens do Rio Nilo / Foto: Beatriz Cordeiro.
Embora o atual contexto seja diferente das décadas anteriores, o governo do Egito ainda apresenta diversas características autoritárias. O estudante de Engenharia de Áudio, Muhammad ElSayd, 22, é nativo do Cairo, capital do país, e afirma que as funcionalidades do parlamento egípicio são quase inúteis. “Nós temos um parlamento que representa a maioria da população, e temos muitos partidos políticos, mas como as autoridades e as legislações vêm apenas dos presidentes e dos seus ajudantes, é como se o parlamento fosse inútil”, explica.
Para ele, a democracia egípcia existe apenas no papel. Mesmo que haja eleições e as deliberações devam levar em consideração a opinião pública, as autoridades manipulam os resultados e tomam as decisões de acordo com sua própria vontade. ElSayd complementa: “Aqui no Egito a política é como o sexo e a religião, não falamos muito sobre isso.”
A revolução anterior demandou muita coragem por parte dos egípcios. A sociedade, quando inserida nesses contextos autoritários, busca agir de acordo com o que lhe é imposto, pois caso contrário, os direitos humanos são estremecidos, assim como comenta Muhammad: “Qualquer um que se desvia fica desaparecido até que seus pais fiquem entediados de procurá-lo. Todo egípcio tenta evitar contato com autoridades porque nunca vai bem”.
Para além do pensamento sobre o destino da democracia, a reflexão sobre o assunto deve levar em consideração o posicionamento individual e coletivo no mundo. No lugar em que estamos e para onde iremos, levamos a democracia conosco, em maior ou menor escala. De acordo com o professor Getúlio, “a gente precisa assumir que ele [o declínio da democracia] existe para responder essas perguntas - e não necessariamente isso é uma verdade absoluta, justamente por causa desse movimento pendular”.
O movimento do pêndulo determina que não há uma estabilidade. Ao mesmo tempo, não existe uma queda tão brusca que a faça ser extinta, porque há uma base sólida que assegura o mínimo de direitos humanos, mesmo quando ele parte do próprio movimento social. Afinal, pensando na perspectiva internacional, a democracia pode ir para qualquer lugar, de sua maneira e ditando a realidade dos países.
12 princípios básicos
da Declaração Universal dos Direitos Humanos
Níveis de democracia
Getúlio Alves,
professor de Gestão Pública da UFOP
Um diálogo para importantes questões na luta pela democracia brasileira: o Estado, a mídia e o povo.
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