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A Terra não é pra isso
A pandemia é uma consequência da devastação ambiental e do extrativismo típicos do capitalismo
Equipe: Alexia Nunes Carrara,
Maria Natália Selvatti e Mariana Morisson
No início havia só água e terra. Os primeiros seres que aqui existiam eram as árvores. A vida assumia perfeita harmonia e beleza; e então, ao se deparar com tanta riqueza e grandiosidade, o Velho (também chamado de Deus por alguns) deu o sopro da vida. As Cinco Irmãs, grandes árvores com cores e formatos diferentes entre si, deram ao Velho seus galhos para que com isso, ele esculpisse a primeira humanidade. E assim foi feito [...]
Glicéria de Jesus
Líder indígena dos Tupinambá
Foto de: Marcelo Tingui (@tingui.filmes)
Todos nós somos e compomos o que chamamos de natureza, essa é uma ideia comum entre a grande diversidade de etnias indígenas e povos originários no mundo. A harmonia na relação do homem com o meio ambiente preservaria a vida na Terra, mas há séculos a humanidade caminha por um rumo oposto. Visando o progresso e o bem-estar econômico, os seres humanos se distanciaram da natureza, e, segundo Ailton Krenak, ambientalista e líder indígena, passaram a vê-la como recurso.
A pandemia da covid-19 é resultado da extração humana e predatória da natureza, como acreditam várias lideranças indígenas, ambientalistas, sociólogos e especialistas na área de saúde ambiental. A ausência de uma política de proteção ambiental no Brasil abre caminho para que novas pandemias surjam e permite a exploração desenfreada dos recursos naturais, a extinção de ecossistemas e catástrofes previstas, podendo vitimar ainda mais a população em um futuro próximo.
De acordo com Gabriela Marques, professora e doutora do Departamento de Saúde Ambiental da Universidade de São Paulo (USP), a relação que estabelecemos com a natureza e com o meio ambiente foi moldada em uma base exploratória. Fenômeno que se constitui (de forma mais incisiva) desde a primeira revolução industrial, junto à perspectiva de progresso, gerando um distanciamento entre o ser humano e a natureza. Outra consequência da dissociação é que o ser humano passa a considerar infinitos os recursos naturais e permanece apostando na capacidade regenerativa da Terra, porém esse processo de sobrecarga ameaça também nossa sobrevivência.
José Sousa de Lima, pesquisador e docente do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Federal do Paraná (UFPR), afirma que as perspectivas e promessas dos países centrais do sistema capitalista incentivam a ideia de que devemos nos espelhar no progresso dos países “de primeiro mundo”. Porém, esses modelos não se encaixam na realidade dos países periféricos ao sistema capitalista - logo, a noção de que “se nós fizermos o que os caras fizeram, nós chegaremos lá!” é apenas ingenuidade.
É na crença de um crescimento econômico desenvolvimentista que o presidente Jair Bolsonaro vem promovendo políticas públicas que valorizam o crescimento do agronegócio como o motor da economia brasileira. Seu governo desmonta órgãos de proteção ambiental e abrem espaço para o desmatamento ilegal e invasão de territórios índigenas. Durante a campanha que o elegeu, o presidente já tinha como meta a fusão dos ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura, medida que foi amplamente criticada e acabou não se concretizando.
Depois de um início cheio de controvérsias sobre os ministérios, Bolsonaro continuou afrouxando políticas ambientais e, durante a pandemia, aproveitou para “passar a boiada”, como admitiu Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, em reunião interministerial de abril de 2020. Órgãos de proteção ambiental como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) têm sido alvo de ataques e descredibilização, com risco de fusão entre eles, o que acarretaria na perda de verba para realização das atividades, dificultando ainda mais a fiscalização de crimes ambientais, segundo a Coalizão Pró-Unidades de Conservação e a Comissão Mundial de Áreas Protegidas da IUCN, que elaborou uma nota de posicionamento reunindo a opinião de instituições civis contra a fusão.
