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Carolina Gabrich, Luiza Carneiro e Maria Eduarda Alves

Novembro 2022

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Resistência permanente

Povos originários brasileiros lutam contra a lentidão jurídica no processo de demarcação de terras e suas consequências

Há 18 anos, o mês de abril é marcado pela maior mobilização indígena no Brasil, o Movimento Terra Livre, que promove a luta pelos direitos dos povos originários. Em 2022, a agenda do Movimento girou em torno, principalmente, da crítica ao Marco Temporal, ação que pretende determinar a validação das terras indígenas considerando apenas aquelas que estavam ocupadas até a proclamação da Constituição de 1988. Do dia 04 ao dia 14 de abril, um acampamento reuniu representantes de cerca de 200 povos originários nas proximidades do Congresso Nacional, promovendo a luta contra o Projeto de Lei 490 e o Marco Temporal, através de protestos e rodas de conversas em Brasília. 

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Foto: Bruna Gonçalves Costa

Indígenas se manifestam contra o garimpo ilegal no Acampamento Terra Livre, 08 e 09 de abril, em Brasília. / Foto: Bruna Gonçalves Costa

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As relações jurídicas e políticas da demarcação de terras envolvem o processo número 1.017.365. Tramitado no dia 16 de janeiro de 2017, no Supremo Tribunal Federal (STF), o processo julga a tese do Marco Temporal Pepyaka, ou Pepy, como também é chamado.
 

O relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil 2020”, do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), divulgado em 2021, calcula que a invasão em terras indígenas aumentou em 137% nos dois primeiros anos de governo Bolsonaro, enquanto os assassinatos de indígenas cresceram 61% no período entre 2019 e 2020. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de 2021, também traz dados sobre a segurança dos povos originários, através da análise da violência letal contra os indígenas. Segundo o relatório, produzido em 2021, mais de dois mil indígenas foram assassinados entre 2009 e 2019, sendo que a taxa de mortalidade cresceu 21,6% entre esses anos. Os dados informam que essas taxas são maiores em municípios com terras indígenas. 

Apagamento Histórico e Cultural

A mestranda Bruna Gonçalves explica que a lógica européia de acumulação material europeia não fazia parte da racionalidade dos povos indígenas, resultando em uma série de conflitos. Com isso, nesses primeiros séculos de colonização no Brasil houve inúmeros extermínios contra os indígenas, que resistiam ao trabalho forçado imposto pelos portugueses, resultando em um verdadeiro genocídio. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), colhidos em 2017, as terras indígenas estão concentradas nas regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil. Além disso, os povos que possuem as maiores terras são, respectivamente: Yanomami (Roraima), Vale do Javari (Amazonas), Alto Rio Negro (Amazonas), Menkragnoti (Pará e Mato Grosso), Trombetas/Mapuera (Pará), Kayapó (Pará e Mato Grosso), Parque do Tumucumaque (Amapá e Pará), Parque do Xingu (Mato Grosso) e Waimiri-Atroari (Roraima e Amazonas).                    

A luta dos povos indígenas não é recente. Segundo o historiador Júlio Romaniuk, professor do Cedae pré-vestibulares, Colégio Batista Mineiro, Colégio Alpha e Colégio Laís Farnetti, em Belo Horizonte, MG, a situação dos povos indígenas no Brasil deve ser analisada a partir do entendimento do processo de independência. Em primeiro lugar, é preciso compreender a situação dos indígenas durante os primeiros anos de invasão. O professor explica que durante o processo de colonização, principalmente após a instalação das capitanias hereditárias, “o indígena foi notadamente excluído, alijado de todo o processo. Foi evidentemente retirado da sua condição de proprietário da terra e passou a ser, pela Igreja Católica, evangelizando com discurso de proteção”. Essa evangelização, aliada a retirada forçada do indígena com a terra, é o pontapé inicial para a desconstrução da identidade dos povos originários.

