Especiais
Consciência ambiental na pandemia
Ilza Girardi, especialista em Comunicação Ambiental, discute como a pandemia afeta a relação entre jornalismo e meio ambiente
Equipe: Maria Heloísa Fortes, Fernanda Miranda Dias,
Maria Letícia Nolasco, João Renato Negromonte e Victor Laia
Você, como ativista ecológica, vencedora do Prêmio “Pioneiros da Ecologia” em 2015, acha que falta ao brasileiro consciência ambiental? Como fazer com que as pessoas se preocupem com a necessidade de mudar a maneira como se relacionam com o ambiente?
Olha, uma pergunta muito interessante, até difícil de responder. Dos jornalistas, a gente tem a intenção de qualificar a informação ambiental, mas assim, isso é muito sério, porque é um processo que não seria difícil se houvesse esse interesse do governo. Nós já tivemos tantas épocas, no passado, muitos projetos nessa área ambiental, de formação, de educomunicação ambiental, congressos de educação ambiental, que tinham apoio. Eu convivo com pessoas que têm muito interesse na área ambiental, muita preocupação. Temos um evento que chamamos de “Terça Ecológica”, com ecojornalistas que vão falar de líderes indígenas, dois caciques daqui do Rio Grande do Sul, que são de áreas de retomada, que são de florestas nacionais de São Francisco de Paula e a Floresta de Canela. A gente quer o povo na rua protestando contra tudo isso. Então, eu acho que o povo brasileiro precisa acordar sobre essa questão ambiental. É provável, eu acredito que as pessoas tenham começado a perceber a importância do meio ambiente para nossa vida, né? O ambiente é importante para os animais, para as próprias plantas que têm direito de viver, para os povos da florestas, os indígenas, os ribeirinhos, os quilombolas, todos os povos originários que a gente tem e é importante para nós também que vivemos na cidade. Então, seria importante que as pessoas se tocassem, começassem a perceber e se engajar nessas lutas pela preservação, pela continuidade da vida. Teve um estudo que foi feito no passado, com a [jornalista e historiadora] Samyra Crespo, e ela constatou que os brasileiros sim, eles têm interesse no meio ambiente. Mas atualmente a gente tá vivendo um tempo complicado, né? O Bolsonaro nem trabalha. Ele não nos enganou, na campanha dele. Ele já disse o que queria. Ele queria vender armas, queria acabar com todas essas restrições, essas coisas ambientais do país que impedem o progresso.
A gente tem que entender muitas questões: as interações que existem entre todos os seres, o olhar necessário para conseguir fazer uma matéria sobre meio ambiente. Mostrar que, na natureza, todos os processos são interconectados.
Ilza Girardi
Docente da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Foto: Arquivo pessoal
Sabendo que grande parte da sociedade brasileira ainda se recusa a seguir os protocolos recomendados por autoridades médicas por causa da pandemia, como avaliar o impacto real destes comportamentos para a saúde pública do país? E quanto à saúde ambiental?
Eu acredito na educação. A educação que seria um projeto do governo, que seria utilizar os meios de comunicação para fazer peças de propaganda muito bem feitas para informar as pessoas sobre a importância de elas usarem estes protocolos e distanciamento. Mas com o atual Governo, não vamos esperar nada dele. Eu lembro da questão da Aids, o HIV, que foi no Governo de Fernando Henrique Cardoso, quando se começou campanhas que foram sendo aperfeiçoadas. Muitos programas existiram com o intuito de informar as pessoas para poder mudar a lógica da contaminação. Isso deveríamos ter aqui, mas não temos, pois o atual Governo é negacionista. A gente não teve um Conselho Federal de Medicina que se posicionasse contra essa loucura e que defendesse as medidas da Organização Mundial da Saúde. Ele defendeu o direito dos médicos de matarem as pessoas. A gente tinha que entender que essa pandemia mostra a forma como nós nos relacionamos com o meio ambiente. Quando a gente começou a se alertar em relação às mudanças climáticas, essa mudança de clima ia começar a fazer com que, por exemplo, o mosquito da dengue, da febre amarela, começassem a cair. Essa lavagem cerebral, que as pessoas deixaram que acontecesse com elas, eu não consigo entender ainda o que aconteceu. Acho que em relação ao meio ambiente estamos, no momento, em uma situação muito dramática.
Há alguns anos, você foi responsável pela criação da primeira disciplina de Jornalismo Ambiental no Brasil. Como você vê a importância desta disciplina nos currículos das universidades nesse momento de pandemia?
