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| Foto: Yan Lucas
75 anos de luta
A Declaração dos Direitos Humanos não é só um documento,
mas uma jornada contínua por um mundo mais justo e igualitário
Iris Bastos, Mayara Fernanda e Yan Lucas
agosto, 2023
Há mais de sete décadas, um documento foi adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU), estabelecendo os fundamentos para a proteção dos direitos humanos em todo o mundo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), proclamada em 10 de dezembro de 1948, representa um marco na história da humanidade, reafirmando a importância da dignidade, igualdade e liberdade para a população mundial, principalmente aqueles que estão à margem da sociedade.
A DUDH que conhecemos hoje contém 30 artigos que abordam uma amplitude de direitos, desde a liberdade de expressão e religião até o direito à educação, ao trabalho digno e à proteção contra a tortura e a escravidão. O cientista político e ex-ministro da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro, explica a importância do Estado para a população na relação com a garantia de direitos. Para ele, cabe aos órgãos públicos “defender os direitos do cidadão, garantir a paz no interior da sociedade e promover os direitos, especialmente aqueles que dizem respeito ao racismo, e às desigualdades, e violência ilegal”.
Completados 75 anos da promulgação, não há muito o que comemorar. O marco serve de reflexão, mas falta efetividade em sua aplicação. Ainda que o documento esteja resguardado por várias décadas, preconceitos e barbaridades levam a violações de seus artigos desde os anos 1940. O Brasil, por exemplo, é o país que mais mata pessoas transexuais no mundo pelo 14° ano seguido, como aponta um levantamento divulgado em 2022 pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra); e esteve em 1° lugar no ranking mundial de países que mais desmatam o meio ambiente em 2022, segundo o site de monitoramento ambiental Global Forest Watch, deixando claro que esses direitos, à vida, ou à natureza, não estão sendo considerados. No mesmo ano, segundo levantamento da ONG Global Witness, o Brasil é líder no mundo em assassinatos de defensores dos direitos humanos e do meio ambiente, com mais de 342 mortes nos últimos dez anos, comprovando que o país está em retrocesso nas questões ambientais.
Fabrício Pontin, professor do curso de Direito e Relações Internacionais da Universidade La Salle, em Canoas - RS, relembra que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não é o primeiro documento de garantia de leis que a humanidade conhece. Ainda nos anos 1600 houve a “Constituição das Carolinas”, adotada no território onde hoje é a Virgínia e a Flórida, nos Estados Unidos, influenciadas pelo contrato social do filósofo inglês John Locke (1632-1704), e que tinha o propósito de proteger a vida, a liberdade e a propriedade dos “carolinos”.
Posteriormente, nos anos 1700, a Declaração da Independência dos Estados Unidos da América também surgiu com o objetivo de difundir conceitos básicos dos direitos dos estadunidenses, sendo também um pioneiro conjunto de leis fundamentais na historiografia. Ainda conforme Pontin, “a ideia de declaração dos direitos humanos, especialmente na contemporaneidade, é a tentativa da criação de um sistema que seja capaz de proteger e dar garantias para todos; e todos significa pensar num sistema que vai proteger as pessoas as quais consideramos as mais abjetas”.

A evolução dos direitos humanos foi marcada, numa longa trajetória, por fatos políticos, históricos e culturais que cooperaram para firmar a própria noção de humanidade
| Foto: Samuel Almeida
Para o professor de Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Lucas Carlos Lima, falar sobre direitos humanos 75 após a Declaração Universal remete à ideia básica de que as pessoas possuem direitos intrínsecos pela própria condição de existirem, independentemente do local do globo em que se encontrem. “Significa também falar de uma série de outros instrumentos internacionais que foram adotados pelos Estados para concretizar esses direitos, que estão sempre em evolução e sendo aplicados em cada país do mundo".

