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Saúde mental, um problema pandêmico

A emergência da covid-19 evidenciou o cuidado com a mente como uma questão de saúde pública e coletiva

Equipe: Paula Furieri,

Thaynara Carolino e Yuri Simões

Um ano depois da Organização Mundial da Saúde (OMS) decretar emergência mundial em virtude da pandemia da covid-19, em março de 2020, as incertezas da população sobre o vírus permanecem no Brasil. O medo da contaminação, da transmissão aos mais próximos, a falta de vagas nos hospitais, a demora da vacinação e a não garantia de renda no fim do mês afetam a saúde mental dos brasileiros. De acordo com pesquisa feita em 11 países e publicada pela Universidade de São Paulo (Usp), em fevereiro de 2021, o Brasil lidera o ranking de casos diagnosticados por transtornos de ansiedade (63%) e depressivos (59%) durante a pandemia. Em seguida, está a Irlanda com 61% das pessoas com ansiedade e 57% com depressão, e Estados Unidos com 60% e 55%, respectivamente.

A desigualdade social e a falta de emprego são alguns dos fatores que podem ter influência em casos de transtornos mentais, segundo Matheus Neves, psicólogo da área clínica. “Isso já era uma realidade antes do novo coronavírus, a pandemia só deixou explícito o tamanho da desigualdade que existe no país e como ela está longe de acabar”, afirma o profissional. Na pesquisa Saúde mental das crianças e adolescentes em tempos de pandemia: uma revisão narrativa, publicada pela Revista Eletrônica Acervo Saúde, em novembro de 2020, pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) apontam que a experiência da quarentena por questões sanitárias atinge, principalmente, os mais vulneráveis. Crianças, adolescentes, idosos e pessoas de grupos socioeconômicos mais baixos estão mais expostos à danos psicológicos. 

Por mais que as recomendações sejam de permanecer em nossas casas, evitando o contato com os demais e não gerar aglomerações, o desafio da quarentena é encontrar alternativas para conviver em harmonia com nós mesmos diante de um contexto pandêmico e de ainda mais desigualdades sociais. Débora Aladim, professora de História e youtuber, comenta que ao longo do ano de 2020 buscou transformar sua casa em um lugar mais confortável. Através de jogos, atividades para colorir e exercícios físicos, além de acompanhamento psicológico, ela mantém uma boa saúde mental e conseguiu se sentir melhor durante o isolamento social. 

Perder a antiga rotina, os momentos de lazer, o trabalho e, em algum momento, a perda de alguém próximo para o vírus, são situações que afetam as emoções e os sentimentos das pessoas. Devido à simultaneidade de acontecimentos e a rapidez com que os fatos acontecem e são noticiados, não conseguimos ter uma pausa para refletir e, principalmente, conciliar tantas perdas, alega a psicóloga Lavínia Andrade, que atua com o público infanto juvenil e adulto. “Não está existindo o processo de luto. Temos a dificuldade de elaborar o luto pelo atual cenário, e isso gera um trauma coletivo e individual. Cada um à sua maneira”, comenta. 

Os sintomas iniciais de um desequilíbrio emocional, como insônia, sudorese, taquicardia, tremores, dor de cabeça, isolamento mais severo e pouca interação social, podem servir de alerta para buscar um suporte psicológico. 

No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS), disponibiliza serviços de atenção à saúde mental. De acordo com a Secretaria de Estado de Saúde do Mato Grosso, as atividades do setor não pararam durante a pandemia. Houve remanejamento e cada serviço pensou a melhor forma de reestruturar o Projeto Terapêutico Global. Os pacientes que necessitam de acompanhamento contínuo permaneceram sob os cuidados das equipes. Entretanto, diversos leitos disponibilizados em hospital geral e psiquiátrico foram destinados às vítimas da covid-19, reduzindo a oferta aos indivíduos com transtornos mentais. A OMS recomenda entre 0,3 a 0,5% de leitos psiquiátricos para cada mil habitantes e alerta que abaixo desses números existe a possibilidade do aumento de doenças mentais. Já o Ministério da Saúde recomenda 0,45% para cada mil habitantes no Brasil. Em 2020, Minas Gerais, por exemplo, possuía 0,1% de leitos, ou seja, 1/3 do mínimo recomendado pela OMS e menos de 1/4 dito pelo próprio Ministério da Saúde do Brasil. 

