Expressar
A perpetuação do espírito eterno
A importância vital da arte e da cultura em tempos remotos
Equipe: Felipe Leoni e
Fernando Alberto
Produzir arte e cultura é condição do humano. Desde o período pré-histórico a humanidade se expressa artisticamente. Entendendo arte como produto do embate homem/mundo, ela é vida, afirma a pesquisadora Amélia Bueno Buoro. E em tempos de pandemia, a arte e a cultura se tornam ainda mais necessárias para o estar no mundo. Porém, não há produção artística sem que existam condições materiais e psicológicas favoráveis ao seu aparecimento, adverte Amelia Bueno. É neste sentido que a Curinga discute a necessidade – vital - da produção artística e cultural neste período de tantos enfrentamentos.
Em um momento tão desafiador para o país e o mundo, “fazer arte é uma forma de guerrilha cultural”, diz Flávio Viegas Amoreira, intelectual, militante cultural, historiador e escritor. De Santos (SP), onde vive, busca expandir o combate pela arte pelo Brasil afora, onde houver brechas possíveis. Para o artista, trata-se, primeiramente, de alçar a cultura a um outro patamar: “O Brasil deve canalizar nossa inserção no mercado mundial em conjunto com ações culturais afirmativas: alçar a cultura ao mesmo nível de direito universal atingido pela Educação”.
Pandemia sem arte, estado cruel de existência
Privados neste momento de frequentar cinemas, teatros, shows, circos, palestras e seminários presenciais, recorremos ao consumo e à apreciação da arte e da produção cultural mediados pelo mundo digital. Ainda que inicialmente estranhemos receber e consumir conteúdo por meio de redes sociais, buscamos cada vez mais a interação com essas plataformas. É a forma que encontramos para manter vivo o nosso desejo de expressão e de comunhão pela arte e pela cultura. Diante do isolamento social provocado pela chegada da covid-19, muitos artistas ficaram à mercê de programas de fomento e leis de incentivo para continuarem a se manter e realizar seus trabalhos. Em meio às dificuldades e obstáculos antes nunca enfrentados, novas formas de se vivenciar, produzir e compartilhar cultura vêm sendo colocadas em prática.
Afinal, a arte, além de forma de expressão e preservação de raízes e costumes, é também o meio de sobrevivência de diversas pessoas. Na música, no teatro, na dança, seja qual for a forma de expressão usada por esses agentes que levam as expressões artísticas em seu cerne, essas práticas também levam o alimento para a mesa de milhares de brasileiros. E mesmo que o Estado não enxergue o potencial do investimento público no setor cultural, é visível a relevância da arte e da cultura para o crescimento econômico do país.
Investimentos públicos
Em 1972, o então presidente do Senado, José Sarney, apresentou uma proposta de lei que visava abater dos impostos o financiamento direcionado à cultura. Porém, devido ao contexto da ditadura militar, o projeto não foi aprovado. Sarney assumiu o cargo de Presidente da República em 1985, o que possibilitou a implementação do seu projeto por meio de decreto, em 2 de julho de 1986.
A Lei Sarney (Lei 7.505/86) permaneceu em vigor durante quatro anos, e foi extinta em 1990 durante o governo Collor. Um ano depois, foi aprovada a Lei 8318, conhecida como Lei Rouanet, instituída em 1991. Foi proposta por Sérgio Paulo Rouanet e sofreu diversas mudanças desde sua criação. Porém fica claro em sua apresentação: "Restabelece princípios da Lei 7.505, de 2 de julho de 1986".
Nos anos 2000 as formas de produção se expandiram, mas só em 2003 começou a se pensar a política cultural a partir de uma visão antropológica. Em 2004 os editais cresceram em números muito expressivos, suficientes para surgirem as primeiras pesquisas econômicas especificamente sobre a cultura. É nesse contexto que surge um pensamento sobre a economia da cultura, que depois permitiu o surgimento de uma área mais ampla e específica da cultura, a economia criativa, que é o valor econômico gerado pelo conjunto de negócios baseados no capital intelectual, cultural e na criatividade. Conforme classifica o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).