O principal desafio continua sendo a sua implementação. Avançamos muito no campo das ideias, mas falta muito para garantir a universalidade de direitos
— Lucas Lima


O Morro do Papagaio, em Belo Horizonte, dá uma visão do quanto a erradicação da pobreza e da desigualdade social está distante
| Foto: Larissa Viana
Ao longo dos anos, a DUDH influenciou a criação de legislações nacionais e internacionais, inclusive a Constituição Federal Brasileira que, no Artigo 3 parágrafo III e IV, prega “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. No entanto, apesar da adesão, ainda há desafios significativos a serem enfrentados. A violação dos direitos básicos persiste em muitas partes do mundo, de diferentes modos e alvos.
A docente no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGDIR) na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e pesquisadora em direitos humanos e saúde mental, Artenira Silva e Silva, aponta que um dos motivos da falta do cumprimento dos artigos da Declaração começa desde a formação acadêmica. “Lamentavelmente nós temos uma grande lacuna na formação acadêmica brasileira de diferentes cursos, lembrando que somos os maiores em quantidade de escolas de Direito no mundo todo, o que significa uma proliferação de profissionais, sem que a gente não se atente a que tipo de profissionais estamos formando”, diz a especialista.
| RESISTÊNCIA CONTÍNUA
Com a crescente globalização e o fluxo migratório, o Brasil se tornou um destino para inúmeras pessoas em busca de uma nova vida e oportunidades. No entanto, essa jornada de acolhimento é acompanhada por desafios complexos relacionados aos direitos humanos.
A questão dos imigrantes é uma das maiores vulnerabilidades atuais. Para o argentino Federico Grassi, 30, no Brasil, o apoio do Governo Federal é mínimo. “Recebemos o auxílio básico de moradores de rua. A situação é complicada, mas temos mais apoio e benefícios aqui no Brasil do que em outros países. Apesar da luta, nós resistimos a cada dia”, diz.
Federico atua, principalmente, na arte do malabarismo nas ruas, inclusive nas paradas dos semáforos em Mariana - MG. Segundo dados do Relatório Anual dos Direitos Humanos no Mundo, feito pela Anistia Internacional em 2023, mais de 180.000 pessoas no país não tinham onde morar. Destas, 68% eram negras e 84% recebiam o Auxílio Brasil.

O argentino Federico Grassi faz malabarismo em semáforos para sobreviver no Brasil
| Foto: Iris Bastos
Assim como Federico, parte da população brasileira hoje é formada por estrangeiros que buscam aqui melhores condições de vida. Mais de 65 mil pessoas foram reconhecidas como refugiadas segundo levantamento de abril de 2023, feito pelo Comitê Nacional para Refugiados (Conare). Um dos países vizinhos em que mais se vê essa migração é a Venezuela, pois segundo relatórios da Conare foi a nacionalidade que mais solicitou o reconhecimento da condição de refugiado.
Segundo pesquisa de 2023 do Observatório de Finanças da Venezuela (OVF), entre 2014 e 2020, a Venezuela perdeu mais de de 75,5% de seu Produto Interno Bruto (PIB), causando grandes crises financeiras no país. Isso gerou um aumento da inflação, possuindo atualmente a maior taxa da América do Sul com mais de 300% de acordo com estudos da ONG Centro de Difusão do Conhecimento Econômico (Cedice), intensificando o número de refugiados que tinham como principal destino o Brasil. Em 2019, o auge da fome na população venezuelana registrou o maior número de emigrantes do país. Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), cerca de 4,5 milhões de venezuelanos saíram de sua terra natal nesse ano.
180mil
pessoas desabrigadas
65mil
refugiados
*números relativos ao Brasil, em 2023
Maria Lorena, 33, venezuelana, está no Brasil desde o fim de 2019. “Vim ao Brasil como mochileira e não sabia nem falar o portugûes. Com a inflação daquele jeito, não tinha como continuar morando lá”. Vivendo em Mariana - MG devido ao forte turismo da região, Lorena afirma que o Governo brasileiro lhe deu suporte para morar no país, sendo cadastrada e possuindo o CPF.
Em seu trabalho como artesã, Lorena expõe sua arte em praças públicas e pelas ruas da cidade histórica. “Quando cheguei no Brasil, não foi fácil a adaptação. Além da dificuldade com a língua, tive que aprender a arte do artesanato para poder sobreviver. Passei por vários lugares. Morei no Ceará, cheguei até Minas Gerais e consegui trazer meu filho Sebastian, de 11 anos, para cá. Morei um tempo em Teófilo Otoni e tive meu outro filho lá. Agora já tenho três, com essa aqui de apenas 7 meses”, conta.

