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| Foto: Luíza Ferreira

MST transforma

No Assentamento Denis Gonçalves, em Goianá -MG,
o acesso à terra garante  dignidade cotidiana

Catarina Pimenta, June Ruegger e Luiza Fonseca
Fotos: Luiza Fonseca
agosto, 2023

Como conceito abstrato, a dignidade humana prevê, de forma filosófica, os valores atrelados à vida, à honra e à moral, garantidos aos que vivem na nossa sociedade. A discussão acerca dessa ideia divide argumentos dentro de um sistema predominantemente capitalista, no qual vivem pessoas que enxergam essa forma de vida como ideal e outras que lutam pela transformação social.
 
Para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), é inevitável entender a dignidade humana como a garantia dos bens materiais essenciais para a existência e para a boa convivência entre companheiros de luta. O acesso a um pedaço de terra para produzir seu sustento e construir a própria casa não é compatível com uma forma de vida individualista.
 
No Assentamento Denis Gonçalves, a 39 km de Juiz de Fora - MG, essa ideia de dignidade humana se torna realidade. O maior dentre os mais de 50 assentamentos de Minas Gerais completa 13 anos de resistência em 2023 e conta com mais de quatro mil hectares. É lar de aproximadamente 150 famílias de assentados, compostas por pessoas das mais diversas origens, onde constroem suas histórias individuais dentro desse sistema coletivo, com a premissa básica de que estão lá para lutar por seus direitos e mostrar que a mudança social é possível.

Da casca à banana

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Lorena Aparecida dos Santos tem convicção de que o movimento luta pela libertação das pessoas

Lorena

De cabelos escuros, olhar profundo e uma timidez temporária, Lorena Aparecida dos Santos, 30, carrega consigo a alegria de ser assentada. Nascida em Chonin de Cima - MG, conheceu o MST através de sua mãe. Dona Maria Aparecida vivia em Governador Valadares, no acampamento Padre João desde 2010, que foi impossibilitado de se tornar um assentamento. Na época, Lorena trabalhava em supermercado e morava com o pai, enquanto sua mãe ficava no acampamento. 
 

Com a oficialização do assentamento Denis Gonçalves, Lorena e sua família mudaram-se em novembro de 2013. Estando assentada há quase dez anos, Lorena ocupa a função de Assistente Técnica de Educação Básica (ATB) na secretaria da escola Carlos Henrique Ribeiro dos Santos. Também dedica-se à agricultura e, apesar da rotina corrida que leva, Lorena sempre reserva um tempo para passar com sua família. Conheceu seu esposo Gilson, 54, no acampamento de sua mãe e atualmente mora com ele e seus dois filhos, João e Maria, os quais chama de forma carinhosa e orgulhosa de “meus dois sem terrinha”, pois nasceram e foram criados dentro do assentamento.
 

Lorena comenta que sua vida mudou após integrar-se ao movimento: “É como se a gente despertasse, né? Que hoje eu percebo que eu era alienada. E é o que muita gente vive alienada. Não entende, critica as ações do movimento, não compreende como que a sociedade é”. O MST luta por diversos direitos além do acesso à terra e isso Lorena mantém convicto em seu pensamento: “Ver como que o movimento luta pra libertação mesmo das pessoas, né? E aí a gente luta pela terra também pra que as pessoas não tenham necessidade de ficar sendo escravizadas, igual muita gente trabalhava em fazenda. Hoje cada um tem seu terreno, tem seu gado”, pontuou. 
 

Além disso, Lorena tem muita convicção no que acredita a respeito da dignidade humana, é perceptível em sua voz quando diz: “Ter dignidade é uma das coisas que o MST luta muito, porque é no mínimo você ter onde morar e o que comer. E para além disso, é ter o respeito também, que isso também faz parte da nossa dignidade”. Dessa forma, Lorena dá a certeza de que o MST oferece tudo aquilo que ela acredita e luta: liberdade, respeito e dignidade humana.