Eu considero fundamental a presença desta disciplina nos currículos porque uma disciplina de Jornalismo Ambiental não ensina só o jornalismo. Essa disciplina vai fazer uma espécie de alfabetização ecológica para que eles [os alunos] entendam de que forma têm de abordar o meio ambiente. Então a gente tem que entender muitas questões: as interações que existem entre todos os seres, o olhar necessário para conseguir fazer uma matéria sobre meio ambiente; mostrar que, na natureza, todos os processos são interconectados. O que acontece com uma parte vai acontecer com todas. Às vezes tem um ninho de quero-quero no campo de futebol. Por que aquele quero-quero está ali? Porque os habitats dele já estão destruídos. Então o jornalismo ambiental é para isso. Para fazer uma alfabetização ecológica, para mostrar ao jornalismo uma metodologia de olhar o meio-ambiente. O olhar ambiental tem um método. Tem uma forma de pensar. Então, quando vamos tratar da questão ambiental, vamos tratar de tudo. Quando começamos a fazer todas essas interconexões, temos que valorizar as fontes, não somente da ciência, mas o ribeirinho, o indígena, o agricultor, a dona de casa, o morador em situação de rua, o quilombola, essas pessoas precisam ser ouvidas. Eles vão falar sobre a experiência deles. Há também os pressupostos da educação ambiental. E um deles é a precaução.
Poderia explicar um pouco mais essa questão?
O jornalismo geralmente trabalha com o fato, mas a precaução nos ensina, com base nos nossos conhecimentos, a termos uma ideia do que pode acontecer, para não fazermos errado. Infelizmente, na minha faculdade, quando surgiu a primeira disciplina [de Jornalismo Ambiental] , ela não se transformou em uma disciplina obrigatória. Essa disciplina do curso só foi ministrada por mim. Em épocas que não consegui mais ministrar, ela nunca mais ocorreu. E isso é muito triste. Depois disso, várias universidades criaram esses cursos, que foram mudando de nome e virando conteúdo dentro de outras disciplinas. Mas eu acho que ainda há universidades que têm a disciplina de jornalismo ambiental. Na nossa foi um movimento dos alunos que me ajudou a fazer isso, eu tive apoio deles, foi uma coisa muito bacana.
Como o trabalho de jornalistas que cobrem o meio ambiente podem contribuir com o ativismo ecológico? Como observar o papel da imprensa no monitoramento das maneiras como o Governo Federal atual lida com as questões ambientais?
O fator Bolsonaro qualificou o trabalho da imprensa. Claro que eu não acompanho todos, mas temos aqui no Sul uma emissora de TV chamada Rede Pampa, que é um horror. Eles são negacionistas e eu não sei nem como que pode isso, como a Lei de Imprensa permite isso. Bom, permite tudo porque o Bolsonaro permite, né? Eles continuam achando que a pandemia é apenas uma gripezinha, ainda embora vários deles, apresentadores de um programa horroroso aqui da TVE já tenham tido Covid-19. A imprensa tem um papel fundamental para disponibilizar ao público informações qualificadas, corretas, que despertam a consciência ecológica, pois essa informação vai chegar até as pessoas que vão ter a liberdade de aceitar ou não, mas de provocar uma discussão sobre a temática e, se for uma informação correta, qualificada, ela pode produzir consciência ambiental, isso aí é muito importante. O próprio Jornal Nacional [da Rede Globo] que no passado criticamos tanto, hoje em dia tem o meio ambiente como tema praticamente permanente lá, com abordagens corretas. Vi uma entrevista no programa Roda Viva [TV Cultura] com o Ailton Krenak, onde também foi abordada a questão ambiental com muita propriedade.
Mas há problemas em algumas abordagens?
Quando eles fazem uma reportagem sobre o agronegócio pontuam sempre a quantidade da produção, a melhora do PIB, mas eles nunca fazem ali a conexão do agronegócio com os danos ambientais causados pelos mesmos, essa é a falha do jornalismo. E porque eles não fazem isso? Por conta do capitalismo, pela questão dos patrocinadores, então a gente vê muitas reportagens nessa área sobre agrotóxicos, mas eles não aprofundam tanto nessa questão pois vão chegar naquele público, que são os mesmos que sustentam eles. No Rio Grande do Sul, o nosso Governador ainda quer explorar a Mina Guaíba, que atinge assentamentos de agricultura ecológica, agroecologia, que atinge, sem qualquer problema, as águas do Guaíba, que é o rio que banha nossa cidade, e outras da região, assim contaminando o ar e aí indo na contramão da história. Dizem que isso acontece porque o carvão daqui é um pouco mais “novo”, diferente dos encontrados na Europa, por exemplo, que consideramos ser um continente mais antigo. Aqui a gente precisa explorar extensões de terra para ter uma quantidade boa. O Uruguai tentou fazer isso também, houve um envolvimento muito forte da população e dos pecuaristas, porque o Uruguai é um país bem voltado para atividade agropecuária e todo o bioma pampa é lá no Uruguai. Então, eles sabiam que teriam muitas dificuldades, pois poderiam prejudicar também a economia deles. Além disso há dano para a saúde do pulmão, dano cardiovascular, câncer de pulmão, dentre outras doenças.
Os mosquitos estão quietos, os vírus estão quietos, estão no lugar deles e a gente começa a mexer, cutucar, mas nós não temos um preparo no sistema imunológico para aguentar. É um desrespeito e parece que a visão capitalista não enxerga isso.
Ilza Girardi
Em todos esses anos envolvida com ativismo ecológico, o que mais te preocupa hoje? Você acredita que a pandemia do novo coronavírus é decorrente das más relações com o meio ambiente?
