Cleverton Monteiro, Lucca Bernard e Marcelo Gonçalves
Novembro 2022
País de símbolos e disputas
A negação institucional de narrativas vislumbra um Brasil com protagonistas históricos e apagamentos da diversidade nacional
Brasília, DF, 7 de setembro de 2022. Durante o dia, centenas de pessoas reunidas na Esplanada dos Ministérios: sob a esquadrilha da fumaça que colore o céu em sincronia, estão o verde e o amarelo, presentes principalmente nas bandeiras como manto e nas camisetas vestidas. Esse cenário, por pouco bicolor, carrega símbolos criados há muito tempo, que reiteram a tentativa de afirmar um país, um país pós-colonização, um país independente.
As multidões reunidas no dia 7 de setembro não se restringiram apenas a Brasília, elas estavam em diversas cidades do Brasil. As cores usadas são uma referência aparente à celebração do bicentenário da Independência do Brasil. Aparente porque, apesar do marco, o verde e amarelo é utilizado também em forma de apoio a políticos, candidatos ou eleitos, que se norteiam num imaginário de patriotismo. É nesse momento que os Símbolos Nacionais - oficializados na Constituição de 1988 - são evocados, numa tentativa de sintetizar uma identidade nacional.
O caderno Símbolos Nacionais, integrante da exposição organizada em 2009 pelo Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados, em comemoração à Semana da Pátria, diz que a Bandeira Nacional, o Hino Nacional, o Brasão Nacional e o Selo Nacional são símbolos do povo brasileiro, dos ideais, do território, das origens, das conquistas e das organizações políticas. O documento sugere que os quatro foram instituídos com a finalidade de representar a “relação direta do cidadão com o Brasil e sua história”.
Essa interação se dá a partir de um processo de identificação que atravessa questões históricas, culturais e sociais. A própria camisa da seleção brasileira é um desses exemplos. Para além da conexão política e esportiva, a peça possui um sentimento compartilhado, o amor pelo futebol que, abraçado ao samba, é um símbolo de brasilidade exportado mundo afora.
Além da camisa, existem ainda outros símbolos artísticos, turísticos, culinários e uma diversidade de coisas que representam o que é ser brasileiro. É importante perceber a “disputa” que atravessa esse processo. Segundo o historiador e pesquisador Luiz Antônio Simas, há um confronto de narrativas que é permanente e está presente nas comemorações dos 100, dos 150 e também hoje. "Essa disputa está ancorada num certo discurso que pensa a nação a partir da grande efeméride, a partir digamos, de uma certa história oficial. E ao fazer isso, evidentemente, você apaga outras narrativas, porque há um processo histórico”, conta o pesquisador.
Essa “história oficial” possui figuras como Benjamin Constant, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, responsáveis por batalhas pelo controle daqueles que seriam os ícones de afirmação do novo país [o Brasil independente] perante as potências ocidentais. Entretanto, o principal constituinte da nação, o povo, fora escanteado nesse processo. “Existiam vozes divergentes que pensavam a independência dentro da perspectiva abolicionista, por exemplo. Tentando apagar essas narrativas populares, concentra-se na figura de um herói exemplar, no caso Dom Pedro”, fala Simas.
Dom Pedro I, o príncipe Pedro de Alcântara, teve a imagem de “herói nacional” construída em um processo que é fruto dos objetivos da elite brasileira, extremamente marcados pela escravidão e pela concentração de terra. Simas conta que a independência foi aderida por essa elite agro escravocrata em virtude da Revolução do Porto, que pedia a volta da família real e a recolonização do Brasil. E, com a inevitável separação, a elite temia que uma rebelião social acontecesse, colocando em risco a escravidão e o latifúndio. Então, as diversas lutas que acompanharam o processo de Independência do Brasil, como a Batalha do Jenipapo, as guerras na Bahia, os levantes populares no Pará, os conflitos no Rio Grande Sul, acabaram marcadas por um discurso histórico que apagou esses outros recortes.
A historiadora Isabel Lustosa conta ao podcast Café da Manhã, em 7 de setembro de 2022, que a promoção da imagem do príncipe aliado dos brasileiros também teve influência da imprensa, que começava a nascer. O objetivo era convencer Dom Pedro a aderir ao “Fico” e depois à própria independência. “Esse processo envolvia a exaltação das qualidades do príncipe e isso prolongou-se ao longo da história”, destaca a historiadora na entrevista.
