Ana Carolina Fonseca, Gilbert Cireli e Luis Campioto
Novembro 2022
Tradição extrativista
Só nos últimos 36 anos o Brasil perdeu 77,8 milhões de hectares de cobertura florestal, o que corresponde a 45,1% nas exportações do setor agrícola do país
Duzentos anos. Quase 90% da Mata Atlântica e 20% da Amazônia se foram neste período. Durante os quase três séculos em que o território brasileiro foi colônia de Portugal, a economia brasileira se construiu baseada principalmente em extrair ou produzir produtos primários e exportá-los. Foi assim com o pau-brasil, a cana de açúcar, o ouro e o café. Será que mudamos?
Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, de agosto de 2021 a julho de 2022, as exportações do setor representaram 45,1% das exportações totais brasileiras. Dentro do agronegócio, os cinco principais setores foram: complexo soja, carnes, produtos florestais, complexo sucroalcooleiro e café, que somaram 81,7% de todas as exportações do agronegócio do país neste período. Fábio Freitas Schilling Marquesan, Doutor em Administração com pós-doutorado em Inovação para o Agronegócio e professor da Universidade de Fortaleza (Unifor), define o país como um “fazendão do mundo”, devido a sua dependência histórica do setor primário.
É preciso apontar que existem diferenças essenciais entre a forma como era feita a exploração de recursos naturais durante o período colonial e a forma como isso é feito atualmente. Junior Ruiz Garcia, professor na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutor em Desenvolvimento Econômico, Espaço e Meio Ambiente, diz que a agricultura e a pecuária feitas atualmente têm um uso muito mais intensivo de capital e de tecnologia, além de serem setores mais integrados com o restante da economia. Ainda que os produtos sejam primários, atualmente eles “exigem um conjunto de bens e serviços que são completamente diferentes daquela agricultura do passado agroexportador”, explica Garcia.
Porém, ainda que a agropecuária atual conte com um uso mais amplo de tecnologia, isso não resultou em produtos mais beneficiados e com maior valor agregado. Um exemplo de como isso ocorre é no setor da soja, que têm como produto mais vendido o grão de soja, e não produtos derivados como o óleo de soja ou o biodiesel. Para o professor Junior Garcia, a estratégia adotada pelo governo e pelo setor privado de favorecer as exportações de produtos com baixo processamento é uma grande desvantagem.
Como explica o professor Fábio Marquesan, produtos com baixo nível de processamento valem pouco no mercado mundial porque requerem menor investimento em ciência e tecnologia. Marquesan dá o exemplo da Irlanda, país cuja economia se baseou, por anos, no plantio de batatas e que, agora, explora o mercado da eletrônica hightech. Nas palavras dos próprios irlandeses que foram contatados por Marquesan, “partimos das potato-chips para os micro-chips”. E isso é um salto qualitativo importante, afirma o professor.
Junior Garcia ainda aponta outro problema no setor agropecuário: a falta de incentivo para o setor de máquinas e equipamentos: “o fato de termos essa importante agricultura poderia ter sido usado como moeda de troca para o desenvolvimento dessas atividades. A mesma coisa por exemplo na biotecnologia, na produção de agroquímicos necessários para essa produção”. Na visão de Garcia, essa falta de investimento reduz o potencial de contribuição que o setor poderia ter, como a geração de empregos mais qualificados e um maior desenvolvimento tecnológico: "fala-se muito da desindustrialização, mas o setor agropecuário brasileiro é um grande demandante de produtos industriais, só que grande parte desses produtos industriais é importado”.
Foto: Ana Carolina Fonseca
Em nota de imprensa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento sobre a balança comercial do agronegócio entre agosto de 2021 e julho de 2022, consta que a balança teria tido um resultado positivo de US$125,07 bilhões. Ou seja, o setor do agronegócio teria exportado mais do que importado. Porém, como a própria nota realça, a metodologia não considera os valores de insumos muito usados no setor, como máquinas, fertilizantes e combustíveis. Nos doze meses analisados, o Brasil importou US$25,45 bilhões apenas de fertilizantes.