Segundo dados do Greenpeace, a passagem da fiscalização das ações ilegais de desmatamento na Amazônia, antes eram realizadas pelo Ibama, para as Forças Armadas (através do decreto de Garantia da Lei e da Ordem - GLO), ocorrida durante a pandemia, é um exemplo da falta de compromisso de Bolsonaro com a preservação da Amazônia. O decreto foi aprovado mesmo tendo um custo de manutenção maior. Durante a inauguração da ação, que mobilizou 97 agentes, dois helicópteros e 10 viaturas, não foram aplicadas multas nem realizadas apreensões ou prisões.
Nesse período também ocorreu a concessão de parques nacionais à iniciativa privada, foram liberadas exportações de madeira sem autorização e possibilitou-se a ocupação e venda de terras em territórios indígenas não homologados, liberando que 237 terras indígenas fossem invadidas. Outro fato a ser destacado é que, a partir do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento, o Observatório do Clima analisou que apenas 1% da verba destinada ao planejamento de planos de preservação ambiental foi utilizada pelo Ministério do Meio Ambiente em 2020.
É nesse sentido que se faz necessário resgatar a prática de cuidado com a Terra, exercida pelos povos originários, como afirma José Souza de Lima, pesquisador da UFPR: “Aí a importância de estudar esses grupos originários, porque eles são sustentáveis. Há 15 mil anos eles vivem do jeito deles, têm uma relação de harmonia com a Pachamama (mãe natureza). Por exemplo, eles vão pescar e fazem orações para a ancestralidade para pedir autorização para realizar a pesca, e não pescam em uma escala industrial, a que mata tudo para ganhar dinheiro”.
Em relatório organizado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e pelo Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (FILAC), concluiu-se que os povos indígenas são guardiões das florestas. Os territórios indígenas ocupam 45% das florestas da Bacia Amazônica e entre 2000 e 2016 “a floresta intacta diminuiu apenas 4,9% nas áreas indígenas da região, nas áreas não indígenas diminuiu 11,2%.”.
A líder índigena dos Tupinambá de Olivença (BA), Glicéria de Jesus, recorda que no ano de 2015 houve uma seca na região sul da Bahia que durou mais de seis meses. Porém, já por volta de 2000 a aldeia recebeu avisos dos encantados (seres que viveram na terra e desapareceram - não morreram - deste plano de existência, tornando-se invisíveis ou se transformaram em parte da natureza ou seres mitológicos), alertando que se os fazendeiros continuassem desmatando as nascentes, todos iriam ficar sem água. Foi quando os povos indígenas começaram a retomar a posse das áreas de terra e afastar os caçadores e madeireiros da região. As nascentes, antes reduzidas de 500 para nove, foram recuperadas, alcançando o número total de 200. Então, quando a seca assolava o Nordeste em 2015, os Tupinambá estavam tranquilos.
Glicéria de Jesus acredita que estamos pagando o preço da ambição humana. “Em 2016, os encantados chegaram aqui na aldeia e falaram que vinha uma doença que nem os homens de camisa branca (médicos) saberiam como cuidar das pessoas, que haveria muitas mortes. E falou que a cura estaria na natureza. [...] Mas sempre a cura esteve na natureza, eu não consigo ter outra concepção de cura”.
A questão do cuidado com a natureza também está intrinsecamente ligada à cultura e religião, diz. “Algumas religiões, como a nossa, precisam da natureza para praticar e manter sua fé, sua cultura. Mas existem determinadas fés que só precisam do seu quadradinho e um livro. Eu acho que o melhor livro é a natureza. Mas para os outros isso não é importante, não é sagrado, não é relevante, é lucro”. Dessa forma, quando exploramos o meio ambiente, também prejudicamos e matamos as culturas indígenas.
As consequências da exploração da natureza e dos povos originários, que ocorrem há séculos, recentemente resultaram na extinção do povo índigena Juma, com a morte de seu último representante, Amoim Aruká, foi mais uma vítima da covid-19. Ele morreu dia 17 de fevereiro deste ano e, segundo o jornal Brasil de Fato, o índigena havia recebido o tratamento precoce com os medicamentos Azitromicina e Ivermectina. Outra vítima foi o Pajé do povo Paiter Suruí, em Rondônia, também vítima da covid-19, que não pode ser substituído. Agora na aldeia não há mais pajelança.