Além disso, também existem as representações do monarca que reforçam de maneira "glamourizada" a proclamação. Como exemplo, o quadro “Independência ou Morte!” de 4,15 m de altura por 7,60 m de comprimento, do pintor Pedro Américo, em exposição no Museu do Ipiranga em São Paulo, SP. Pintado em 1888, 66 anos depois do marco, a obra ilustra D. Pedro em uma cena heróico-teatral erguendo a espada às margens do Rio Ipiranga. A tela promove uma elevação dos símbolos da monarquia e independência. Essa mesma obra, como destaca a historiadora Lustosa, reforça mais uma vez a ideia de um processo de independência pacífico e harmonioso, que acaba por excluir totalmente figuras, principalmente femininas, como a baiana Maria Quitéria de Jesus (1792-1853), que teve importante atuação na luta contra as tropas do português Madeira de Melo, em Salvador, BA.
Além de Quitéria, há ainda outras grandes heroínas no processo de separação do Brasil e Portugal, como: Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, única mulher a participar da Conjuração Mineira; Maria Felipa de Oliveira, vendedora de frutos do mar da Ilha de Itaparica-BA e líder das Vedetas da Praia, grupo que emboscou soldados da Coroa que tentavam desembarcar na ilha; Maria Leopoldina da Áustria, primeira esposa do Imperador D. Pedro e responsável pela assinatura do decreto da Independência, de 2 de setembro de 1822. No livro "Independência do Brasil: as mulheres que estavam lá", publicado em 2022, Heloisa Starling e Antonia Pellegrino organizam, além dessas, histórias com trajetórias de outras figuras femininas que desempenharam papéis-chave no processo de separação de Portugal.
O historiador e mestrando pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Thierry Queiroz, conta que, em 1922, o centenário foi celebrado através de uma festa estrondosa, com objetivo de reafirmar de maneira simbólica, através do aniversário da Independência, um país moderno. “Era a comemoração de cem anos da independência do Brasil enquanto uma República e, além disso, era muito simbólico. Foi feito um investimento muito grande para essas comemorações, como a primeira transmissão de rádio para todo o país, por exemplo ”, detalha Queiroz.
Porém, como destaca Luiz Antônio Simas, essa investida do governo foi influenciada por uma percepção eurocentrada: “ser moderno nos 100 anos de independência é ser um país de padrão cada vez mais europeu”. Os debates com relação à modernização do Brasil vêm desde a década de 1870, pautados pela necessidade da construção de uma identidade nacional, fundamentada no projeto de branqueamento do Brasil, que reforçava o pensamento eugenista latente da época. E, mesmo que o governo quisesse mostrar um país que rompeu com o colonialismo, ainda existia (e existe) uma mentalidade apoiada na colonialidade. Presa ao racismo, fruto do sistema escravocrata, e potencializada pela concentração de renda, apoiada pela concentração latifundiária.
Em 1922, a Semana de Arte Moderna buscou uma arte condizente com a época e com o que eles entendiam como estética brasileira independente. Havia uma necessidade de traduzir a realidade centenária e as mudanças que se passaram até aquele momento. E uma das principais características foi a busca por um novo Brasil, que se concentrava em seus próprios traços culturais e sociais, na tentativa de iluminar os símbolos brasileiros não oficiais.
Apesar de não estar à sombra da efervescência das políticas de embranquecimento, as comemorações dos 150 anos (sesquicentenário) aconteceram no Regime Militar, sob o decreto do Ato Institucional 5 de 1968 - com intensa repressão e tortura. Com desfiles cívicos, as celebrações seguiram um caráter militarista e de patriotismo, além da volta da reverência colonial. A figura de Dom Pedro I foi evocada como sinônimo de heroísmo e amor à pátria, construindo uma narrativa voltada para o discurso consensual, que negou todo tipo de questionamento. Ou seja, foram desqualificados e considerados inimigos da pátria todos aqueles que enfrentavam essa perspectiva. Simbolicamente, o slogan “Brasil: Ame-o ou deixe-o!”, usado a partir dos anos 1970, seguiu essa mesma linha de pensamento, baseada no apagamento.