Plantação de eucalipto para extração de madeira substitui vegetação natural. / Foto: Carolina Carvalho
Uma vítima histórica
Mariana Finotti, coordenadora de projetos da Imaflora, ONG brasileira que une a produção com a conservação ambiental, expõe que os três principais fatores que levam à destruição das matas atualmente são a extração ilegal de madeira, a pecuária e a especulação imobiliária. E para possibilitar essas atividades, além do desmatamento ilegal, muitas vezes em áreas de reservas ambientais ou indígenas, são realizadas queimadas.
No dia 10 de agosto de 2019, sindicalistas, grileiros, produtores rurais e comerciantes da região de Altamira e Novo Progresso, cidades do Pará, incendiaram as margens da rodovia BR-163 como forma de “manifestação”, no que ficou conhecido como “Dia do Fogo”. A ação foi uma forma de demonstrar apoio ao presidente Jair Bolsonaro, que cancelou multas ambientais e estava “afrouxando” a fiscalização. Como reportado pelo Observatório do Clima, descobriu-se que até o ano de 2021, apenas R$88 milhões dos R$219 milhões destinados ao Ibama foram utilizados com a finalidade adequada. As queimadas duraram vários dias. Uma frente fria fez com que a fumaça dos incêndios criminosos chegasse ao estado de São Paulo, cobrindo o céu e transformando o dia 19 de agosto em noite na capital paulista.
Um estudo do Observatório de Clima e Saúde, projeto coordenado pelo Icict/Fiocruz, publicado no dia 30 de setembro daquele ano, apontou que o número de crianças internadas com problemas respiratórios praticamente dobrou nos municípios afetados pelas queimadas. “Foram cerca de 2,5 mil internações a mais, por mês, em maio e junho de 2019, em aproximadamente 100 municípios da Amazônia Legal, em especial nos estados do Pará, Rondônia, Maranhão e Mato Grosso”, de acordo com o Portal Fiocruz. Este mesmo estudo concluiu que o número de mortes de crianças hospitalizadas com doenças respiratórias aumentou em cinco dos nove estados da Amazônia Legal.
Incêndio consome parte da vegetação do município de Ouro Preto, MG, em 28 de agosto de 2022. / Foto: Ane Souz
Há, então, alguma solução que leve à produção sustentável? O professor Fábio Marquesan argumenta que é impossível produzir sem provocar algum tipo de impacto ao meio ambiente. “Nunca, nenhuma atividade humana, agrícola ou agropecuária, vai ser tão preservacionista quanto uma floresta nativa, por exemplo”, afirma. Segundo Marquesan, o que podemos fazer é tentar reduzir os efeitos da ação humana.
Levando essa realidade em consideração, muito se discute sobre as produções agrícolas por núcleos familiares, isto é, plantios e criações desenvolvidos em pequenas propriedades, sejam elas habitadas por famílias locais ou parte de APPs (Áreas de preservação permanente). Tal contexto de produção tem como finalidade um propósito diferente das muitas produções latifundiárias ao redor do país, propósito esse que abriga outros fatores além de uma pura exportação em massa. Geralmente, a realização dos produtos nesse contexto é direcionada ao consumo pessoal ou comércio local, dos quais surge um tipo de prática cíclica e sustentável, ao invés de um olhar mais expansionista.
É o caso da Mônica, comerciante e moradora da comunidade Santo Antônio dos Quilombolas, situada na zona rural do município de Piranga, que fica a cerca de 65 km de Mariana, MG. Todos os Sábados na parte da manhã, ela, junto aos irmãos e pai, leva suas produções para vender na feira da cidade de Mariana, tendo como carro-chefe o cultivo do café, que também divide espaço com outros alimentos: ovos, verduras e legumes, açúcar, rapadura e banana. “Temos técnicas de conservação e recuperação de recursos hídricos, além de uma alimentação sustentável com a horta e as frutas. O que nos possibilita a até ter uma saúde interna melhor, sabendo exatamente de onde vem os alimentos que estamos consumindo. É um ciclo ecológico”, afirma Mônica. Exemplos como esse, propostos por indivíduos ou organizações não governamentais, podem servir de modelo para outras produções de familiares ao redor do país, corroborando para que muitas cidades e municípios não se tornem dependentes exclusivamente de produtos industrializados e oriundos da exploração.