O professor destaca que, desde a chegada dos portugueses, é promovido um genocídio da população nativa. Esse cenário de vulnerabilidade e violência históricas traz a necessidade de criar leis que amparem os povos originários. No entanto, nessas leis, o indígena é inserido em um contexto completamente europeizado, em que é há a imposição de se inserir no modelo cultural da civilização europeia. Outro problema com relação às leis diz respeito ao acesso dos indígenas à informação. Segundo o professor, “os índios não participavam dos espaços públicos e essas publicações eram feitas em um universo citadino, urbano, onde o índio era excluído. Eram, evidentemente, escritas em português e o indígena sequer dominava e conhecia esse tipo de escrita”. Mais uma questão problemática em relação à proteção indígena por parte do governo é o Serviço de Proteção ao Índio, criado em 1910 e dissolvido durante a Ditadura Civil-Militar, em 1967. O órgão promoveu a generalização dos indígenas, desconsiderando a variação étnica e cultural dos povos originários brasileiros. Com a dissolução do SPI, o Ministério da Justiça e Segurança Pública criou a Funai (Fundação Nacional do Índio e Órgão Indigenista), pela lei 5.371, de 05 de dezembro de 1967.

Durante o Acampamento Terra Livre, povos indígenas rumam ao Palácio do Planalto com bandeira manchada em representação do sangue derramado nas lutas por territórios. / Foto: Bruna Gonçalves Costa

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Tendo consciência do processo de destruição das terras e povos indígenas, que vem sendo travado desde 1500, Bruna Gonçalves questiona: "Para quem foi essa independência? E a custo de que a gente diz hoje que temos uma independência? Quanto sangue foi derramado, e quais foram os desdobramentos desse processo violento, que também se traduz em um processo de apagamento?”. A fala de Bruna traduz a parcialidade do processo de independência brasileiro, visto que, na época, os povos indígenas nem mesmo eram considerados cidadãos. Os direitos básicos, como votar, foram conquistados pelos indígenas há pouco tempo, em 1988, então esse processo de invisibilização segue acontecendo.

Luta e Resistência

Como quem luta pelos direitos indígenas são eles próprios, Pepyaka Põocatëyë reforça a importância dos indígenas ocuparem cargos políticos, já que o restante da sociedade não participa ativamente da luta dos povos originários. Ele ressalta, ainda, a solidão dos povos indígenas na luta pelos seus direitos: “essa questão de algumas coisas que acontecem no Brasil acabam não afetando a gente nem agregando pra nós, a gente sempre esteve sozinho nessa caminhada de lutar pelos nossos direitos, tanto contra o sistema e também, atualmente, lutando pra ter os nossos direitos garantidos no Congresso”. A presença dos indígenas na política tem um nome: “aldear a política”, expressão que significa a entrada das pautas da aldeia para as discussões legislativas: questões ambientais, de reflorestamento, recuperação de biomas e demarcação de territórios. 

As próprias votações no STF a respeito dos territórios do povo Xokleng de Santa Catarina são recorrentemente adiadas, o que só serve para atender aos interesses da bancada ruralista, uma vez que os indígenas continuam com a demarcação de suas terras paralisadas. Ya´wara denuncia a falta de segurança dentro das terras indígenas e o descaso do Estado em relação aos ataques aos povos originários: “Uma das nossas indígenas, no dia 11 de setembro de 2022, foi violentada, a família dela estava sendo ameaçada, e ela só tinha 13 anos. A gente fala por ela e por tantas outras Arianes que tiveram seu corpo violentado, massacrado, assassinado. Nós, mulheres indígenas continuamos todos os dias dizendo não à violência de gênero, enquanto nada é feito pelo Estado”. 

É em meio a esse cenário de descaso constante dos órgãos públicos frente aos ataques sofridos pelos indígenas que a estudante de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA), do povo Tucano, Tais Ye´pá, 20, opina sobre a celebração nacional da independência: “o dia 07 de setembro não significa nada pra gente. É só mais um dia em que a gente passou por toda essa colonização, que teve tudo isso a que a gente infelizmente foi submetido, então pra gente não teve nada de independência”.

Seguindo a mesma linha de pensamento, o comunicador indígena Pepyaka Põocatëyë explica que a alienação dos indígenas do processo de independência se deve a opressão que teve na época da invasão portuguesa, uma vez que os povos originários só tiveram seus direitos reconhecidos na Constituição de 1988. No entanto, ele atenta para a situação de muitos jovens e adolescentes indígenas que, devido ao processo superficial de escolarização, acreditam na independência do Brasil: “Hoje em dia, por causa dessa questão da escolarização e das informações que tem nos livros didáticos, os jovens, adolescentes e crianças do nosso povo acabam acreditando na independência do Brasil”. 