É urgente que o ser humano perceba seu lugar dentro da natureza como filhos da terra, mudando o estilo de vida e buscando diminuir o impacto das atitudes na forma de consumir e habitar o mundo. Os humanos são parte da natureza, mas caso o cenário não mude, a humanidade caminhará rente ao mito de Narciso, homem extremamente belo que ficou encantado com o próprio reflexo na água - observou tanto que desejou possuir tudo aquilo que refletia, não sabendo que se tratava dele mesmo. Assim, se afogou tentando obter tudo aquilo que sempre lhe pertenceu.
Vídeos de: Reprodução / Folha de São Paulo e Mídia Ninja
Com música de José Edmilson de Souza-Lima e Enéas de Souza-Lima, Patchamama, retratamos algumas situações recorrentes de exploração e as consequências que enfrentamos.
[...] Depois disso, todas as vezes em que o Velho pisava em terra, era recebido pelos humanos com grande alegria; eles choravam, ofereciam abrigo e atenção, queriam ouvi-lo e até varriam o chão para que o Velho passasse. Porém, com o tempo as pessoas descobriram novas formas de viver e sentir, e assim se esqueceram dele. Nesse dia, nasceu no Velho um sentimento antes desconhecido, a raiva; e com ela, ele decidiu dar um fim a sua criação.[...]
Glicéria de Jesus
Líder indígena dos Tupinambá
Foto de: Marcelo Tingui (@tingui.filmes)
Para José Souza de Lima, a civilização moderna se ancora em duas coisas: a produção e o consumo, e isso é extremamente abusivo para o planeta, pois não se tem a menor preocupação com o futuro. Gabriela Marques reforça essa visão: "A gente modifica de forma bastante perigosa o funcionamento do sistema terrestre, continua apostando nessa capacidade regenerativa da natureza, que a gente pode continuar explorando os recursos naturais sem se preocupar com as consequências disso no médio e longo prazo”. Segundo a pesquisadora, não é coincidência que o século XXI seja considerado o século das crises, estas são sistêmicas com origens antigas, consequência de anos de destruição do meio ambiente que resultaram em impactos potencializados.
Em relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) no início de 2020, pesquisadores afirmam que as pandemias são uma consequência - que poderia, inclusive, ter sido prevista - da exploração do meio ambiente e animais. Ainda de acordo com o documento, novas doenças surgem graças a mudanças na natureza ou no comportamento de microrganismos parasitas causadores de doenças, ou através do contato com organismos que não tiveram contato com os humanos antes e passaram a ter. Essa não é a primeira vez que uma pandemia causada por zoonose ocorre. Cerca de 60% das infecções humanas têm origem animal e de todas as doenças que surgiram nas últimas décadas, 75% foram transmitidas de animais não humanos para humanos.
Um outro ponto a ser levantado sobre essas estatísticas é que a infecção direta por zoonoses é muito rara em países economicamente desenvolvidos. O relatório aponta que nesses lugares as doenças geralmente são causadas por picadas de insetos ou através da ingestão de animais infectados. Também é importante apontar que a maioria dos animais envolvidos em casos de zoonoses são domesticados, sejam eles gado, de estimação, ou peri-domésticos, que se desenvolvem em ambientes gerados por humanos, como ratos. O surgimento de uma zoonose vinda de um animal selvagem é difícil de acontecer.
Muitos destes vírus surgem em ambientes industriais não seguros e sistemas agrícolas intensivos, resultando em variações que conseguem sobreviver no ecossistema humano. Um exemplo disso está na gripe aviária, que atingia apenas aves selvagens, até que o vírus evoluiu e passou a circular em aves criadas para abate, contaminando, assim, seres humanos. Nas pandemias onde o contágio de humanos acontece de forma direta, como no caso da covid-19, ocorre uma evolução mais complexa entre vírus em diferentes animais, geralmente porcos e aves, que interagem com outras gripes humanas e resultam em doenças altamente contagiosas.
Nas últimas décadas a humanidade teve contato com outras doenças igualmente nocivas e causadas por zoonoses. As mais preocupantes foram a gripe aviária, gripes suína (H1N1), síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS) e a síndrome respiratória aguda grave (SARS), sendo quase todas transmitidas por animais domesticados. Apenas a SARS ainda não teve o envolvimento de animais peri-domésticos, mas há suspeita sobre isso.