Maria Lorena saiu da Venezuela em 2019 para tentar melhorar a vida de sua família
| Foto: Iris Bastos
Apesar de dizer que se sentiu acolhida pela sociedade brasileira, ela se queixa do apoio aos imigrantes e principalmente aos artesãos. Para ela, o trabalho deveria ser mais valorizado e o Estado, de alguma forma, deveria dar mais auxílios aos artistas de ruas, incluindo os que não são deste país. “Hoje estou mais estabilizada, né? Me casei, meus filhos vivem bem, mas há dias em que nem sempre o trabalho vai bem. Como todo comércio, o artesanato tem as suas dificuldades e, além disso, o aluguel aqui em Mariana é muito caro”, conclui a artesã.

Maria Lorena expõe seus artesanatos na Praça da Sé, em Mariana, Minas Gerais
| Foto: Iris Bastos
| ÓDIO VIRTUAL
O avanço tecnológico tem trazido novos desafios para os direitos humanos, especialmente no que diz respeito à privacidade e à proteção de dados pessoais. A coleta em massa de informações, vigilância em larga escala e uso indevido de tecnologias têm levantado preocupações sobre a cultura do cancelamento, liberdade de expressão, a privacidade e a segurança dos indivíduos.
De acordo com levantamento de janeiro de 2023 da We Are Social, agência global especializada em mídias sociais, aproximadamente 5,16 bilhões de pessoas usam a Internet, o que significa que 64,4% da população mundial está conectada à web. A criação de regulamentações eficazes e a conscientização sobre os riscos são essenciais para equilibrar os avanços tecnológicos com a proteção dos direitos fundamentais.
Guilherme Amorim, advogado e conselheiro da Rede Social da Justiça e dos Direitos Humanos, incentiva tal conscientização através da educação básica, pois, segundo ele, “todas as pessoas merecem aprender e conhecer sobre os seus direitos, principalmente os mais jovens, que são mais atuantes nas redes e na tecnologia em geral”. Amorim aponta que hoje em dia as pessoas se acostumaram a confundir a liberdade de expressão com ações criminosas, principalmente com ataques e falas preconceituosas e com discurso de ódio em mídias sociais. “É preciso separar isso, a internet não pode ser uma terra sem lei, as pessoas podem falar o que quiser, sim, isso é liberdade, mas elas têm que ter consciência que serão penalizadas se desrespeitarem os direitos humanos. Racismo, nazismo, entre outras intolerâncias são inaceitáveis em nossa sociedade e devem ser combatidos”, afirma o advogado.

[...] as pessoas podem falar o que quiser, sim, isso é liberdade, mas elas têm que
ter consciência que serão penalizadas se desrespeitarem os direitos humanos
— Guilherme Amorim
Na mesma linha de raciocínio, o professor da UFMG, Lucas Carlos Lima, explica que a liberdade de expressão não é escudo contra pronunciamentos racistas, porque a sociedade elegeu esse valor como o mais importante a ser protegido. “Existe uma distinção entre falas polêmicas e falas preconceituosas”, resume.
No contexto da atual cultura do cancelamento, os discursos de ódio podem ser vistos como uns dos cibercrimes mais presentes na violação dos direitos humanos na internet. O fenômeno, que ganhou força a partir de 2017, tem a intenção de “boicotar” ou “cancelar” pessoas nas redes sociais, visto que são inúmeros os motivos que definem a prática, dentre eles atos racistas, homofóbicos e machistas. A Safernet, ONG que atua em defesa aos direitos humanos na web, em uma pesquisa divulgada em fevereiro de 2023, apurou dados que representam o número de denúncias de crimes envolvendo discurso de ódio nas redes sociais. O levantamento mostra que as denúncias de crimes envolvendo discurso de ódio online tiveram um aumento de 67,7% em 2022 em comparação com o ano de 2021.
Ainda de acordo com a ONG, mais de 74 mil queixas foram encaminhadas para a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, sendo o maior número de denúncias de crimes de discurso de ódio em ambiente virtual desde 2018. Em suma, grande parte dos casos acontece através de um conflito de opiniões. Sua gravidade é compreendida quando o “cancelado” torna-se alvo de exclusão e linchamento virtual.
Em abril de 2023, a estudante Isadora Lúcia, 22, foi anunciada como a vencedora do concurso Miss Universo Minas Gerais. Com grande repercussão nas redes sociais, em especial no Instagram, a modelo recebeu diversas críticas em comentários das publicações do próprio concurso e também em seu perfil oficial. Grande parte desses comentários era de cunho negativo, com falas preconceituosas e principalmente racistas.
“A foto principal do evento foi [publicada] logo que eu venci o concurso, no dia 30 de abril. Muitos comentários racistas falaram que eu só teria vencido porque era um concurso de cotas ou que eu não era bonita o suficiente; que eu era bonita sim, mas não suficiente pro mundo. Então, o que eles estavam querendo dizer com isso, né? Outros também falaram que eu não estava nos padrões. Mas que padrões são esses?”, questiona a Miss Universo Minas Gerais.


