top of page
Menu Site Mundo em mim.png

Adaptar

Educação desprotegida

Pandemia escancara as desigualdades do sistema educacional brasileiro

Equipe: Júlia Diêgoli,

Marina Fioravante, Rodrigo Fontenelle

Amanda, 15, acorda cedo e se prepara para assistir à aula online que se inicia às 7h30.  Ela pega emprestado o computador do irmão e se dirige até a sala ou a cozinha, onde a estrutura e luminosidade são melhores do que em seu quarto. A estudante da rede pública de ensino da cidade de Ipatinga, em Minas Gerais, liga o computador e abre o YouTube no canal “Se Liga na Educação” ou na Rede Minas. Durante o horário de aula, que se encerra às 12h30, realiza suas atividades. À tarde, envia as tarefas aos professores e tira algumas dúvidas, que possa, ter tido, pelo celular. Do outro lado da cidade, Melissa, 16, estudante da rede privada, inicia uma rotina semelhante. Acorda por volta das 06h50 da manhã para acompanhar as aulas que começam às 7h10. Ao contrário de Amanda, Melissa possui equipamento próprio para acompanhar as aulas virtuais e as assiste na escrivaninha situada em seu quarto - quando seu pai não está utilizando o ambiente para o home office - ou na mesa da cozinha. Apesar dos contextos distintos, as duas adolescentes estudantes do segundo ano do Ensino Médio relatam dificuldades semelhantes. Ambas descrevem a nova rotina de estudos como cansativa e afirmam que é cada vez mais difícil manter o interesse e o foco no aprendizado.

Melissa .jpeg

Fonte: Arquivo pessoal

Ambiente de estudos de Melissa

amanda (quarto do irmao).jpeg

Fonte: Arquivo pessoal

Ambiente de estudos de Amanda

Mais de um ano após o início da pandemia, o Brasil fechou o mês de março de 2021 com cerca de 330 mil mortes e mais de 13 milhões de casos registrados da doença. Após medidas de distanciamento social terem sido instauradas em diversas regiões, e a consequente instabilidade gerada pelo combate à pandemia, a educação brasileira também foi afetada. Em meio a opiniões divergentes envolvendo pais, diretores, alunos e médicos, algumas escolas optaram por oferecer uma modalidade de ensino híbrida, como no Estado de São Paulo, no final de 2020. O modelo consiste atualmente na oferta de aulas virtuais e presenciais, para garantir uma ocupação menor nas salas de aula e, assim, criar um ambiente supostamente seguro para os estudantes, sendo que, antes da pandemia, o sistema híbrido de ensino funcionava numa lógica totalmente presencial. No entanto, naquele Estado e em outros, escolas mantiveram a decisão de continuar apenas com as aulas virtuais, como uma escolha protetiva diante do cenário de instabilidade sanitária.

Em Minas Gerais, a Secretaria de Estado de Educação, SEE/MG, informou que o modelo de ensino híbrido será desenvolvido na rede estadual partindo dos critérios do protocolo da própria SEE/MG, a partir do momento que houver uma autorização judicial. Além disso, esse sistema será testado primeiro nos municípios que estão enfrentando onda amarela ou verde, que são classificações de ações municipais de controle à pandemia no Estado. A SEE/MG afirma que “as prefeituras têm autonomia para decidir sobre a reabertura das unidades. Todas as escolas estaduais vão apresentar um checklist confirmando a aplicação do protocolo nas unidades para o desenvolvimento do ensino híbrido”. Apesar do plano, a Secretaria afirma que a adesão ao novo sistema de ensino é facultativa. O protocolo para avaliação da viabilidade foi desenvolvido por representantes da SEE/MG, da Sociedade Mineira de Pediatria e da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil, para que haja um retorno “seguro e gradual, para alunos, professores e funcionários, com regras de distanciamento, higienização e equipamentos de proteção”. Mas até isso ser possível, Minas Gerais continuará as aulas no sistema remoto por decreto do governo estadual.

