Expressar
Conectados, mas distantes
Até que ponto a internet pode suprir a necessidade de contato social durante a pandemia?
Equipe: Fernando Neto,
Júlia Carvalho e Marcela P.
“A felicidade só é verdadeira quando compartilhada”. Essa é a frase final do personagem Christopher McCandless, vivido pelo ator Emile Hirsch, no filme “Na natureza selvagem”, de 2007, baseado no livro do jornalista Jon Krakauer, publicado em 1996. A história é real e narra a viagem de Christopher ao Alasca em 1992, quando o estadunidense decide deixar de lado toda a sua vida e embarca sozinho em uma aventura. Ao abdicar de todos os bens materiais e do cotidiano marcado por relações sociais que para ele não faziam sentido, Christopher se isolou em meio à natureza. Vinte e nove anos depois, em 2021, também estamos tentando nos isolar, mas por um motivo diferente: evitar o contato social por uma questão de saúde coletiva.
Desde que a pandemia do novo coronavírus foi decretada, em março de 2020, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), os governos e órgãos competentes começaram a recomendar medidas de combate à disseminação do vírus, dentre as quais o isolamento social. O cenário exigiu de nós várias mudanças. Nossos modos de trabalhar e estudar, encontrar os amigos e família, por exemplo, já não são mais os mesmos.
A internet, que aos poucos vinha ocupando um espaço cada vez maior na vida de grande parte das pessoas, agora domina de vez a rotina e os relacionamentos. Enquanto somos obrigados a evitar o contato físico, vivemos pela internet: é pela tela que trabalhamos, que estudamos e que nos relacionamos.
A internet está desempenhando um papel fundamental nesse momento, mas está longe de ser um serviço amplamente democrático. Mais de 70% da população brasileira está conectada à rede, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC) divulgada em abril de 2020. Porém, não podemos nos esquecer da variedade de realidades do país. Muitos brasileiros ainda estão excluídos da internet, seja por questões sociais, geográficas ou por analfabetismo digital.
No âmbito do trabalho, o chamado home office foi incorporado por profissões com maior qualificação, e se tornou um privilégio quase restrito à classe média. A maior parte dos trabalhadores continua trabalhando presencialmente, enfrentando aglomerações no transporte público e outros locais. Isso sem falar no desemprego e nas mudanças que a pandemia provocou nas relações trabalhistas, com a informalização e a “uberização” do trabalho. De qualquer forma, ainda que o home office não tenha sido unânime, todos tiveram, em diferentes graus, suas relações sociais modificadas pela pandemia.
Para aqueles que têm acesso à internet de forma direta ou mesmo indireta, é fato que a virtualização da vida social foi uma grande aliada nessa quarentena. Os aplicativos e as redes digitais permitiram que, com o isolamento, os relacionamentos não fossem rompidos, e sim reinventados. As pessoas compartilham praticamente tudo pelas redes: a rotina, os hábitos e os sentimentos. Estamos distantes, mas conectados. O que Christopher McCandless diria dessa realidade?
Reinventando os espaços
Antes da pandemia, as relações aconteciam primordialmente no espaço físico. Se já havia o uso do mundo virtual, ele era usado mais como prelúdio dos relacionamentos no mundo real. Por exemplo, usar as redes sociais para marcar um encontro. A interação via internet era, muitas vezes, coadjuvante. Desde que a pandemia começou, porém, os encontros físicos foram suspensos. Os contatos virtuais deixaram de ser um meio e se tornaram um fim.
Inevitavelmente, tais circunstâncias transformam as relações interpessoais. A escritora e filósofa Liliane Prata alerta: “quando a relação fica confinada no espaço virtual, ela fica confinada no plano mental, fantasioso, imaginativo”. Quem concorda com isso é Wanwan Gianna, 30, estudante, que considera o contato físico insubstituível. Para ela, os relacionamentos à distância, por mais úteis que sejam, não são a mesma coisa dos presenciais. “Sinto falta do contato, da relação olho no olho, do abraço, de sair, de conversar”, diz Wanwan.