Muitos comentários racistas falaram que eu só teria vencido porque era um concurso de cotas ou que eu não era bonita o suficiente; que eu era bonita, sim, mas não suficiente pro mundo
— Isadora Lúcia
Isadora Lúcia, vencedora do Miss Universo Minas Gerais, foi vítima de cibercrimes, com ataques racistas
| Foto: Cássio Moreira
Neste ano, a coroa do Miss Universo Minas Gerais foi em homenagem à Chica da Silva, mulher negra que foi escravizada no século XVIII. Chica virou símbolo da luta racial no Brasil, por conseguir a própria liberdade e se tornar uma das pessoas mais ricas e influentes do período colonial, tendo enfrentado o racismo por toda sua vida. Isadora considera a sua vitória ainda mais importante por causa da homenagem. Porém, isso serviu de motivação para mais ataques contra ela, afirmando que o resultado já estava “comprado”.
Em um Estado onde, segundo o IBGE, 60% da população se autodenomina como pessoa negra, Isadora foi apenas a terceira mulher preta a ser eleita miss. Ela afirma que a população negra não se vê representada nesse tipo de concurso, visto que, segundo ela, as pautas raciais são pouco abordadas em eventos como esse. “Eu acredito que ao mesmo tempo, por eu ser uma pessoa nova nesse mundo da moda, fez com que muitas pessoas questionassem quem eu era, qual era a minha trajetória e principalmente o porquê da minha vitória. Com isso, os comentários acharam uma brecha ali para serem racistas comigo”, afirma.
A miss diz que o tempo todo tentou ser forte perante aos ataques virtuais sofridos e entende o racismo estrutural enraizado na sociedade. Outro grande problema por ela percebido é a permissividade da internet para tais atos preconceituosos. “É muito triste ver que a internet é um local que permite isso. Pessoas colocarem máscaras, usarem perfis falsos. Eu, meu produtor e meu namorado, analisamos as publicações e na maioria dos comentários que eu sofri racismo e outras falas desagradáveis, eram escritos por perfis fakes. Então não eram pessoas públicas, eram fakes que a gente não sabe quem são, de onde vem. E essa é a realidade atual da internet: causa muitos danos ao psicológico das pessoas”, reflete