A Imaflora é uma ONG nacional fundada em 1995 que atua pela união da produção com a conservação, trazendo assim benefícios para a sociedade, o meio ambiente e a economia. Através de ações legais, inclusive com o sistema Origens Brasil de certificação de produtos de origem florestal para detectar possíveis irregularidades nessas produções, a ONG luta por essa junção de todos os lados da discussão para tentar trazer um ponto em comum para todos, pensando principalmente na preservação das matas brasileiras. Para Mariana Finotti, “a gente ainda vê algumas pessoas nessa linha de que para você ter o desenvolvimento, você tem que ter a destruição”. No entanto, segundo a coordenadora de projetos da organização, há regiões hoje responsáveis por “barrarem” o desmatamento, como as unidades de conservação, territórios indígenas e as reservas extrativistas.
De acordo com Finotti, essa preservação ocorre não só pela legislação que protege as áreas, mas pela forma como povos habitantes da floresta conseguem produzir de maneira sustentável através de atividades como a coleta de castanha, borracha, copaíba, além do artesanato indígena. “Elas podem vender os seus produtos de forma sustentável porque elas sabem que a coleta da castanha, do cumaru, depende da floresta em pé, então eles precisam manter a floresta em pé, porque para eles é muito importante, não só economicamente, mas também culturalmente”, explica.
A iniciativa Origens Brasil, anteriormente citada, é um selo e um sistema de garantia para ajudar os consumidores a identificarem produtos que se respeitam e valorizam povos indígenas e tradicionais e seus territórios. O Relatório Anual de 2021 da Imaflora mostra que, nos últimos dois anos, houve um aumento de 90% no número de empresas parceiras do projeto Origens. No site do Origens Brasil, é possível encontrar uma lista das empresas parceiras da iniciativa.
O programa Florestas de Valor busca aproximar pequenos produtores, como quilombolas e populações indígenas, de empresas, impulsionando atividades extrativistas de produtos como castanha e cacau, além de buscar técnicas e meios para que a atividade seja realizada de forma sustentável. Em 2021, o projeto ajudou a comercializar 10.5 toneladas de sementes de cumaru no norte do Pará, movimentando mais de R$740 mil para a Cooperativa Mista dos Povos e Comunidades Tradicionais da Calha Norte (Coopaflora). A cooperativa conta com indígenas, quilombolas e povos ribeirinhos.
Finotti, ainda, explica que a chave para minimizar os impactos ambientais é o planejamento: “Realmente, acho que não tem como você não ter um impacto, acho que sempre vai causar um impacto, mas a nossa premissa é, que se causar esse impacto, que seja o mínimo possível, que tenham técnicas que você consiga manejar aquela área de forma cada vez mais sustentável, fazendo com que o ciclo natural dela aconteça”.
Não existe produção sem impacto na natureza. Porém, existem técnicas e meios para mitigar e reduzir os prejuízos que o ser humano provoca. Para que estes sejam colocados em prática, a sociedade e o Estado precisam cobrar isso dos produtores, buscando apoiar iniciativas que se preocupem em produzir de forma responsável, repensando o extrativismo.
Existe um equilíbrio?
Apesar dos prejuízos à economia brasileira, como a dependência do setor primário e a falta de produtos com maior grau de beneficiamento, ela não é a principal vítima da exploração de recursos naturais. Essa seria o meio ambiente.
Dados do MapBiomas mostram que, entre 2020 e 2021, a cobertura de formação florestal no Brasil diminuiu em 982.259 hectares. Entre 2019 e 2020, esta mesma cobertura tinha reduzido em 230.583 hectares, aproximadamente 76,5% a menos. Aliás, das dez categorias mapeadas de vegetação, apenas três tiveram um aumento na área entre 2020 e 2021: mangue, afloramento rochoso e outras formações não florestais. Já a cobertura de agropecuária aumentou em 3.800.092 hectares entre 2020 e 2021, 475% a mais do que o aumento entre 2019 e 2020.
Estoque de troncos empilhados dimensiona a extração de eucalipto na região de Caeté, MG.. / Fotos: Carolina Carvalho
Plantação familiar em Caeté, MG, ilustra a possibilidade de produção sustentável. / Fotos: Carolina Carvalho
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