Em Ouro Preto, MG, público acompanha desfile de escolas e das forças militares no 07 de setembro. / Foto: Marcelo Gonçalves
Consenso e conflito
Esquadrilha da fumaça sobrevoa o céu de Brasília nas comemorações do Bicentenário. / Foto: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil
"Independência ou morte", pintura de Pedro Américo (1888), idealiza a Proclamação da Independência. / Foto de Domínio Público
É a partir deste momento, como conta o historiador Thierry, que os símbolos oficiais são utilizados com ainda mais peso, numa tentativa de fortalecer o sentimento nacionalista. Há o começo da forte associação do verde e amarelo ao campeonato mundial de futebol, numa tentativa de mesclar os símbolos brasileiros que já existiam, com este outro símbolo popular de brasilidade. Visto que o futebol tem um grande potencial de mobilização e uma expressiva audiência, principalmente os jogos da seleção. A vinculação do governo com os campeonatos traz a população para perto a partir de uma identificação. Como exemplo dessa combinação, o antropólogo e professor do Centro de Estudos Estratégicos Educacionais (Cep/FDC), Edison Gastaldo, destaca que no sesquicentenário, o governo criou, com a permissão da Fifa, um torneio de futebol, o “Mundialito” - que reuniu além do Brasil, os times da Inglaterra, Estados Unidos e Portugal - com a vitória dos brasileiros.
Participantes do Grito dos Excluídos protestam contra a polícia no Rio de Janeiro em 2010. / Foto: Samuel Tosta
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Na esteira das mobilizações de rua, o Grito dos Excluídos é um contraponto ao grito da Independência, fundado em 1995. É uma manifestação popular composta por grupos, entidades, igrejas e movimentos sociais que questionam os padrões de independência e propõe reflexões sobre igualdade e protagonismo. O movimento teve origem na 2ª Semana Social Brasileira, iniciativa realizada de forma coletiva com as Pastorais Sociais, Igrejas Cristãs, Movimentos Populares e entidades de ensino para pluralidade cultural e étnica do Brasil. Ao fim da segunda semana social, a necessidade de tornar públicas as reivindicações de um povo historicamente silenciado levou o coletivo às ruas. A partir da adesão da população, a organização cresceu e começou a realizar, anualmente, os protestos do Grito dos Excluídos, sempre no 7 de setembro. O nome faz alusão ao grito do Ipiranga, que mitificou a independência da nação. O dos excluídos, no entanto, oferece voz aos grupos que têm seus direitos negados há mais de 500 anos, mesmo antes da proclamação da Independência.
O padre Alfredo José Gonçalves, 69, veio de Portugal para o Brasil em meados do século XX, e foi um dos fundadores do Grito. Ele ressalta a importância das manifestações para dar visibilidade às questões sociais latentes, além de destacar o crescimento do ato: “o grito se ampliou geograficamente, e também se ampliou do ponto de vista político e social. Outras questões começaram a vir a tona, como por exemplo a questão da violência contra a mulher, a questão LGBTQIA+, a questão do meio ambiente, a questão dos índios, dos negros, a partir daí, outros direitos humanos, outras reivindicações passaram a vir pras ruas”.
Joana Queiros, 22, é estudante de Terapia Ocupacional na Universidade de São Paulo (USP), e moradora de Pirituba, comunidade periférica da região Noroeste da capital paulista. Ela esteve presente no último ato do Grito, que reuniu manifestantes na Praça da Sé. A ação teve início com um café da manhã, em solidariedade às pessoas em situação de rua. A estudante compartilha a visão do grupo, de que o 7 de setembro não se trata de uma data comemorativa: “constituo o Centro Acadêmico da minha faculdade, e convocamos os estudantes para o Grito por entender que não tem o que comemorar neste dia. A independência não aconteceu para todos. A única classe independente aqui no Brasil é a burguesa”.
Antes do questionamento com relação ao “quem nós somos?”, é importante estabelecer uma reflexão sobre a identidade nacional a partir de uma dimensão que é conflituosa. Esta é uma ressalva trazida por Simas ao discutir os símbolos que compõem o Brasil e “o ser brasileiro”. Segundo o historiador, todas as comemorações da Independência se baseiam em um discurso que é consensual, do Brasil que “deu certo” e contribui para o apagamento de inúmeros símbolos atravessados por esses conflitos, deixando para trás guerras e lutas. “O Brasil como projeto de exclusão é muito bem sucedido. Então, as coisas não deram errado. Foram projetadas para isso. Agora, interessa perceber como, diante desse muro tenebroso de exclusão que é construído, é arquitetado, é erguido, você tem frestas onde você vai criando outro tipo de vida”, conta Simas.