Isadora é um exemplo de que as as redes sociais são palco para ataques constantes
| Foto: Mayara Fernanda
A Miss Universo Minas Gerais não procurou as autoridades por achar que seria uma investigação muito demorada por conta dos perfis, em maioria, serem fakes, o que demandaria mais tempo e até dinheiro com honorários de advogados. Ela ainda afirma que seu produtor, Diley Almeida, chegou a sofrer ameaças de mortes por mensagens privadas após o resultado do concurso. Ademais, ela se diz desprotegida, principalmente na internet, envolvendo as redes sociais e os perfis falsos.
De todo modo, sente que cumpriu seu dever ao representar a população negra no concurso. E, sempre que pode, debate as pautas raciais, coisa que faz desde a adolescência. Isadora diz que hoje se vê como uma inspiração para mais meninas e mulheres negras buscarem seu espaço em qualquer segmento profissional e que, assim como ela, defendam seus direitos e não abaixem a cabeça perante o preconceito, tanto na sociedade quanto no mundo virtual.
| CRIMES SEM REPARAÇÃO
Os direitos humanos no meio ambiente são fundamentais para garantir a proteção e preservação da natureza e a qualidade de vida dos seres humanos. A DUDH reconhece que todos têm direito a um ambiente saudável e equilibrado. Isso inclui o direito ao acesso a recursos naturais, à água potável, ao ar limpo e à segurança ambiental.
Além disso, os direitos humanos no meio ambiente estão interligados com questões sociais, como a garantia de justiça ambiental, evitando que comunidades vulneráveis sejam deslocadas ou expostas a riscos diante das calamidades.
O crime, causado pela empresa mineradora Samarco, em Mariana, Minas Gerais, no dia 5 de novembro de 2015, trouxe danos ambientais graves provocados pelo derramamento de rejeitos de minérios e, além disso, alterando a vida de centenas de famílias que viviam nas áreas atingidas.
O rompimento da barragem de Fundão foi considerado o maior crime socioambiental registrado no Brasil, de acordo com o Ministério Público Federal (Novembro de 2015). E é apontado como o primeiro crime ambiental brasileiro de violação de direitos humanos, segundo o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

Em 2015, a janela que restou entre as ruínas de uma casa em Bento Rodrigues se manteve aberta, mas não para a garantia de justiça ambiental
| Foto: André Carvalho
Leandro Scalabrin, advogado, relator do caso do rompimento da barragem e membro do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, na época do crime, afirma que “só existe plena reparação, quando não existem novas vítimas”. Mesmo depois de Mariana, outros rompimentos de barragem [no Maranhão, no Mato Grosso, na Bahia, no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina] provam que não houve reparação total, e que rompimentos e vítimas de barragens ainda continuam existindo em outras partes do Brasil.
“O que a gente espera para evitar novos crimes, é que haja avanços institucionais nas leis e nos Estados, para que as políticas públicas que assegurem os atingidos sejam tiradas do papel e de fato efetivadas, e que haja plena reparação”, afirma Leandro. “Até houve avanços na legislação federal na segurança de barragem, mas a fiscalização ainda é muito insuficiente e esses crimes continuam acontecendo", completa o especialista.
Atualmente, Scalabrin mantém as suas colaborações acerca dos grupos vulneráveis, hoje ele faz parte da Comissão Permanente dos Direitos dos Povos Indígenas, dos Quilombolas, dos Povos e Comunidades Tradicionais, de Populações Afetadas por Grandes Empreendimentos e dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Envolvidos em Conflitos Fundiários.
Manuel Marcos Muniz, 59, nascido em Mariana e criado na localidade de Bento Rodrigues desde os 6 anos de idade, representa a voz do distrito onde aconteceu o rompimento da barragem de Fundão. Marquinhos, como é mais conhecido, é um ex-funcionário da empresa responsável pelo ocorrido, a qual dedicou 29 anos e 10 meses de prestação de serviço como operador e mantenedor de bombas.

A seriedade de Marcos Muniz traduz a inconformidade com a tragédia de Mariana
| Foto: Iris Bastos
Após garantir sua aposentadoria pela Samarco, Marcos vislumbrava os planos que fez assim que parou de trabalhar: continuar cuidando de suas criações, plantações e principalmente, priorizar seu descanso. No entanto, em 5 de novembro de 2015, a história de vida de Marcos foi transformada. O rompimento que atingiu o distrito de Bento Rodrigues, destruiu sua casa, matou alguns de seus animais e devastou o que era cultivado naquela terra.
“Hoje vivemos em função do rompimento da barragem”, diz Marcos ao expor que se dedica às reuniões desenvolvidas pela comissão dos atingidos, da qual participa ferrenhamente em busca dos benefícios das vítimas. Os direitos de Marcos, assim como de alguns outros moradores, não foram garantidos até hoje, como casas prontas ou indenizações pagas.
Sobre sua infância, Marcos relembra a vivência com seus 7 irmãos na antiga casa que cresceu, memórias de seu pai e avô, que segundo ele, de modo algum, poderão ser recuperadas. Rememora também aa igreja de São Bento, na qual se casou em 1992 e que também foi usada, em 2017, para a comemoração das bodas de ouro de seus pais.