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Miltinho da Saúde é comumente procurado pelos assentados para tratar de problemas físicos e espirituais em função do seu conhecimento sobre plantas medicinais, medicina alternativa e manipulação de remédios

Miltinho

Milton, 56, natural de Governador Valadares - MG, é conhecido dentro do Denis Gonçalves como “Miltinho da Saúde”, e está no MST desde 2010, em uma casinha de pau a pique que ele mesmo levantou. 
 

Ele costumava trabalhar para fazendeiros e hoje é muito feliz por não precisar depender de terceiros para obter o próprio sustento com suas produções e seus serviços na área da saúde. Seu conhecimento acerca das plantas medicinais vem de sua família, pois seus avós e seus pais foram passando adiante aquilo que sabiam e, ao chegar no movimento, Milton ainda teve a oportunidade de fazer um curso de saúde e ampliar seu talento e sabedoria.
 

Em um contexto no qual muitas terras eram tomadas dos “mais fracos”, Milton, nos seus 14 para 15 anos, escutava sempre de seu pai que chegaria uma época na qual ele é quem estaria tomando essas terras dos fazendeiros. O que aumenta o sentimento de emoção quando ele diz ter conhecido a reforma agrária e, de fato, ter conseguido seus 23 hectares de terra para viver é quando diz: “(...) bem que meu pai falou”.
 

Entrar para o MST mudou a vida de Milton para melhor em diversos aspectos. “O movimento ensina muita coisa boa, sabe? Ensina a gente a tratar as pessoas melhor; eu era um cara muito nervoso e hoje já acalmei demais, graças a Deus. Então tenho mais é que agradecer a Deus mesmo por tudo e ao pessoal do movimento. É uma família né!?”.
 

 Milton costuma cuidar das pessoas em um galpão organizado para os serviços de saúde. Como produz em casa os medicamentos que são encomendados, ele planeja construir um quartinho para facilitar suas produções. Sua competência vai além da manipulação de remédios e plantas, Milton avalia seus pacientes e identifica se o problema é físico ou espiritual para saber como proceder. Ou seja, os trabalhos de Miltinho da Saúde são feitos por meio de orações até massagens e medicamentos. 

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Maria de Fátima dos Anjos, 54, sonhava em ter um pedacinho de terra, só não esperava que ia ser um “tantão”, como classifica seu lote. Atualmente está engajada na produção de bananinhas, além de cultivar hortaliças e legumes para venda

Antepastos do campo

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Vânia Miranda, 49, administra questões burocráticas relacionadas ao assentamento e contribui na produção coletiva. Tem muito orgulho de estar junto à família no movimento, pois acredita que tornar-se assentada foi essencial para ser quem ela é hoje

Vânia

“Eu nem sei falar, eu acho que eu sou outra pessoa (...) o que eu acho lindo que o movimento ensina para a gente, se a gente quiser, entender, o que a gente precisa para viver?” 

Vânia Miranda, 49, nascida em Mucurici - ES, cursou Administração e é colaboradora do setor de produção do Denis Gonçalves. Teve seu primeiro contato com o movimento por meio de uma convivência com o Assentamento Olga Benário, na região de Visconde do Rio Branco - MG. Enquanto morava em Betim, até 2016, visitava duas vezes por ano o Olga Benário, onde estava assentado o pai de uma amiga próxima, e considerava aquele um dos lugares mais lindos do mundo. Porém, na época, ainda não era familiarizada com os ideais do MST. 

Vânia auxiliou na mudança para que sua amiga assumisse o lote do pai depois que ele faleceu. Nesse contexto, Vânia percebeu que não tinha vontade de voltar daquele ambiente. Uma vez que vinha passando grandes dificuldades com os filhos, junto a uma rotina muito estressante na qual saía de casa às seis da manhã e voltava perto da meia noite, tornava-se cada vez mais difícil estar presente. 