Em 2019 a Lei de Incentivo à Cultura era a principal ferramenta de fomento às atividades culturais. As fundações culturais podiam utilizá-la para envio variado de projetos, de forma a captar recursos. O Ministério da Cidadania, através da Secretaria Especial de Cultura, era responsável pela aprovação do projeto. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2019 trabalhavam no setor cultural cerca de 5,5 milhões de pessoas, e a participação do setor na economia nacional variava de 1,2% a 2,67% do PIB.
Por meio do governo, há duas formas de financiamento de atividades da cultura:
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Aquele que é feito para beneficiar diretamente a área da cultura, aprovado no início do ano, através da Lei Orçamentária Anual (LOA), a partir de editais e convênios.
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Por meio de incentivo fiscal, com a aprovação de um determinado teto para incentivo. Trata-se de um valor proveniente do imposto, do qual a Receita Federal abre mão, para ser aplicado em projetos culturais. Esse financiamento pode ser abatido pela Lei federal, intitulada Rouanet, via imposto de renda; pela lei de incentivo fiscal dos estados via “Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços” (ICMS) e pelo incentivo municipal via “Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza” (ISSQN) e “Imposto Predial e Territorial Urbano”(IPTU).
Através do incentivo fiscal a seleção de projetos é menos concorrida, pois o proponente ainda tem que captar recursos, atraindo patrocinadores para que o projeto seja executado. Por outro lado, conseguir aprovação em um edital ou em um determinado prêmio, onde a concorrência é maior, torna o processo de seleção mais difícil.
Produtores culturais e entidades privadas sem fins lucrativos utilizam o programa Nacional de Apoio à Cultura, instituído pela Lei 8313. A partir do momento que o projeto foi aprovado pelo Ministério da Cidadania, já se pode iniciar a arrecadação de recursos. Qualquer cidadão que tem o imposto de renda a pagar pode apoiar seus projetos e abater até 6% do valor devido. Da mesma forma, uma empresa tributada no lucro real pode incentivar esses projetos em até 4% e abater o valor de forma total ou parcial.
Pandemia covid-19
As práticas e atividades que têm em sua essência a interação social se viram cerceadas pelas limitações de contato e comunicação, direcionando toda ação para o único meio que conseguiria interligar as pessoas e as experiências que a cultura nos propõe: a internet. Porém, é fato que existe uma desigualdade em relação ao acesso às tecnologias e à produção de conteúdo digital, com limitações de estrutura e equipamento. Ainda não é possível ter a dimensão atual dos impactos no setor cultural.
A fim de estimar os impactos da pandemia no setor da economia criativa e no setor cultural, um total de 546 empresas participaram de um questionário online promovido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo (SEC-SP) e pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE). A pesquisa revela que 86,6% dessas empresas tiveram queda de faturamento desde março de 2020, e um total de 346 (63,4%) empresas tiveram que paralisar suas atividades devido à crise gerada pela pandemia. Devido ao cancelamento de projetos culturais, que envolve 42,1% dessas empresas, 19,3% realizaram demissões, com média de 13,5 funcionários por instituição.
Ainda segundo a pesquisa, em 2020 o PIB da economia criativa sofreu uma queda de 31,8% em relação a 2019, e em 2021 a queda foi de 4,5% comparado ao ano de 2020. O resultado foi uma perda de R$69,2 bilhões no biênio 2020-2021.
Lei Aldir Blanc - Emergência cultural
Durante a pandemia, a Lei Rouanet permaneceu em execução, mas muitos dos projetos, como shows musicais, apresentações teatrais e oficinas de artes foram adequados para um modelo virtual. A lei da emergência Cultural Aldir Blanc recebeu esse nome em homenagem ao compositor e escritor falecido, vítima do novo coronavírus. A lei surgiu a partir de solicitações de personagens ativos da comunidade cultural no Brasil, como o historiador Célio Turino, um dos que deram início aos primeiros rascunhos do projeto.