Além disso, o relatório aponta que algumas epidemias são negligenciadas pela população mundial, elas estão presentes, principalmente, em países em desenvolvimento e por isso recebem muito menos atenção que as doenças que chegam aos países desenvolvidos.
Algumas das zoonoses que, atualmente, afetam as pessoas são: o antraz ou carbúnculo, causado por picadas ou ferroadas de animais e insetos infectados, ou pelo contato com superfícies contaminadas, é recorrente no centro da África e no sul da Ásia; a brucelose ou febre mediterrânea, transmitida por produtos lácteos não pasteurizados ou pelo contato direto com animais doentes; a leptospirose, provocada por contato com urina de animais infectados, de diferentes espécies; a tripanossomíase, ou doença do sono, incidente apenas na África central e ocidental, e transmitida para humanos por moscas; e a febre de Lassa, que teve epidemias na Serra Leoa, Nigéria, Libéria, e na Guiné, causada por contato com alimentos contaminados com urina, saliva ou fezes de ratos. De todas essas doenças mencionadas, apenas a febre de Lassa é causada exclusivamente por animais selvagens.
A covid-19 surgiu quando um vírus que atingia morcegos conseguiu sobreviver no ecossistema humano, se instalando no organismo das pessoas através do consumo desses animais. Para o pesquisador José Souza de Lima, a diferença entre essa e as epidemias mencionadas acima é que esta se espalhou rapidamente para os países economicamente desenvolvidos. “Saiu da China e foi para a Itália, para a França, e aí pronto. Quando toca nesses grupos, que é a sala de estar dos bacanas, você vê que a preocupação é maior. Porque se a pandemia tivesse ficado só nesse mundo à margem do sistema mundial, haveria seguramente uma banalidade do mal, não haveria essa preocupação toda, esse investimento todo.”
Segundo o pesquisador, algumas epidemias são negligenciadas porque acontecem em regiões economicamente, e por isso, não recebem investimentos necessários para erradicá-las, como é o caso do Ebola, que até hoje mata pessoas na Guiné e na Serra Leoa, enquanto foi erradicado dos Estados Unidos e Europa em 2016.
Por vivermos em um mundo globalizado e com intenso fluxo migratório, as doenças transitam entre os países, facilitando o surgimento de pandemias. No momento atual esse fluxo diminuiu um pouco, mas José Souza de Lima explica que há ainda uma pressão muito grande para que isso se encerre, para que o capital também volte a circular. "A dimensão econômica [da pandemia] é hegemônica e dá o tom, gostemos ou não. Ela passa por cima da questão ambiental, da questão social, cultural e médica”. Ocorre um esforço maior para erradicar doenças em países economicamente desenvolvidos, pois é nesses lugares que há maior movimentação de capital.
Foto de: Reprodução / Greenpeace
É também graças ao capitalismo que a exploração do planeta ocorre de forma desenfreada, pois os “recursos naturais” são transformados em mercadorias. As consequências disso atingem de formas mais duras as populações economicamente vulneráveis, que vivem mais próximas de locais onde há poluição, fábricas, abatedouros, ou plantações que utilizam muito agrotóxico, por exemplo. José Lima exemplifica com o caso da Bayer, produtora alemã de agroquímicos, muitos dos quais proibidos na Alemanha, União Europeia e Estados Unidos, mas liberados no Brasil. O veneno produzido pela Bayer não é permitido em seu país de origem, mas o brasileiro o consome em alimentos, enquanto os rios e solo são poluídos.
Liliane Alcântara, professora universitária e Pós-Doutora em Ecossocioeconomia, afirma que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em 2018 demonstrou que 19% da população do planeta concentram 62% de toda a renda bruta, e emitem 57% do dióxido de carbono do total mundial - ou seja, os países mais ricos são os que mais poluem. “Considerando ainda esse índice, o Banco Mundial afirma que 1,3 bilhões de pessoas vivem com menos de 1,90 dólares por dia”, pontua a pesquisadora. Com apenas 1,90 dólares por dia é impossível, no sistema capitalista em que estamos inseridos, se alimentar bem e ter medidas de higiene saudáveis, o que resulta em novas doenças.