Vanessa Portugal, representante do Sind REDE BH
00:00 / 00:53

Segundo Iarê Cooper, Doutora em Educação e professora-colaboradora da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), o aspecto mais relevante no ensino presencial para o aprendizado é a interação e a qualidade dela. Contudo, a docente pontua: “É possível sim haver interação a partir do aprendizado remoto, mas nós sabemos que, principalmente na infância e na adolescência, nós somos muito mais influenciáveis - ou influenciados - pelo que nós observamos em relação ao que ouvimos”. Para ela, o momento em que vivemos não pode ser qualificado como de Ensino à Distância ou EAD, e sim, como de ensino remoto. Isso se dá pelo fato de que quando as pessoas participam de processos educacionais pautados pelo EAD, sabem como ele será feito e a instituição que está ofertando está preparada para as possíveis dúvidas e dificuldades. Diferente disso, o ensino remoto foi uma surpresa para todos. As instituições precisaram agir rapidamente para a adaptação dos processos educacionais. 

Cooper reconhece que "há muita eficácia do EAD para o aprendizado, mas quanto ao ensino remoto, ainda é tudo muito novo para alunos, professores, coordenadores…”. Ambas as modalidades de ensino, diante da realidade nacional,  não levam em consideração diversos fatores. O acesso do aluno à internet, equipamentos apropriados para assistir às aulas ou realizar atividades, locais que oferecem maneiras confortáveis e ambientes tranquilos para os estudos são limitações práticas no contexto do ensino remoto ou à distância no Brasil. Segundo relatório disponibilizado em 2020 pela Organização Para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o país tem a pior proporção de computadores por alunos entre os 79 países avaliados. Além disso, somente 26% dos alunos possuem acesso à internet de qualidade considerada “suficiente”. Os alunos que possuem acesso à internet e aos equipamentos adequados, exibiram notas maiores no quesito de leitura, por exemplo.

No caso do modelo de Ensino Remoto Emergencial (ERE) para a educação infantil, outras questões ainda devem ser observadas. Emilene Novak, gestora da Escola Ser Criança na região metropolitana de Curitiba, afirma que é sim possível implementar esse sistema para as crianças, mas com os devidos cuidados. Pois “sabemos que, quanto menor as crianças, maiores às necessidades de interação e, num modelo remoto, essa interação entre professores e estudantes torna-se bem reduzida.” A gestora aponta que todas as orientações didático-metodológicas precisam ser bastante claras nesse sistema, para que as famílias possam contribuir no processo de aprendizado. O que traz dificuldades, considerando-se a realidade diversa e desigual do país.

Além do corpo discente e docente das instituições, o corpo técnico também enfrenta dificuldades e abandono das organizações. A assistente de Educação Infantil Marilda Neves, 43 anos, residente em Coronel Fabriciano/MG, e funcionária da rede pública municipal de ensino, contraiu o vírus na volta às aulas organizadas na escola onde atua, em fevereiro deste ano. Ela afirmou que “no papel tudo é perfeito, como em qualquer projeto”, contudo, a escola não levou em consideração o fato dos próprios funcionários utilizarem transporte coletivo lotado para se locomoverem até o trabalho. Logo após a volta das aulas, ela apresentou alguns sintomas da doença e se dirigiu até o posto de saúde, sendo diagnosticada rapidamente. A assistente precisou de ventilação mecânica e se afastou das atividades no início de março de 2021. Até então, desde o início da pandemia, a segurança sanitária para trabalhadores em escolas segue sendo uma questão pouco abordada, tanto por instituições públicas como privadas.

Ensino e aprendizagem precarizados

A qualidade do trabalho dos professores também é impactada pela falta de recursos e a alta carga horária durante a pandemia. Para além disso, a própria função docente pode ser ameaçada por certas medidas institucionais. A representante do Sindicato dos Trabalhadores de Educação da Rede Pública de Belo Horizonte/MG, Vanessa Portugal, alegou preocupação com um movimento promovido pela própria Prefeitura para tornar os professores obsoletos, fazendo com que eles assumam o posto de “monitores de plataformas”. Ela afirma que  há um processo de privatização do ensino que ocorre sutilmente e utiliza a pandemia para acelerar essa transição. Portugal afirma que “a Prefeitura está dando um salto além [...] querem comprar as plataformas de conteúdo pronto. Isso é colocar essas empresas que defendem a privatização das escolas [...] para terem controle ideológico do que será ensinado dentro das escolas, porque elas organizam o conteúdo. Além de que elas abocanham uma fatia significativa dos recursos já pequenos para a educação municipal”.

A Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de Belo Horizonte/MG, afirmou que, desde junho de 2020, os professores da rede municipal entraram em regime de teletrabalho. O objetivo desse regime era de “produzirem análises e estudos sobre as condições e possibilidades de cada estudante e suas famílias, no contexto da pandemia.” Ainda segundo a prefeitura, nesse período, os professores também começaram a produzir atividades e roteiros de estudos para os estudantes, em grande parte das situações, com disponibilização de material físico, uma vez que foram atestadas as possibilidades e impossibilidades de utilização de internet e demais recursos tecnológicos. Para o retorno presencial, a Secretaria afirma que, quando autorizado pelas instâncias responsáveis, os professores com eventuais comorbidades atestadas pela perícia médica permanecerão em regime de teletrabalho.

 

Em 2018, a Fundação de caridade global Varkey Foundation, que atua “na melhoria dos padrões de educação para crianças carentes”, publicou um relatório classificando o Brasil como o pior país do mundo em valorização de professores, entre 35 países. O ranking vale de zero a cem pontos e o Brasil marcou apenas dois deles, sendo um dos únicos que não melhorou a valorização do educador. Ademais, entre os 35 mil entrevistados, 91% deles afirmam que os docentes são pouco respeitados pelos alunos. A coordenadora da Rede Municipal de Educação de Ipatinga/MG, Márcia Rodrigues, afirma que: “A gente tem uma sensação de não valer nada. Porque as pessoas simplesmente exigem seu trabalho. Se vira, como você pode fazer para oferecer e cumprir mas faça”. Além da desvalorização constante da profissão, marcada principalmente pela tentativa de torná-la obsoleta, na pandemia esse desprestígio foi marcado pela falta de equipamentos e assistência para os docentes. 

A professora Iarê Cooper relatou dificuldades de docentes com o acesso à internet, o que impactou diretamente na transmissão das vídeo-aulas. Além disso, também relatou outras adversidades no home office: “o ambiente doméstico não oportuniza momentos em que possamos nos dedicar exclusivamente às atividades acadêmicas.”

Maiza funcionária escola .jpeg

Fonte: Arquivo pessoal

Ambiente de trabalho de Marilda

Márcia .jpeg

Fonte: Arquivo pessoal

Ambiente de estudos de Márcia

Iarê Cooper, Doutora em Psicologia da Educação e Profª. Drª.
00:00 / 00:51

O momento de tensão e instabilidade ocasionado pela pandemia de coronavírus, por si só, gera sensações de medo e ansiedade. A falta de estrutura e equipamentos para a realização do ensino remoto agrava ainda mais essas sensações. A coordenadora Márcia relatou o desenvolvimento de problemas de coluna durante o período de home office. Além dela, o professor de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Walisson Paulino, descreveu problemas na coluna e outras adversidades de ordem mental, como o desenvolvimento de insônia causada pela ansiedade. A professora Iarê Cooper também percebeu agravamentos na saúde causados pela falta de estrutura para a realização do ensino remoto e descreveu ter desenvolvido tendinite, dores nas costas e de cabeça, além de ansiedade. 

As dificuldades e problemas trazidos pela pandemia ultrapassam a comunidade escolar mais direta. A mãe Shirlei Lopes alegou sofrer ao lado do filho de 16 anos, que estuda em escola pública, enquanto via a complexidade de adaptação dele ao sistema remoto. Shirlei afirmou que seu filho possui algumas dificuldades de aprendizado que envolvem leitura, cálculo e outros aspectos e que, em muitos momentos, ela não teve como ajudá-lo por não saber como prosseguir. Shirlei alegou, também, que sua rotina se tornou cada vez mais exaustiva e desgastante em meio ao caos da quarentena: “Então, foi bem difícil para mim, tanto é que eu não conseguia dar aula para ele, porque nem eu sabia como ensiná-lo.”