De acordo com Liliane, apesar das relações à distância serem preciosas neste momento, elas possuem alguns riscos. Por exemplo, o excesso de contato. “Não é porque a facilidade tecnológica permite que nos comuniquemos com frequência, que essa frequência será nutritiva para a relação”. O excesso de contato, como disse Liliane Prata, pode ser danoso. É necessário também aproveitar esse tempo para ficar sozinho, para se relacionar consigo próprio. Nas palavras da escritora, “é tão precioso não desaprender a lentidão e a solidão!” Ela cita o historiador Yuval Harari, que diz que o ser humano é melhor para inventar tecnologias do que para usá-las com sabedoria.
O uso desenfreado da internet e de seus recursos apresenta riscos. Vale a pena lembrar que o uso de recursos digitais, em excesso, pode gerar dependência. A Organização Mundial de Saúde (OMS) já reconhece o vício em internet e celular como uma doença, e já existe um nome para ela: nomofobia.
Quem também acredita que a distância afeta as relações é Ricardo José Gontijo Azevedo, professor e geógrafo do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG). Para ele, o relacionamento por meio das tecnologias são mais superficiais. O professor ressalta a importância dos espaços: “as relações sociais quando ocorrem presencialmente apresentam uma relação indissociável com o espaço onde ocorrem. Assim, as pessoas constroem laços entre si e com o lugar onde vivem”. Ou seja, uma relação nunca é apenas entre pessoas, e sim entre pessoas e o espaço onde elas acontecem.
Novamente, quem pode testemunhar isso é Wanwan. A estudante diz que tem saudade de marcar encontros em lugares onde ela costumava ir. Para ela, faz muita falta “interagir com o outro, encontrar amigos, tomar um café”. Apesar de estar tentando viver o “novo normal” e se relacionar por meio da internet, sente que algo se perdeu. Wanwan lembra ainda que, antes da pandemia, costumava reunir os amigos em casa ou em algum bar de sua cidade. As conversas agora, à distância, não são a mesma coisa.
Desde que as recomendações de isolamento social entraram em vigor, a dinâmica geográfica mudou radicalmente. Pelas ruas das grandes cidades do país e do mundo, onde o isolamento foi levado a sério, a paisagem sofreu drásticas mudanças. Ruas ficaram desertas e monitoramentos sobre índices de circulação de pessoas passaram a ser um dado importante. A startup pernambucana Inloco, por exemplo, de março de 2020 a 2021, mapeou os índices de isolamento social no Brasil por meio de um mapa virtual que auxiliou na elaboração de políticas de contenção de circulação do vírus pelo país.
Ruas ficaram praticamente desertas. Pontos de encontro, como parques, restaurantes e shoppings, foram fechados. Muitas cidades se transformaram em amplos espaços vazios. Se já havia um movimento de virtualização dos relacionamentos, havia também em curso uma modificação das cidades. A pandemia acelerou ambas as mudanças. Além da diminuição das cidades, o professor Ricardo cita outras mudanças no espaço urbano: redução da importância do centro e criação de centros espalhados pela cidade, substituição do transporte individual para o transporte público e maior uso de bicicletas. Tudo isso pode contribuir para mudar os relacionamentos. “Acredito que as mudanças que ocorrem na cidade podem contribuir com mudanças nas relações sociais. A cidade é palco das mais diversas relações, em especial nos espaços públicos”, completa.
Reinventando as relações
Com as medidas de isolamento, até mesmo as celebrações tiveram que se adaptar ao modo virtual. Cadu Leme, fotógrafo e videomaker, trabalha com registro de eventos e viu sua atividade passar por uma drástica mudança. Ele conta que, apesar de alguns casamentos terem sido cancelados, outros foram mantidos, mas transmitidos online.
Desde o início da pandemia, a vida de Cadu passou por transformações. A plataforma virtual Zoom se tornou parte de seu trabalho, pois percebeu que algumas famílias, impossibilitadas de cancelar os casamentos, migraram os eventos para o modo online.