Observar as grandes comemorações da Independência mostra um confronto de narrativas permanentes, de amor pela pátria, que tenta apagar conflitos, vozes múltiplas e divergências, estratégia comum no sesquicentenário e, novamente, no bicentenário. Com isso, aqueles que operam na dimensão conflituosa são desqualificados como os inimigos da nação e símbolos da nacionalidade são apropriados e reapropriados nessa empreitada. Nos últimos anos, o verde e amarelo na rua e as centenas de pessoas com a camisa da seleção deixam de lado a exclusividade das partidas na Copa do Mundo e passam a ser sinônimos de manifestações de um mesmo viés ideológico. Mais recentemente, após a eleição de Jair Bolsonaro, são incorporados a esses símbolos de amor à pátria, um discurso da defesa da família e do conservadorismo, que vai ao encontro do apagamento de um Brasil que não se encontra no meio desses “grupos verde e amarelos”.
O advogado e filósofo Silvio Almeida define no artigo “Bolsonarismo, política e perversão”, publicado em 13 de outubro de 2022, na Folha de S. Paulo, que esses grupos seguem um ideal de reivindicação de “uma liberdade sem limites ou responsabilidade, o que no fim das contas nem é liberdade, mas uma ‘licença’ para fazer o que bem entenderem, sem limites, sem freios morais, sem ter que respeitar outras pessoas, sem se submeter aos constrangimentos da legalidade”. O professor Édison Gastaldo explica que camisa da seleção, nos últimos anos, “passa a ser a roupa do inimigo, passa a ser um símbolo da desunião nacional, passa a ser um símbolo da guerra que se instaurou no Brasil”.
Essa ressignificação tenta apagar uma parcela que sempre esteve trajada com a camisa. O artista visual Alison Rodrigues, 22 anos, ressalta que esse símbolo é representação também da cultura da “brasileiragem”, é parte da estética da periferia e está presente no cotidiano da comunidade negra. Alison ilustra no papel e destaca quem realmente está usando a camisa como símbolo de identidade: "quem está usando a camisa do Brasil? Quem está usando o nosso símbolo? É um moleque preto, é um moleque que está indo jogar bola, é a mina negra que está vestida de verde e amarelo lá no Rio, igual o pessoal da marca Piña, que tá fazendo esse movimento lá no Rio. É isso! As pessoas têm que entender quem esses símbolos representam”.
No meio desses movimentos de exclusão, vão surgindo "frestas", manifestações de cultura e sobrevivência. Da queda da Monarquia para a proclamação de uma República existe uma reação conservadora, que aconteceu devido ao fim da escravidão. “No momento em que até a própria monarquia reconhece que não dá mais para segurar a escravidão, há uma reação ultraconservadora dessa elite escravocrata que vira republicana. Então, a República no Brasil é um movimento conservador”, ressalta o professor Luiz Simas. E essa mesma elite forma uma primeira República, basicamente oligárquica e que fecha canais (formais ou institucionais) de participação na cidadania pelo menos formais — ou institucionais — aos pobres e descendentes de escravizados. Simas ainda alerta que naquela época, “as universidades estão fechadas, as escolas estão fechadas, o parlamento está fechado, a participação eleitoral está fechada, tem a proibição do voto do analfabeto. As camadas populares têm que construir os seus sentidos de vida, e exercício da cidadania, de formas não institucionais”.
A partir daí, as manifestações culturais e religiosas passam a ter ainda mais relevância, porque elas vão atuar no exercício da cidadania. A música popular, principalmente com o samba, e o futebol são exemplos desses espaços de resistência, estratégias de sociabilidade, redes de proteção social. Esses símbolos passam a ser latentes nessa disputa e, com isso, retoma-se a tentativa de um discurso consensual que nega o conflito, a partir da disciplina e do controle. Durante a Era Vargas (1937-45), a necessidade de construir uma identidade nacional traz a apropriação desses símbolos. A busca pela legitimidade faz com que uma geração de intelectuais negros do samba, como Paulo da Portela e Cartola, negociasse com o Estado. Em relação ao futebol, Édison Gastaldo conta que, durante o segundo governo (1951-54), Getúlio Vargas utilizou o esporte como grande aliviador de tensões no governo, ao abrir o Maracanã gratuitamente para a população para assistir a jogos amistosos. Além de usar o capital simbólico dos estádios, numa tentativa de aproximação das classes populares.