Em conversa com uma tia sobre a vida e as possibilidades de futuro naquele cenário, Vânia sentiu a necessidade de ir embora. Chegando em Visconde do Rio Branco, teve uma conversa com seu Chico, que vendia a cerveja por lá e ouviu: "Mas você gosta tanto daqui, tá sempre aqui. Por que você não fica aqui? Tem lote vazio ali". 

Ficaram acampados no Olga por aproximadamente um ano, quando em 2016, após superar diversos desafios como trabalho a distância em Betim, tiveram a oportunidade de serem assentados no Denis Gonçalves. No assentamento, Vânia, após deixar o antigo emprego, seguiu na tarefa de ajudar no setor de produção, bem como auxiliou na construção de cooperativas como a Coopermatas. 

Quanto ao impacto em sua vida, ela diz realmente ser outra pessoa, é como se o movimento tivesse sido um elemento essencial na construção de quem ela é hoje. “E às vezes a gente quebra muita cabeça e a gente nunca tá feliz, nunca ganha o que a gente quer, porque a gente só quer, mais e mais e mais, e a gente vê que a gente precisa de pouco. Claro que precisamos de dinheiro. Não é que a gente não precise. Mas a gente pode minimizar o impacto dele na vida da gente.” 
 
Além disso, os olhos de Vânia brilham com lágrimas quando ela lembra da tranquilidade e emoção que sente por ter seus filhos por perto. “Saber que está um aqui, está outro ali. A gente não perder eles pra esse mundo que está tão difícil. Acho que isso é tudo para a gente”. Para ela, estar com eles não tem preço e diz que faria tudo de novo.

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Tatiana de Souza milita no movimento desde a juventude. Atualmente luta para que mais pessoas possam conhecer o MST e entender seu papel na sociedade.

Tatiana

Antropóloga, Tatiana de Souza, 45, nascida em São Paulo, formou-se na Suíça, especializando-se em Sociologia e Ciência da Religião. 

Quando Tati conta sua trajetória dentro do movimento, mostra que sempre teve em si o incômodo de viver em um mundo tão desigual. O espírito revolucionário que ela alimenta todos os dias no assentamento, desde fevereiro de 2014, coloca em prática tudo o que acredita e considera ser justo e digno para a existência humana. 

Ao voltar da Suíça, em 2006, Tatiana já vinha acompanhando alguns projetos aqui no Brasil, dentre eles o MST. Ela explica que cada um tem sua motivação para entrar no movimento e que, na maioria das vezes, trata-se do desejo de ter um pedaço de terra para chamar de seu e poder produzir. No caso de Tati, porém, ela se tornou assentada principalmente pela questão política e social, por acreditar nos ideais do movimento. Por estar disposta a lutar pelos seus direitos e também por pensar em seus filhos, que serão futuros agentes da sociedade com consciência de classe, com a luta pela transformação social muito bem estabelecida em suas cabeças. 

Em teoria, durante toda a vida, Tatiana teve acesso às ferramentas que poderiam trazer respostas para suas questões, buscando-as em seus estudos. Apesar disso, foi no movimento que alcançou o esclarecimento que sempre procurou. “Eu estudei Antropologia e Sociologia etc. procurando várias respostas e a gente depois descobre que na maioria das vezes não encontra elas na universidade (...) Eu acho que o MST conseguiu me dar as respostas que eu precisava. Eu sou grata ao movimento, sabe? De ter entendido meu papel no mundo e de ter me encontrado num coletivo e isso é uma questão que depois de um certo tempo a gente não consegue mais se imaginar vivendo sem, é impossível, eu não consigo mais me imaginar. Se eu tivesse que sair seria como amputar algo de mim.”

Segundo ela, o movimento faz as pessoas mudarem, faz com que todos que escolheram esse estilo de vida se desapeguem de qualquer individualismo que tenha sido construído naturalmente dentro da sociedade capitalista. E a luta é constante para que tais valores sigam sendo colocados em prática por aqueles que foram criados de forma diferente.