Registrar essas reuniões entre pessoas próximas, mas distantes, pode ser uma tarefa difícil. Para Cadu, o mais desafiador é transmitir as emoções. Ele diz que a distância, muitas vezes, transforma o que era para ser um momento emocionante em algo frio. “Nesses momentos eu não vi apenas emoção de felicidade, que é o que geralmente tem nesses casamentos, mas emoção, um choro de emoção mistas. De felicidade pelos noivos, mas de tristeza por estar longe, de saudade por não ver há meses as pessoas”, comenta o fotógrafo, se referindo às cerimônias de casamento à distância. Mas nem sempre isso acontece: a transmissão online, em alguns casos, pode ser vista como uma aliada.
O novo contexto também trouxe questões para as relações amorosas e familiares. Segundo René Dentz, psicanalista clínico, antes da pandemia, os relacionamentos já estavam a se reinventar. Ele afirma que as pessoas estão mais narcisistas, voltadas para o próprio “eu”, ao passo que relacionar-se coloca os indivíduos sob uma certa vulnerabilidade. A vida a dois, explica, exige a necessidade de dividir, de enfrentar traumas e medos. Com o isolamento e a necessidade de conviver por mais tempo, atritos que existiam se evidenciaram.
Outro ponto em mudança, desde o século XX, eram os papéis domésticos. Mulheres passaram a trabalhar fora de casa, em profissões antes vistas apenas como masculinas. Os homens deixaram de ser os únicos provedores da família. René considera que, com a intensificação da convivência durante a pandemia, as famílias que conseguem manter uma boa comunicação têm conseguido organizar e dividir melhor as atividades da vida doméstica.
Muita coisa mudou na vida dos casados e dos que estavam para se casar, mas, mais ainda, na vida dos solteiros. Quando o encontro com o outro se transforma em um risco, as relações íntimas presenciais são sempre marcadas pelo medo. Muitas pessoas resolveram não se arriscar.
Ester Louback, estudante, 30, é solteira e diz que uma das coisas mais difíceis nesse momento é a impossibilidade de marcar encontros presenciais. Ela diz, também, que a pandemia mudou a forma de se encontrar com as pessoas. “Sinto falta de ter uma conversa íntima com alguém novo, e acontecer uma coisa espontânea”.
Para Estefânia Gonçalves, psicóloga, o que Ester pensa é comum para muitas pessoas. Segundo Gonçalves, o medo de se infectar vai fazer com que as pessoas passem mais tempo conversando, antes de arriscar um encontro. Ela faz um paralelo e diz que esse novo comportamento se parece com o da “época de nossos pais e avós, em que o casal tinha muito tempo de conversa antes de ter uma relação sexual, por exemplo”.
Ainda de acordo com Estefânia, nem só desvantagens traz essa nova forma de relacionamento. Ela considera que a internet abre espaço para conhecer pessoas que presencialmente não poderiam ser conhecidas. “Você não depende da pessoa estar na mesma festa que você, ela só precisa estar nas redes sociais e normalmente, ela está”, complementa.
Ester concorda com essa perspectiva. Para ela, uma vantagem dos meios digitais é poder interagir com pessoas que moram em outros lugares. Se não fosse a quarentena e a internet, Ester provavelmente não conheceria várias pessoas e grupos, como ela vem conhecendo.
Eu tenho focado nas coisas que eu gosto, descoberto muitas coisas, e eu tenho me relacionado com outras pessoas nesse sentido, com esses novos hobbies que eu tenho adquirido
Ester Louback
Estudante
Ligando os pontos
No início do ano letivo de 2020, as aulas presenciais foram interrompidas. Depois de um período de suspensão, a vida escolar das crianças passou a acontecer de forma remota. Bianca Santos, 27, é professora da educação infantil. Ela diz que, por mais que as crianças tenham se adaptado, elas ainda sentem falta do contato físico. "É como se ficasse uma lacuna. falta algo na vida delas, e elas são bastante transparentes. mostram isso pra gente com frequência, nos desenhos, nas formas de reagir, nas perguntas, em alguma data comemorativa."