De acordo com Gabriela Marques, os especialistas alertam que este pode ser o início de um ciclo, com outras pandemias surgindo nas próximas décadas. “Se a gente continuar explorando de forma predatória os recursos naturais e sem se preocupar com as consequências dessa mudança no sistema terrestre como um todo, ainda nos enxergando como fora da natureza e insistindo nisso, potencialmente a gente vai ter outras crises como a da pandemia, e que vão ser amplificadas por esse contexto de crise que a gente já vive”. Ou seja, essa pandemia e as próximas que podem surgir estão conectadas a essa forma de exploração dos recursos naturais.
A pesquisadora ainda afirma que a humanidade está ultrapassando alguns limites considerados seguros para garantir o funcionamento do sistema terrestre e a própria sobrevivência. No sistema em que vivemos, as propostas de desenvolvimento ignoram o capital natural, social, cultural e ambiental, e não se tem controle sobre o que as empresas poluem, os resíduos dessas atividades e danos causados à saúde física e mental do homem. “Nós estamos vendo pessoas doentes devido à poluição ambiental, devido a não ter mais espaço no meio ambiente, principalmente agora com a covid-19”. Para ela, a pandemia poderia ser um momento de repensar atitudes, mas “o que a gente vê são empresas subindo o preço dos produtos, ou tentando superar as perdas financeiras a qualquer custo.”
Para José de Souza Lima, a forma como vivemos não destruirá a natureza, porque ela sempre se recuperará. Nossas ações estão acabando com o próprio ser humano, e extinguindo animais no caminho. “A pandemia veio em função disso, da própria desigualdade, da inserção do homem no meio ambiente, da depredação, dos cortes de árvores que estamos vivenciando”. Por conta disso, os animais perdem seu habitat natural e precisam se aproximar do homem, trazendo consigo algumas doenças típicas dos animais, que não conseguimos controlar. “O que a gente precisa é se reconhecer como parte da natureza, entender que é a hora de retomarmos certos princípios”, afirma. Caso contrário, caminharemos rumo à nossa própria extinção.
[…] Mesmo com a destruição da humanidade, ela continuaria a existir nas próximas gerações, pois o sopro da vida foi eterno e nem mesmo o fogo pode levar o espírito. Daquela primeira geração, Pajé Irá foi o único homem escolhido pelo Velho para viver, pois era o último que ainda honrava, tanto a ele quanto à mãe terra. Contudo, ao ver todo aquele extermínio acontecer com os seus semelhantes, Irá pediu para dispor do mesmo destino que seus companheiros […]
Glicéria de Jesus
Líder indígena dos Tupinambá
Foto de: Marcelo Tingui (@tingui.filmes)
A relação entre homem e a natureza se altera de acordo com o território que se habita e com o estilo de vida do homem. A agricultura, por exemplo, se inicia quando o homem, antes nômade, se estabelece em um território. Fernando Carneiro, Doutor em história social em seu livro Comida e sociedade escreveu que a expansão da humanidade está associada à aptidão de produzir alimentos no menor território possível. A partir da revolução industrial, com o êxodo rural causado pela industrialização, muda o estilo de vida da população urbana e rural. O modo de vida capitalista de acumulação instituído desde então desterritorializa amplas camadas sociais que se baseavam na agricultura e acabam indo para as margens da sociedade urbanizada.
Tais mudanças ocorridas nas sociedades levam parte da responsabilidade pelas crises atuais e passadas. A pandemia da covid-19 não é a primeira que o planeta enfrenta, mas é a primeira que podemos usar como forma para repensar as consequências do que temos feito até agora.
[…] O Velho então decidiu atender ao seu pedido de uma forma diferente. Ele devolveu o Pajé à terra e, novamente com os galhos das Cinco Irmãs, ele esculpiu a mulher. Com isso o Velho deu a Pajé Irá a responsabilidade de repovoar o local e cuidar das Cinco Irmãs, assim como todos seus descendentes
Glicéria de Jesus
Líder indígena dos Tupinambá
Foto de: Glicéria de Jesus
Apesar das dificuldades existem grupos que se mobilizam para construir um futuro diferente, convivendo com a natureza de forma menos exploratória. Algumas das ações que têm ganhado força nos últimos anos são a agroecologia, o veganismo e o Bem Viver.