As recomendações de cuidado com a saúde mental, elaboradas por órgãos mundiais como a OMS, visam o cuidado e o bem-estar da população. O “maior experimento psicológico em nível global” que a humanidade já enfrentou acontece agora. Se não houver preocupação e acompanhamento de um profissional para lidar com as dificuldades, sequelas severas podem aparecer na saúde mental da população, que é parte fundamental da nossa saúde. A pandemia do novo coronavírus, pela primeira vez na história, assinalou o cuidado com a mente como uma questão de saúde pública global. 

Lidar com uma pandemia infecciosa de proporções continentais não é algo recente na história. Entretanto, o percurso da saúde mental como questão de saúde pública mudou muito desde o século XX até o século XXI. Em 1918, na pandemia da gripe espanhola, por exemplo, o termo saúde mental ainda não era utilizado. “A saúde mental passou a ser notada como uma questão social recentemente”, comenta a professora de História da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Anny Jackeline Torres, que atua nas áreas de história da saúde e história da medicina. 

Apesar das mudanças positivas nos tratamentos, a pandemia agrava a situação histórica relacionada ao desequilíbrio social na assistência física e psicológica, trazendo desafios para a saúde pública, explica a professora: “Cuidado é o termo que vai nos acompanhar nos próximos anos, por isso todo o sistema de saúde físico e mental é fundamental. É importante que as pessoas possam ter acesso de forma universal e gratuita.”

Ainda há muito o que investir

O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece suporte psicológico e psiquiátrico à população por meio dos serviços de acolhimento. Existem três formas de atendimento: a Atenção Primária à Saúde (APS), disponível nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) do país, a Atenção Especializada, ofertada nos Caps ou no Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM) e, por último a Atenção Hospitalar, que dispõe de leitos direcionados a casos graves de transtornos mentais, ao uso de álcool, crack e outras drogas. 

 

De acordo com a Secretaria de Saúde de Minas Gerais, há 383 Caps, e o estado também disponibiliza 365 leitos de saúde mental em hospital e 564 em hospital psiquiátrico, como estabelecidos pela Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Com a pandemia, os números de atendimentos no Caps e as internações em leitos hospitalares psiquiátricos reduziram no Estado.

A Rede de Atenção Psicossocial remanejou suas funções e atividades durante a pandemia. Para que, dessa forma, não faltasse atendimentos aos infectados pelo coronavírus e aos pacientes que já faziam acompanhamento pelo Caps. A psiquiatra Maria Clara Silveira, que atende em seu consultório na cidade de Montes Claros/MG, mas já atuou no SUS, afirma que “a demanda de saúde mental sempre foi uma das maiores nas UBS”. Entretanto, por mais que o SUS ofereça esse suporte, o sistema se encontra sobrecarregado devido à prioridade ser os contaminados pelo vírus. Hospitais psiquiátricos foram fechados e reservados para esses  pacientes.

 

Para a médica, essa redução do número de leitos dificulta os atendimentos, assim como o fechamento do Hospital Galba Velloso, em Belo Horizonte. "Entendemos que [o tratamento à] a covid-19 é prioridade agora, mas não é sem motivo que um hospital psiquiátrico foi fechado. Esse aspecto da saúde é historicamente negligenciado.", alega. Ainda segundo ela, essa redução na assistência à saúde mental é um abandono a muitas famílias que precisavam da modalidade de internação.

O SUS foi projetado para atender as enfermidades da população. Entretanto, os serviços estão sucateados e os profissionais sobrecarregados, principalmente em um contexto pandêmico como o que vivemos, o que compromete o atendimento de qualidade. De acordo com o relatório A carga dos transtornos mentais na Região das Américas, 2018, publicado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), apenas 2% dos orçamentos de saúde dos países são destinados à saúde mental. Ainda há muito o que ser investido nessa área.