Shirlei Lopes, mãe
00:00 / 00:25

Além dela, Jeane Pimentel, 51, de Ipatinga e mãe da Sofia,  6, que atualmente está no primeiro ano do Ensino Fundamental da rede privada, acredita que “toda a família deve se envolver, até mesmo para melhor adaptação da criança” e que enfrentou dificuldades para se adaptar principalmente com a logística informatizada do processo. Karini Pereira, 44, que também reside em Ipatinga e é mãe de três filhos, relatou que foi necessário criar uma agenda para manter um controle das atividades do filho. Karini também relatou uma maior dificuldade para o filho mais novo de 5 anos, Mateus, que possui necessidades especiais. Ela afirmou que o colégio privado não tinha preparação alguma para a realização do ensino remoto e precisou comprar materiais pedagógicos para auxiliar os filhos. Apesar dos novos desafios e obstáculos, a adesão de pais nas reuniões pedagógicas online aumentou consideravelmente no colégio de Mateus.

quadrinho 1 usar.png

Consequências para o futuro da educação

Todos os impactos causados pelo coronavírus na educação brasileira apenas evidenciam um abismo social já existente no país e, consequentemente, também entre os sistemas de ensino público e privado. André Martinello, chefe do Departamento de Geografia da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), afirmou que a instituição disponibiliza equipamentos como computadores para os discentes e docentes na medida do possível. Ou seja, novos equipamentos não foram adquiridos, mas os já existentes dentro da universidade foram ofertados caso precisassem ser solicitados, o que reflete um panorama divergente em relação às outras regiões do país.

Para o jornalista Rondon Marques Rosa, que também é mestre em Educação, as desigualdades tendem a crescer com qualquer desafio. Ele afirma que as habilidades e condições necessárias para o uso das redes sociais não estão igualmente disponíveis na educação brasileira, sendo que os professores e alunos de escola pública são os mais impactados pela maior dificuldade de acesso a esses recursos digitais. O jornalista observa que “precisamos repensar, principalmente, nossos meios de comunicação, para que eles tenham mais aspectos educativos disponíveis, e também repensarmos a educação para que ela tenha uma maior interação com os meios de comunicação, em especial com as redes sociais e demais mídias digitais”.

Rondon Marques, Mestre em Educação
00:00 / 00:50

A gestora Emilene Novak concorda que, dentre as possíveis sequelas da pandemia para a educação, o aumento da desigualdade  social é praticamente garantido: “Imagino que vai acirrar ainda mais! Pois, como já dito, as escolas públicas não conseguiram atingir seus estudantes na mesma proporção que as escolas particulares, devido a uma série de fatores.[...] No Brasil, a educação sempre esteve relegada a segundo plano e, como não houve uma política nacional clara de enfrentamento da pandemia pelo MEC, temo que esse acirramento leve ainda anos para ser resolvido.”

Fabrícia Maciel é professora e doutora em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista, UNESP, e atualmente reside em Portugal. Em recente pesquisa publicada pela pesquisadora junto ao Conselho Regional de Serviço Social de Minas Gerais, em 2020, uma de suas defesas é a de que tanto o modelo de EAD quanto o de ERE devem ser abordados com olhar crítico, visto que qualquer avanço tecnológico é usado no sistema capitalista para gerar mais lucro: “A pandemia expõe os limites deste sistema e explicita a necessidade de reconstruirmos novas bases de sociabilidade, inclusive referentes à lógica da educação e de seus sistemas de ensino.” 

Em entrevista, Fabrícia ainda explica que “o uso das tecnologias de comunicação e informação é uma situação irreversível nessa sociedade. E é importante que utilizemos essa revolução cibernética para ganharmos tempo”. A pesquisadora avalia que, “inevitavelmente nós vamos precisar lidar com essa situação, só que ao nosso favor. Imagino que é necessário que façamos resistência a esse modo de formação para que não seja impessoal.” Para Fabrícia, há uma realidade dada em que as tecnologias nos permitem possibilidades de ampliar o acesso à educação, mas, ao mesmo tempo, não deveriam ser uma tendência da formação daqui pra frente.

quadrinho 2.png
bottom of page