Pelo que a gente já leu sobre como surgiu, onde foi detectado, o vírus é decorrente dessa relação equivocada com o meio ambiente. Então, parece que surgiu em mercados de carnes na China. O desmatamento que ocorre na Amazônia aqui é responsável pelo surgimento de muitas doenças. Estes são vírus que têm como transmissores os mosquitos. Os mosquitos estão quietos, os vírus estão quietos, estão no lugar deles e a gente começa a mexer, cutucar, mas nós não temos um preparo no sistema imunológico para aguentar. É um desrespeito e parece que a visão capitalista não enxerga isso. A visão capitalista só enxerga o lucro, é um capitalismo atrasado, que acha que vai destruir um planeta e que vai se mudar para o outro. Se começar a aumentar o aquecimento do planeta, várias doenças vão aparecer e vários outros tipos de vida vão desaparecer também. Vão desaparecer plantas que são fundamentais para nós, para purificação do ar, para que o ar fique mais refrescado. A gente poderia, enquanto humanos, aprender muita coisa com essa pandemia e mudar nossa relação com o meio ambiente, nossa relação com o outro, termos empatia, compaixão, a gente poderia tudo isso, mas vamos ver o que vai acontecer, né?
Como professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), qual a sua avaliação sobre os desafios sociais da ciência no futuro? Como fomentar a ampliação de uma cultura científica de médio prazo, junto à sociedade?
Para que a gente consiga fomentar essa cultura científica na sociedade, nós precisamos, enquanto pesquisadores e professores, trabalhar muito na extensão desse conhecimento que produzimos na universidade e, através de várias maneiras, divulgar isso para o público. Fazer com que esse conhecimento vá para domínio público. Os meios de comunicação são fundamentais. Nós poderíamos contar com os meios de comunicação públicos, mas o nosso Estado fez o favor, também, de acabar com nossa TV pública. O Brasil está destruindo a educação pública, mas deveria usar toda essa sua rede de comunicação para poder nos ajudar na difusão do conhecimento. É uma loucura a quantidade de lives que existem, mas há muitas outras atividades abertas ao público que as universidades deveriam fazer. A gente tem o Salão de Iniciação Científica, Salão de Extensão, Salão de Ensino, são atividades que são para os estudantes, mas são abertas ao público. Isso tinha que ser muito divulgado. Todas as universidades deveriam abrir mais os seus espaços para o público. Então é isso, é uma forma da gente trazer as pessoas pra dentro da universidade. Essas pessoas vão compartilhar com seus familiares aquilo que aprendem na universidade e a universidade vai ter a população defendendo a sua existência. Aqui, quando começou a loucura, a era Bolsonaro, nós tivemos gente dizendo: “Ah, na UFRGS só tem comunistas”, aquelas coisas que o Bolsonaro diz. Aquele ministro enlouquecido que disse que dentro das universidades as pessoas usavam maconha, andavam nuas e faziam algazarra, e teve muita gente que repetiu essa fala.
É possível pensar em algum cenário otimista na relação futura entre sociedade e meio ambiente? Se sim, de que maneira?
Eu sempre acho que é possível. Nós temos que continuar na luta, na resistência, nos juntarmos com essas pessoas do bem e que também estão nessa mesma luta, nesse mesmo canal, e pensar que o fundamental é termos um outro governo. E que quando nós elegermos os nossos políticos, os nossos candidatos, a gente tem que olhar no plano de governo deles o que eles pensam sobre o meio ambiente, qual a relação que eles vão ter com o meio ambiente, a relação deles com os povos originários. Isso é fundamental e a gente ainda tem que colocar toda a questão da mulher, dos direitos humanos, porque a questão ambiental também tem a ver com direitos humanos. Essas coisas não estão descoladas. Então, a gente tem que pensar tudo, a gente tem que pensar até na forma com que são criados os animais para abate e vamos chegar no ponto de ter que pensar, afinal de contas, por que nós continuamos comendo carnes de bichos. Desses animais que vão morrer e que são transportados daquela maneira terrível, para outros locais para serem abatidos. Isso tudo é um horror, isso tudo é uma barbaridade, e se você pensar nos processos de imigração que existem no mundo todo, as pessoas são refugiadas políticas ou refugiadas ambientais, pessoas sem água. É só a gente olhar as propagandas que tem o tempo todo na TV de Médicos sem Fronteiras, dos refugiados… Eu contribuo com todos eles, é um horror! É um trabalho que parece que nunca acaba, porque ele mostra que nós vivemos em uma sociedade cruel, onde o dinheiro é quem ainda manda, e a riqueza está nas mãos de poucos e isso precisa mudar. Isso só superando o sistema capitalista, eu tenho certeza disso. Não adianta nem a gente definir desenvolvimento sustentável. O desenvolvimento sustentável é uma perspectiva capitalista. A gente tem que pensar em outras formas que têm a perspectiva do bem viver, que se baseiam em perspectivas de vida dos povos originários, dos guaranis, dos indígenas, de povos originários de outros lugares do mundo, que conseguem viver, ter a sua economia sem destruir a natureza, sem destruir as relações das comunidades, as relações comunitárias, a empatia e a compaixão.