A falta do abraço

Os casos de ansiedade e depressão atingem todos os tipos de pessoas. Independentemente de gênero, raça ou classe social, todos estamos suscetíveis à situações que venham a  desencadear esses tipos de problemas. Na pandemia, houve desde quem teve que se isolar totalmente, por fazer parte do grupo de risco, até os que precisaram mudar drasticamente suas rotinas de trabalho ou de estudos e se adaptar à nova realidade. Da infância à velhice, todos sofreram consequências relacionadas ao vírus. Por isso, segundo a professora Anny Torres, “vamos continuar convivendo com esses problemas por bastante tempo. Mesmo que a pandemia acabe ou a transmissão seja controlada, não resolverá os problemas impostos por essa experiência de temor, desamparo e descrença diante do futuro. Precisamos pensar em cuidar de nós.”

Segundo a psiquiatra Maria Clara Silveira, a escola traz uma estruturação para a rotina dos jovens e que estimula habilidades sociais. É nessa época da vida que começamos a entender e a descobrir as primeiras relações sociais fora do círculo familiar. O ambiente escolar é fundamental para o desenvolvimento das crianças, mas no contexto pandêmico foi cortado abruptamente.

Isadora Neves e Yasmin Nicolly possuem a mesma idade, 12 anos. Isadora mora em Pouso Alegre, no sul de Minas Gerais, e Yasmin em Sabará, na região metropolitana de Belo Horizonte, também em Minas Gerais. As duas tiveram suas aulas presenciais suspensas ainda em 2020. Para Isadora, se adaptar ao contexto de estudar remotamente foi a principal dificuldade durante a pandemia, enquanto Yasmin diz que por conta do isolamento perdeu muitos amigos, já que o contato era na escola.

Ambas tiveram seus laços de amizade e rendimentos escolares afetados por conta da dificuldade de adaptação ao ensino remoto. Isadora comenta: “mesmo com acompanhamento psicológico, me sinto estressada e afastada dos meus amigos.”

Sarah, estudante e moradora de Conselheiro Lafaiete/MG, e a professora de história e youtuber Débora, residente em Belo Horizonte, têm 23 anos. Quando a pandemia começou ainda estavam na Faculdade e tinham uma rotina espontânea e corrida. Neste contexto, mudaram o modo de trabalho, de higiene e sofrem com o medo da perda de familiares pela doença. Acompanhada de preocupações, Sarah descobriu ter um Linfoma de Hodgkin, câncer na parte do sistema imunológico. “Acredito ter descoberto o câncer por conta de toda essa freada que a pandemia nos obrigou a dar. Vivia no automático e alguns sintomas passavam despercebidos”, afirma. Para Débora, a importância de cultivar relações de amizade e familiares, mesmo à distância, é fundamental para manter o equilíbrio emocional. 

A professora alega que o SUS precisa melhorar sua divulgação para facilitar o acesso ao tratamento. “É difícil conseguir consultas, fazer o acompanhamento da forma correta, ainda mais com os cortes do governo”, comenta.

A saúde mental na terceira idade já era um problema antes mesmo da pandemia, como ressalta a psiquiatra Maria Clara Silveira, considerando o aumento na taxa de envelhecimento da população brasileira e no número de idosos vivendo em casas de repouso. Carmen da Luz, 73, e Neuza Candido, 71, contam sobre a falta que um abraço faz e como transformaram suas rotinas distantes da família. 

“Não posso abraçar. O que está sendo difícil é não poder ficar abraçando. Gosto de abraçar meus netos, meus filhos e eu não posso fazer nada.”, afirma Neuza.

Distância da família - Relatos de duas idosas sobre a pandemia
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Como alega a psicóloga Lavínia Andrade, o agravamento psíquico surge como uma resposta ao cenário de grande limitações e poucas possibilidades de regulação emocional durante a pandemia. "A impossibilidade de ação diante do imprevisível, faz você reviver a mesma cena por várias vezes", afirma. A população que tem adoecido de forma lenta e coletiva, pode e deve recorrer ao acolhimento especializado em saúde mental.

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