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José Francisco, de 54 anos, e Maria Benta, de 74 anos, são assentados desde 2013. Atualmente produzem para si no próprio lote. Para eles, estar no movimento significa a realização de um sonho de ter a própria terra. Além disso, acreditam veemente que o acesso à educação, moradia e saúde são preceitos básicos para a dignidade humana 

De tudo um pouco

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Elza Lima Ferreira, 58 anos, é assentada no Denis Gonçalves desde 2013. É responsável pela produção de compotas de goiabada e mamão, doce de leite em pedaço e cremoso, torresmo e chás 

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Elisangela das Dores Carvalho encontrou no movimento ideais pelos quais sempre lutou: justiça social, direitos básicos e dignidade humana

Elis

Determinação, persistência e empatia são algumas das diversas qualidades visíveis no caráter de Elisangela das Dores Carvalho, 45. Por anos, trabalhou no setor de educação em ONGs, até que, praticamente de forma natural, foi somando-se ao MST para ajudar nos encontros sem terrinha. Ingressou na primeira turma do curso de licenciatura em Educação do Campo, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde também conheceu seu atual companheiro, Adilson Custódio Pereira, 50, mas acabaram perdendo o contato durante a graduação.

Prestes a se formar, Elis recebe a notícia devastadora de que seu irmão, também militante, foi assassinado brutalmente pela milícia do Rio de Janeiro. Por essa razão, Elis decide se juntar à uma ocupação na baixada e, por pouco, não interrompe seus estudos. Ao voltar para Minas Gerais, reencontra Adilson, que vai para a Zona da Mata contribuir. Em 2016, Elis deixa oficialmente a diretoria regional da baixada e assenta-se em Denis Gonçalves, juntamente com seu esposo.

Sua primeira função no assentamento foi contribuir na escola. Atualmente está na coordenação de educação e cultura regional, possui um filho de três anos e cuida de diversas demandas do assentamento e também da sua vida pessoal. Para ela, a região da Zona da Mata possui uma grande diversidade de expressões culturais e artísticas que devem ser incluídas no cotidiano dos assentados e, para além disso, precisam ser preservadas. “A gente tem tentado trazer um pouco isso para o nosso povo, porque o movimento, ele tem esse jeito de organizar, que está muito presente, que a gente chama de mística, a música, a poesia, a própria ciranda, que é um resgate também da cultura popular. Porque, se não, as crianças, é a questão da memória, do que os africanos faziam né, os nossos griôs, de contar as histórias que isso é importante. Então é meio que um resgate”, comentou.

Sobre o conceito de dignidade humana, Elis tem muito claro em sua mente que “a dignidade humana é você ser sujeito, você não se curvar a esse sistema que está aí. É você ter seus direitos assegurados, os básicos, direito à vida, direito a comer, o direito a morar, e no nosso caso, o direito à terra, mais especificamente, para produzir, para produzir a vida”. Elis pontuou que o movimento assegura os direitos básicos para o indivíduo e isso se dá também na relação com o outro. Principalmente porque os assentados constroem coletivamente, reconstroem-se e valorizam o que de fato é necessário.

Com uma fala firme e ao mesmo tempo repleta de experiência, Elis ressalta a importância do MST em sua vida: “Eu estou num lugar em que eu me sinto feliz de poder contribuir, de ser uma militante de um movimento social que é odiado e amado, quase que na mesma proporção, mas que luta pela terra, pela reforma agrária e pela transformação social”. Elis carrega consigo marcas de diversas ações, experiências e pessoas que auxiliou durante seus anos nas diretorias dos assentamentos, mas sempre com a consciência de seus processos e escolhas que a levaram a continuar batalhando pelas causas que o movimento luta.

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Produto editorial da disciplina
Laboratório Integrado II: Grande Reportagem, elaborado por estudantes do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto

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