A primeira ação foi encaminhada pela deputada federal Benedita da Silva, através do Projeto de Lei 1075, foi construída conjuntamente com a deputada e outros 26 parlamentares, entre eles ex-gestores do extinto Ministério da Cultura e técnicos e representantes da área cultural. Protocolado em 26 de março de 2020, teve sua construção, elaboração, encaminhamentos e articulação conjunta da produção a partir de conversas e debates realizados em lives e redes sociais, como o Youtube.
Assim, é previsto na Lei 14.017 o repasse direto do valor de 3 bilhões de reais aos estados e municípios em uma única parcela.
Xisto Siman é membro do Conselho Estadual de Políticas Culturais e membro suplente e representante do circo no Conselho Estadual de Cultura. Desenvolve trabalhos com teatro desde 1991, e ao lado de João Pinheiro, compõe a frente do Circo Volante, grupo criado em 2000 que se dedica às atividades e práticas circenses, mais especificamente à arte do riso.
Tendo acompanhado de perto todo o processo de pandemia no meio artístico, Xisto fala sobre a importância da arte e das práticas culturais para o indivíduo, pontuando também sobre como o cenário artístico independente foi afetado pela pandemia.
Foto: Samuel C. Medeiros (@cons_samuel)
A arte acaba refletindo, registrando e traduzindo essas
questões da sociedade
Xisto Siman
Representante da cultura e circo
O artista aponta como obstáculo o atraso no repasse do orçamento, o que dificultou alguns artistas de executarem os projetos beneficiados pelo auxílio. A fim de entender a trajetória de aprovação da Lei Aldir Blanc, Adriana Donato do Reis, Doutora em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), nos apresenta o cronograma iniciado em maio de 2020.
Cultura, alimento para a mesa e para a alma do brasileiro
Diante da pandemia, os agentes culturais, pequenos e grandes produtores e os diversos artistas que antes contavam com os espaços externos - como os palcos, praças públicas, salas de oficina e de aula - foram obrigados a renovar formas de desenvolvimento, apresentação e disseminação de seus produtos e criações.
Toda e qualquer atividade que implica em aglomeração e contato físico com pessoas foi impedida por conta do isolamento social. Além dos artistas, aqueles que atuavam como técnicos de eventos, assim como os profissionais que desenvolvem projetos recreativos voltados à educação, também foram afetados e tiveram que interromper suas atividades. Para muitos desses agentes, a única saída para continuar a trabalhar foi recorrer a programas de fomentação de recursos e leis de incentivo que forneçam verbas voltadas à execução desses trabalhos. Porém, a burocracia desses processos impede abarcar todos os agentes presentes no nicho cultural e artístico, que é composto por uma grande leva de profissionais.
José Virgílio Leal de Figueiredo, produtor cultural natural de Salvador, é o criador e presidente do Projeto Arte no Dique, que desenvolve atividades educativas e recreativas como percussão, culinária artesanal, aula de reforço, teatro, dança e outras diversas atividades culturais. O Arte no Dique foi criado no final de 2002 e tem sua sede na Vila Gilda, Santos (SP), local com o menor índice de desenvolvimento humano da região da Baixada Santista e onde está localizada a maior favela de palafitas do Brasil.
Em conversa com a Curinga, José Virgílio falou sobre sua perspectiva quanto à situação social neste período de pandemia, e a necessidade de programas que viabilizam o suporte não só de artistas e produtores, mas de todos que exercem funções voltadas para essas áreas.