Tais Ye´pá, estudante de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA), povo Tucano, Pará

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A mestranda Bruna Gonçalves ressalta, inclusive, que um país em que as escolas não ensinam sobre a existência de 305 povos indígenas e 274 idiomas falados, não pode ter conquistado a independência: “um país que é independente, que nega suas próprias raízes, talvez devesse repensar qual independência e pra quem essa independência foi direcionada”. O caminho de uma nação que ainda não alcançou a independência é sempre a luta, e é isso que os indígenas vêm fazendo desde a colonização. 

Pepyaka Põocatëyë, comunicador e ativista ambiental, do povo Krikatí, Maranhão

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Durante a pandemia do Covid-19, as ações paraestatais dos povos indígenas tornaram-se não só atos de resistência, como também de sobrevivência, pois os indígenas se viram sem segurança e condições básicas de higiene em seus territórios, vendo-se obrigados a aumentar as lutas pela demarcação, a fazer com que o saneamento básico chegasse aos territórios vulneráveis, a criar barreiras sanitárias e a difundir estratégias de auto demarcação. Outro ponto que pesa na importância dos direitos indígenas é a ancestralidade da luta. A militante Tais Ye´pá explica que a luta vem de anos atrás, e que ela não é só pelo direito à terra, mas é também pelo acesso à educação, ao saneamento básico, à saúde, enfim, pela qualidade de vida em geral para a população indígena. A estudante ressalta, ainda, a importância do conhecimento para os indígenas na luta dos povos originários: “quando eu entrei no Movimento Indígena no Amazonas, o nosso principal objetivo era que os nosso s jovens fossem para a Universidade estudar e depois voltar pra gente ajudar as nossas comunidades”.

 

Outra forma de resistência e luta dos povos indígenas é por meio da ocupação de cargos públicos na política, como forma de contrabalancear o poder que pende para o agronegócio, paralisando os processos de demarcação e deixando impunes os crimes contra a vida, a moradia e a segurança dos povos originários. Inclusive, nas eleições de 2022, nove indígenas foram eleitos, batendo dois recordes: a primeira vez que duas pessoas ligadas ao movimento indígena ocupam, simultaneamente, cadeiras na Câmara dos Deputados, sendo elas as indígenas Sônia Guajajara (PSOL) e Célia Xakriabá (PSOL), a primeira pelo estado de São Paulo e a segunda pelo estado de Minas Gerais. O  recorde é o aumento de 900% dos indígenas autodeclarados ocupando cargos legislativos.  

Tais Yasmine Melgueiro da Silva, do povo Tukano, protesta durante o Grito dos Excluídos, no 07 de setembro, em Belém - PA.

/ Foto: Jaime Veras

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Tais Ye´pá, estudante de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA), povo Tucano, Pará

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Mulheres indígenas dão as mãos em forma de resistência no Acampamento Terra Livre. / Foto: Bruna Gonçalves Costa

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A esperança é que com mais indígenas ocupando cargos de relevância pública, menos casos de crimes contra meninas e mulheres indígenas fiquem impunes. Mesmo com a recorrência dos crimes contra mulheres e crianças indígenas, o assunto continua sendo invisibilizado na sociedade, o que o torna até mesmo difícil de ser encontrado nos dados, uma vez que existem casos de violência sexual que nem mesmo são registrados. 

 

Os indígenas vêm lutando para defender suas terras desde a invasão, e seguem se organizando na defesa dos seus direitos. A militância indígena reforça a importância da participação do restante da sociedade na luta dos povos originários, participando das manifestações, cobrando as pessoas que estão no poder e não apenas limitando a militância às redes sociais. O governo deve não só demarcar, como também respeitar e preservar as áreas indígenas, que são um direito natural deles, anterior à formação do Estado, apesar de sequer existir reconhecimento oficial. Nenhum dos três poderes têm o direito de impedir as demarcações, podendo ferir a Constituição brasileira. A independência do Brasil só estará completa quando a reparação histórica dos territórios indígenas for conquistada.