Éder, quilombola e participante do grupo de trabalho Povos e Comunidades Tradicionais, Etnicidades e Ancestralidade da Associação Brasileira de Agroecologia; Walela, índigena do povo Parité Suruí de Rondônia e; Marcelo tinguí, do povo Tingui Botó, falam sobre a agroecologia e o cuidado com a integração entre o homem e a natureza, já vivenciados entre os povos tradicionais e que vêm sendo apropriados por grupos sociais.
Carlos Coelho, filósofo e docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica sobre o movimento antiespecista, que luta pela igualdade e liberdade dos seres vivos sem distinção de espécie, e sobre a importância de reconhecermos o inimigo comum para formar alianças interseccionais em busca de mudanças na sociedade. O filósofo aborda, também, o conceito de humanidade criado pelo homem ocidental, a partir da sua individualidade, para legitimar violências contra tudo aquilo que não se enquadra dentro dos padrões definidos, como os animais e a natureza.
Liliane Schlemer, Pós-Doutora em Ecossocioeconomia pelo Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), explana sobre o Bem viver, uma alternativa ao desenvolvimento, uma filosofia de vida presente nos pequenos atos e que pode levar a grandes mudanças. A Pós-Doutora também comenta sobre a importância de admitir a natureza como um ser de direito, como já ocorreu no Equador e na Bolívia, em 2008 e 2009, respectivamente.
Apesar dos esforços por parte da população e da emergência de novos grupos interessados na proteção ambiental, espera-se um exemplo do Estado. No entanto, o atual governo brasileiro se mostra favorável ao desmonte de políticas ambientais e ao enfraquecimento de órgãos de proteção, revelando um claro desprezo pela questão. Bolsonaro alegou em diversas ocasiões a importância da soberania do brasileiro sobre seus territórios quando aconselhado por políticos de outros países a fazer mudanças nas políticas ambientais. Porém, ao mesmo tempo que a fala sobre soberania é importante, o presidente a invoca de um local de destruição da natureza em prol do agronegócio voltado à exportação, e não da preservação.
A Curinga buscou ouvir o Ministério do Meio Ambiente, mas não obteve resposta da pasta sobre as ações que o governo estrutura para garantia futura da preservação ambiental no país. Segundo o jornal Folha de São Paulo, em abril deste ano, Bolsonaro escreveu uma carta a Biden, atual presidente dos EUA, comprometendo-se a ajudar o presidente americano a alcançar as metas da agenda ambiental, alegando a intenção de eliminar o desmatamento ilegal até 2030 e antecipar em 10 anos a meta a longo prazo de atingir a neutralidade climática. Tais assuntos até então não haviam tido a devida atenção de Bolsonaro, que vem negando a necessidade da preservação ambiental.
A carta de Bolsonaro vai na contramão do que o presidente vem fazendo durante seu governo, e parece ter um tom de interesse nos US$ 20 bilhões que Biden prometeu durante sua campanha para a proteção das florestas tropicais. Bolsonaro afirma que as metas só poderiam ser alcançadas mediante a ajuda internacional em “volume e velocidade” proporcionais à urgência das ações.
O presidente não é o único interessado na quantia prometida por Biden. Em documento criado pelo Centro Brasil no Clima, 21 governadores brasileiros e especialistas de oito instituições da área se uniram para escrever uma carta ao presidente estadunidense, em uma tentativa de melhorar a reputação do Brasil internacionalmente, fragilizada pela falta de compromisso do presidente com o tema e pelas altas taxas de desmatamento. As cartas e a verba serão discutidas em uma cúpula sobre o clima e o meio ambiente em Washington com 40 líderes mundiais.
Sem uma frente de ação por parte do governo federal, o país segue rumo à destruição, se transformando em uma grande fazenda de monocultura para outros países. A população, os animais e as florestas, seguirão sendo envenenados e mortos pela necropolítica. A experiência dos povos originários indígenas é uma lição que precisa ser amplamente valorizada e difundida no país. Assim como a cultura destes povos, práticas preservacionistas de outros agentes - antigos ou novos - precisam ser assimiladas para que possamos aprender definitivamente a importância de se preservar a terra, e consequentemente, a nossa vida.