Foto: Nice Gonçalvez
José Virgílio - Arte no Dique
Projetos sociais como Arte no Dique levam esperança e educação a lugares onde as mentes são ricas, mas muitas vezes as oportunidades acabam não chegando. Este também é o caso do Coletivo MICA - Mídia, Identidade, Cultura e Arte - que atua em Minas Gerais e trabalha a Comunicação com jovens em situação de vulnerabilidade.
O Coletivo MICA busca trabalhar a comunicação reduzindo o desequilíbrio informativo e usando as diversas ferramentas midiáticas – rádio, TV, impressos e multimídia - para oferecer ao público jovem acesso à informação de qualidade e ferramentas para sua expressão. No período de pandemia o coletivo desenvolveu os projetos “MICA contra à covid-19 - Crianças e adolescentes em casa” e “Comunicação solta a voz: Comunicação e Cidadania”, proporcionando atividades recreativas e dinâmicas educativas de forma remota, visando diminuir os danos causados pelo isolamento.
Foto: Arquivo pessoal
Thamira Bastos - Projeto do Coletivo MICA - Atividades na Quarentena - Crianças e adolescentes em casa
Thamira Bastos é jornalista, comunicadora e ativa no meio da produção cultural há sete anos. Membro do MICA desde sua fundação, já trabalhou no desenvolvimento de oficinas, festivais, exposições e mostras, no decorrer de sua caminhada junto ao coletivo.
Em conversa com a Curinga, Thamira falou sobre os desafios de se trabalhar com produção cultural em meio ao isolamento e suas perspectivas quanto aos enfrentamentos neste momento de pandemia.
Um futuro a ser projetado: arte e cultura para todos
Quem atua na produção de arte e cultura demonstra que é essencial projetar um futuro para este campo no país, mesmo que para isso seja preciso mudar as formas de diálogo e adaptar as novas ferramentas de execução. Até então, boa parte dos artistas e produtores brasileiros ainda não conseguem ter acesso a esses programas de incentivo e leis de fomento para realizarem seus trabalhos. Logo, a única alternativa para continuar a produzir vem de seu próprio esforço.
Pensando no caminho a ser trilhado diante deste momento de enfrentamento que a pandemia e o isolamento social impôs, a Curinga apresenta depoimentos de profissionais que destacam a perspectiva de quem está diretamente ligado às práticas culturais, à produção artística, à comunicação, e que acompanha de perto a situação econômica do cenário cultural.
Sem um governo que valorize a arte e a cultura, continuaremos pobres e carentes de expressão no mundo. Para Flávio Viegas, a militância é uma mola propulsora para alçar a cultura e a arte à sua importância. “Cultura será mais importante, superior e englobará política: deixará de ser termo vago, “aviadado” ou pretensioso para denominar “cultivo” para condicionar toda ação e reflexão humanas no sentido da sobrevivência de nossa espécie”, diz.
Em um futuro ideal, ele projeta: O “homo criativus” será último hominídeo: os governos, o Estado e as sociedades em todos seus níveis devem ter estratégia de "glocalização": pensar o mundo a partir do microcosmo e pensar o cosmo a partir da realidade circundante imediata”.
Adriana Donato dos Reis - Doutora em Políticas Públicas da UFRGS, pesquisadora e consultora em políticas culturais, com especialidade em leis de incentivo à cultura. Professora do Curso Produção de Espetáculos da Faculdade Monteiro Lobato e parecerista do Ministério do Turismo - Secretaria Especial da Cultura.
Foto: Arquivo pessoal
Foto: Arquivo pessoal
Xisto Siman - Criador do Circo Volante, é membro do Conselho Estadual de Políticas Culturais e membro suplente do Conselho Estadual de Cultura, representando o Circo. Mariana (MG).
Thamira Bastos - Jornalista e comunicadora, representante do Coletivo MICA (Mídia, Identidade, Cultura e Arte), de Belo Horizonte (MG).
Foto: Arquivo pessoal
Foto: Arquivo pessoal
José Virgílio Leal de Figueiredo - Criador e presidente do Projeto Arte no Dique em Santos (SP).