Do que se perdeu na lama sobram apenas memórias e algumas fotografias no celular de Marcos
| Foto: Iris Bastos
Existe um projeto, por parte da Renova, uma fundação não governamental, de devolução de casas novas para as famílias de Bento Rodrigues, que visa reconstruir a moradia das famílias atingidas, mas que, todavia, ainda não entregou as novas casas para todos, que moram de aluguel custeados pela empresa responsável. “Projeto de casas muito bonitas, mas preferia a minha anterior. Não tem amparo que consiga amenizar o sofrimento!”
Marcos é uma das figuras que vive as inseguranças de um futuro incerto, não sabendo se terá sua casa de volta e, acima de tudo, os seus traumas psicológicos e financeiros restaurados. O crime da barragem de Mariana deveria servir como uma conscientização de que “a corda sempre arrebenta do lado mais fraco”, uma vez que nenhum responsável foi punido de fato.
| O QUE NOS RESTA FAZER?
Um dos desafios atuais dos direitos humanos é a persistência da discriminação e da desigualdade em várias formas. Grupos marginalizados, como mulheres, minorias étnicas, LGBTQIAPN+, pessoas portadoras de deficiência e refugiados, muitas vezes sofrem com infrações de direitos básicos, incluindo acesso à educação, saúde, trabalho digno e igualdade perante a lei. Segundo o painel de dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), mais de 121 mil denúncias de infrações de direitos humanos foram realizadas, no início de 2023, em todo o Brasil.
Outra problemática na aplicação dos direitos humanos é a falta de assistência do próprio Estado. De acordo com o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, “as maiores dificuldades estão nos governos não democráticos e no mal funcionamento do governo democrático. O legislativo, executivo e judiciário, que não estão abertos e nem eficazes para a promoção e aplicação desses direitos, por exemplo a tortura, que apesar de haver um órgão que a controle, elas continuam existindo, principalmente por parte da polícia”.

Atualmente, além do Governo, diversas ONGs são responsáveis por trabalhos sociais sobre direitos humanos. Além de projetos para conscientização da população, várias destas organizações realizam relatórios, pesquisas e debates para evidenciar e promover os direitos humanos, além de relatar e condenar a marginalização de grupos já citados. O principal exemplo é a ONU, mas há outros exemplos como a Anistia Internacional, a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH).
O CNDH tem por finalidade a promoção e a defesa dos direitos humanos no Brasil através de ações preventivas, protetivas, reparadoras e sancionadoras das condutas e situação de ameaça ou violação desses direitos previsto pela Constituição Federal.Hellen Buttignol Perrella, coordenadora Comissão Permanente de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, da População LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), Promoção da Igualdade Racial e Enfrentamento ao Racismo do CNDH, explica a atuação do órgão nacional que já possui 9 anos, apesar das dificuldades:

É muito duro ouvir as denúncias, as violações de direitos humanos são enormes, que o coração até dói. Por isso que o CNDH tem o papel de garantir e transformar a realidade das pessoas, e assim elas saberem que não estão sozinhas
— Helen Buttignol Perrella
As ações humanitárias como a captação de denúncias durante em missões, preveem ao Conselho a ida a locais em que ocorrem violações de direitos, para verificar a realidade, como fizeram na terra Yanomami, no início do ano. A partir daí, há o monitoramento e os desdobramentos dessas ações para, finalmente, solucioná-las.
Através do CNDH, são apoiadas várias vertentes como o acesso à saúde, educação, direitos das mulheres, pessoas negras e LGBTQIAP+. Por isso, com o trabalho de ONGs, deste órgão ou outros e que atuam na obtenção e manutenção desses direitos é possível amenizar o regresso da falta deles.
Nos 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é crucial lembrar que os direitos humanos não são apenas palavras em um documento, mas uma visão compartilhada de um mundo mais justo e igualitário. A construção de um futuro onde todos possam viver com dignidade, liberdade e igualdade não deve ser utópica.
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