Para a professora, as crianças perderam um pouco do interesse nas aulas por ser à distância. “A gente vê que vai criando distância entre um colega e o outro, que dentro da sala de aula era muito unido, agora já é alguém diferente.” Além disso, as questões familiares influenciam nas aulas online, e os alunos se sentem com menos liberdade para participar, estando próximos dos pais. A professora avalia ainda que o contato físico é muito importante para a formação das crianças. Apesar de ser impossível substituir a presença física, ela conta que elabora estratégias para tentar driblar as distâncias e fazer com que os alunos se sintam um pouco mais próximos.
O uso da internet, em especial das redes sociais, estava em ascensão entre os idosos. Entretanto, como são um grupo de risco, suas interações sociais presenciais precisaram ser reduzidas. Para Regina Fátima dos Santos, 64, o WhatsApp já era uma rede social comum ao seu uso. Com o hábito de mandar mensagens diariamente para sua lista de transmissão, ela afirma que não sentiu que passou a usar mais o aplicativo durante a pandemia.
Regina concorda que a tecnologia nos ajuda a passar por este momento e que as relações com as pessoas fisicamente próximas melhoraram também. A família, que mora com ela, passou a sair menos, somente em casos necessários e, por consequência, eles ficaram mais juntos. Da mesma forma, alguns vizinhos se tornaram ainda mais próximos do que já eram.
Se para a idosa a pandemia trouxe aproximações com as pessoas, para o psicanalista René, entretanto, essa realidade parece não ser a regra. Para ele, as relações intensificadas foram as do âmbito online. Renné ressalta, por exemplo, que passou a ter mais consultas via internet pelo impedimento de realizar atividades presenciais.
O psicanalista Renné acredita que haverá maior flexibilidade no futuro pós-pandemia também. Sobre os relacionamentos, afirma: “Abre possibilidade, abre o mundo né? Isso é interessante, interação com mais gente, mais pessoas de outros lugares do mundo”. Ele acredita que a pandemia aumentará casos de casamentos com pessoas de outros estados, com um mundo mais flexível e distâncias diminuídas.
O paulista Bruno Carvalho, 29, e sua filha Alice, 8, não moram juntos, mas mesmo assim são muito próximos. Antes da chegada do coronavírus, Bruno via a filha em fins de semana alternados. Apesar desse acordo, ele se esforçava para vê-la todas as semanas, já que a saudade sempre aperta.
No início do isolamento social, sua relação com a filha mudou. “A princípio a gente optou por cortar essas visitas, para manter a segurança dela”. Além das incertezas, outro motivo fez com que Bruno não pudesse visitar a filha Alice: em abril de 2020, ele foi infectado pelo vírus.
Bruno compartilha da angústia de pais e mães trabalhadores durante a pandemia. O pai de Alice comenta que ele e a filha têm se falado através de ligações e chamadas de vídeo, já os jogos online são uma atividade que os dois encontraram para passar tempo juntos. Dessa forma, eles mantêm a conexão um com o outro.
As dificuldades encontradas no primeiro ano da pandemia são semelhantes em diversos âmbitos de nossas vidas. As tecnologias nos auxiliaram a enfrentar várias situações e é claro que sem elas tudo estaria mais difícil.
A pandemia vai passar, e com ela a recomendação de isolamento social. As pessoas novamente vão poder se encontrar, em um futuro próximo. A virtualização das relações não parece ser um fenômeno passageiro: muito pelo contrário, é uma tendência que já vinha sendo observada. Entretanto, nada substitui o contato físico nas relações, seja numa aula, num casamento, ou em uma conversa entre amigos.
Antes de Christopher McCandless, Tom Jobim já cantava que “é impossível ser feliz sozinho”. Nas redes sociais ninguém parece discordar disso. Afinal, é através delas que trocamos mensagens, fazemos planos, compartilhamos fotos, rimos e choramos às vezes. Há quem diga que, quando tudo isso passar, vamos valorizar mais o contato físico com as pessoas e aproveitar melhor os espaços. Um dia de sol na praia será mais colorido? Os beijos e abraços terão mais ternura? Ainda não sabemos. Enquanto isso não acontece, a internet e as imagens na tela ajudam a amenizar a saudade das cores e sensações desses encontros insubstituíveis.