A luta dos povos indígenas tem um protagonismo importante, que é o das mulheres. Ya´Wara Bone Guajajara relaciona a força das mulheres na luta com a ancestralidade do laço indígena com a terra, o que justifica sua presença na disputa pela demarcação do território: “a mulher indígena é a mãe da terra. Quando a gente fala de mãe terra é a mãe de todas as lutas, isso significa que as mulheres jovens indígenas fomos e somos responsáveis pelo cuidado com a nossa mãe terra. Nossas ancestrais foram as primeiras mulheres a pisarem aqui e cuidarem de tudo aqui”. 

A estudante de Direito Tais Ye´pá celebra o fato de existirem cada vez mais mulheres liderando a militância indígena, e atenta para a necessidade delas ocuparem os espaços de poder: “É isso que a gente tá tentando fazer, ocupar os espaços. Mostrar que a gente tem nossa força, nossa luta, nossos afazeres dentro de casa, mas a gente também tem muita coisa a acrescentar”.

Tais Ye´pá, estudante de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA), povo Tucano, Pará

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Ya'wara Bone Guajajara, povo Guajajara, Maranhão

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A posse da terra por parte dos indígenas está diretamente ligada à preservação da biodiversidade, já que o cuidado com a terra é cultural, ligado à ancestralidade que carregam. Ya'wara Bone Guajajara, 17, do povo Guajajara, do Maranhão, defende a demarcação de terras, para zelar pela biodiversidade: “nós indígenas estamos aqui desde o início protegendo e cuidando, nossos ancestrais vieram antes cuidando, zelando e nós damos continuidade para poder ter uma biodiversidade melhor pra todo mundo”. 

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A manutenção da segurança dos indígenas não se restringe à garantia do direito à vida e a propriedade, ela também é essencial para manter a supervisão e o cuidado com os ecossistemas brasileiros. Segundo a mestranda em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Bruna Gonçalves, 70% das ações em favor da preservação das florestas são praticadas pelos povos indígenas. Essas ações foram o ponto de partida para a atual pesquisa de Bruna: “eu trabalho com movimentos sócio-territoriais indígenas de luta pelas florestas no estado do Pará, onde a gente tem cerca de 80% das ações coletivas praticadas por esses sujeitos. Levando-se em consideração todo o processo histórico nesses conflitos, na luta por terra e recursos naturais no estado, deve-se considerar os processos de resistência encabeçados pelas diferentes etnias”.

 

Por outro lado, há um impedimento para o sucesso das estratégias de resistência e preservação dos povos indígenas: o agronegócio. A atividade econômica praticada de forma ilegal é a principal responsável pela perda de biodiversidade no país e invasão de terras indígenas. O dossiê produzido por Mateus de Almeida Prado Sampaio, Eduardo Paulon Girardi e Rosa Ester Rossini, intitulado ‘“Expansão do Agronegócio no Brasil”, publicado na Revista Franco-Brasileira de Geografia, em 2020, define que o Cerrado e a Amazônia são os biomas que mais sofrem com a expansão agropecuária e principalmente pela extração ilegal de madeira ligada a grilagem de terras. Essa ofensiva agrícola afeta diretamente os povos originários, pois o Cerrado tem em torno de 100 mil habitantes indígenas, segundo o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), e a Amazônia concentra a maior parte dos povos indígenas do país, contando com cerca de 440 mil indígenas. De 2004 a 2014, houve queda progressiva do desmatamento. Depois disso, a partir da crise política no segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, em 2015, seguindo pelos governos posteriores, há novamente uma tendência de crescimento da devastação florestal. 

Como explicou a geógrafa Bruna, a independência para os povos indígenas ainda não ocorreu, de fato. Apesar da Constituição de 1988 garantir o direito originário aos povos indígenas, que legitimam o direito à terra e à ocupação tradicional, o que ocorre na realidade é uma situação bem diferente. Ya’wara Bone Guajajara questiona essa independência ilusória e a falsa ideia de acesso aos direitos, posto que seus territórios são sempre tomados e destruídos.

Ya'wara Bone Guajajara, povo Guajajara, Maranhão

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