Neste contexto, encontra-se a disputa entre o Brasil e a Brasilidade. O primeiro enquanto Estado-nação e o segundo como um conjunto de bens simbólicos que são produzidos pelo povo brasileiro nas brechas do projeto de estado-nação. O Estado-nação, como define Simas, tem a sua formação num movimento excludente e que é fruto de quase 400 anos de escravidão. Já os bens simbólicos populares vão muito além do futebol e do samba, eles estão presentes nos ritos indígenas, nos pontos das religiões de matrizes africanas, nas celebrações regionais, na arte urbana, nos costumes familiares, nas culinárias típicas, no artesanato, na literatura, na música e em uma infinidade de categorias que atravessam o Brasil do Nordeste, Norte até o Sul.
É impossível nomear e listar os símbolos de brasilidade ou de identidade nacional, porque eles estão postos no cotidiano, em meio às disputas do viver e sobreviver. Como sugere o artista Alison, uma mesa de bar da Skol ou Schin com copo de cerveja ou maço de cigarro, uma dose de pinga e um cachorro caramelo, igualmente representam o Brasil. Assim como a banda Calypso, o forró, a umbanda, a mãe preta e até a figura da avó são símbolos do Brasil. Ao falar do cotidiano no vislumbre dos símbolos do Brasil, Simas destaca a diáspora nesse processo: “a diáspora quebra sentidos de pertencimento, laços identitários, redes coletivas de proteção social. Mas, se toda diáspora opera na dimensão da destruição desses sentidos, toda cultura de diáspora se fundamenta na reconstrução disso”.
Mesmo com a impossibilidade de mensurar todos os símbolos do Brasil, é importante dimensionar as disputas que atravessam as narrativas de construção e história do Brasil. É na negação desses conflitos que estão os apagamentos. Como ressalta Luiz Simas, para considerar o sentido da bandeira, construir um herói nacional ou montar um calendário cívico é preciso considerar os conflitos que existem. O historiador ainda pontua que a disputa hoje está aflorada devido ao avanço de algumas pautas: “a gente tem avanços de minorias, tem avanços ligados à diversidade, as conquistas sociais da Constituição de 1988; temos avanços grandes. Agora, os avanços fazem com que haja uma onda pesada, uma onda conservadora violenta, e isso obviamente se manifesta também no campo do simbólico com muita força. Mas é uma disputa que vai continuar”.
Foto: Cleverton Monteiro
Mitos, heroína e herói
Militares no desfile do sesquicentenário da Independência, enquanto brasileiros eram torturados pela Ditadura. Foto: Arquivo Nacional
Povo Tapajós no Mural Etnias, de Eduardo Kobra: diversidade cultural brasileira no Boulevard Olímpico do Rio de Janeiro. Foto: Arquivo web
Um projeto de exclusão
Quadro Bomba Patch 2, de Alison Rodrigues (2022), critica uso de símbolos históricos do Brasil por um determinado grupo. / Foto: Alison Rodrigues
Uma disputa que vai continuar
Ainda durante a Ditadura Civil-Militar, movimentos contraculturais que questionavam a situação da época resgataram símbolos de brasilidade na música e no teatro. O movimento da Moderna Música Popular Brasileira, perdendo posteriormente o “Moderna” e sendo apelidada de MPB, foi responsável por lançar críticas ao contexto repressivo e dar protagonismo a personagens rurais e urbanos, a partir de músicas de protesto sob uma “visão épico-dramática e nacional-popular da história e do Brasil”, como discute o autor José Miguel Wisnick no livro “Sem Receita: Ensaios e Canções”, publicado em 2004.
As diversas formas de representação cultural presentes no Brasil, mesmo que historicamente negadas no já dito processo de construção da identidade nacional, encontram no Grito dos Excluídos espaços para se afirmarem como parte da personalidade dos cidadãos de um país marcado pelas diferenças. “O Grito tenta reproduzir outras linguagens, para além da verbalizada, como a dança, o balanço, o candomblé, a capoeira, o canto, a poesia, o teatro, a música. O Grito tenta, nas suas manifestações, introduzir linguagens populares. Não se trata de passar o microfone ao outro, se trata de abrir espaços para que ele se manifeste na sua linguagem típica”, completa o padre Alfredo.
Grito dos excluídos
Mural Etnias, de Eduardo Kobra, retrata a diversidade cultural brasileira no Boulevard Olímpico do Rio de Janeiro através do povo Tapajós. / Foto: Jonathan Robert
Nos anos 1980, movimentos de rua, como as “Diretas-já”, também ganharam espaço em meio ao cenário de repressão e silenciamento. As manifestações, que aconteceram em 1984, reuniram milhares de pessoas nas ruas pelo fim do Regime Militar e pela volta das eleições diretas para presidente.