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O tamanho da miséria na pandemia

O retrato dos mais vulneráveis na pandemia da covid-19 escancara as desigualdades do Brasil

Equipe: Eduardo Viana,

Marcela Ayres e Rafael Santos

A pandemia da Covid-19 trouxe danos graves para a nossa sociedade. Além da superlotação de hospitais e o consequente colapso do sistema de saúde, evidente em março deste ano quando registramos um ano de pandemia, o número de mortes é crescente no Brasil. Entre março de 2020 e fevereiro de 2021, quase 1,5 milhão de pessoas morreram, sendo 325 mil mortes até então, pelo coronavírus. De acordo com a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), esse número é o maior já registrado desde o início da série histórica Estatísticas do Registro Civil em 2003.

Desde o início, os órgãos de fiscalização sanitária têm recomendado a adoção de  medidas para conter o avanço da contaminação. Entre elas estão: higienizar sempre as mãos com água e sabão ou álcool em gel, usar máscara quando sair de casa e evitar aglomerações, mantendo a convivência apenas com pessoas que moram na mesma casa.

Essas medidas incluem também a interrupção de serviços considerados não essenciais, causando uma diminuição no consumo e enfraquecimento da economia. Em maio de 2020, por exemplo, o presidente da Elo, Eduardo Chedid, disse em entrevista ao Jornal da Manhã da Jovem Pan que a queda de consumo nas compras feitas pelos usuários do cartão, chegou a 45% se comparada com o cenário pré-pandemia.

No entanto, as consequências desse cenário, para além das questões sanitárias, reverberam nos aspectos estruturais e econômicos da sociedade que já estavam fragilizados. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o número de pessoas em situação de extrema pobreza no Brasil, aumentou 140%, entre 2012 e março de 2020, chegando a quase 222 mil pessoas.

Segundo classificação do Banco Mundial, quem tem renda per capita menor que R$499 faz parte da pobreza, enquanto quem vive com renda menor que R$178 faz parte da extrema pobreza. As expectativas são que até 2030, devido à pandemia, o Brasil possa dobrar o número de pessoas nessa condição. Essa probabilidade aumenta a discussão acerca da ausência de políticas públicas para fornecer o mínimo essencial para suprir necessidades humanas básicas, como acesso a domicílio, atendimento de saúde básica e especializada, segurança pública e educação de qualidade.

Qual a cor da desigualdade?

A discussão sobre o crescimento da extrema pobreza no Brasil tem suas raízes firmadas no sistema colonial e escravista (vigente entre o século XVI e XVIII). É a partir dele que surgem os primeiros indícios de uma má distribuição de renda pelo país. As consequências desse sistema econômico são vistas pela primeira vez após a assinatura da Lei Áurea (1888) na qual, com exceção da liberdade, os direitos à educação e ao trabalho são negados aos negros, reforçados pelo incentivo à imigração de europeus e asiáticos para atuarem no mercado de trabalho brasileiro. 

Elaine Ferreira do Nascimento, coordenadora-adjunta do Escritório Técnico Regional Fiocruz do Piauí e atuante da área das Ciências Sociais, explica como esse período da história reflete nos dados atuais a respeito da desigualdade. “Se a gente for pensar o Brasil, [ele] fez coisas terríveis para além do processo da escravização. [...] Há um erro/equívoco na forma como é apresentada a abolição [...] As pessoas livres, os negros ex-escravizados foram colocados à sua própria sorte. Não tiveram acesso a trabalho, educação, moradia, alimentação, etc; mas para além disso as autoridades brasileiras fizeram coisas que inviabilizaram a cidadania do povo brasileiro. A primeira delas: queimou todo o registro histórico, tudo referente ao período escravocrata, tudo. Então você não podia reconstruir a história das pessoas, porque atrocidades tinham sido cometidas, né? Mas para além disso, as pessoas não podiam se juntar enquanto identidade familiar, enquanto pertencentes ao mesmo grupo étnico, já que elas tinham vindo de países diferentes, que dentro desses países tinham vindo de nações diferentes. [...] A segunda: O Brasil, a partir de suas autoridades, criou legislações que impediam as pessoas de construírem a sua cidadania, por exemplo, criou leis que impediam de negras e negros de acessarem a educação formal. Até os anos 50 as pessoas não podiam se matricular nas escolas públicas, porque eram negras. Tinham uma legislação que impedia, e também impedia, olha a perversidade, que as pessoas acessassem um trabalho formal. [...] Então você tem um conjunto de medidas de um Estado que é racista, que é opressor e que é genocida do povo preto né [...] Essa prática nefasta do Estado contribuiu para que a gente tivesse o adensamento dessa desigualdade, e essa desigualdade é estrutural porque o racismo é estrutural, porque o Estado criou de forma estrutural para além do período escravocrata, um sistema que impedia da população negra de viver dignamente, de acessar a sua cidadania.”, explica Elaine.

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Foto: Arquivo pessoal

Essa desigualdade é estrutural porque o racismo é estrutural

Elaine Ferreira do Nascimento

Coordenadora-adjunta do Escritório Técnico Regional Fiocruz do Piauí

Essas raízes se fortaleceram a partir da Política do Café com Leite (1898-1930), na qual foi firmado um acordo entre as oligarquias estaduais e o governo federal durante a República Velha, para que os presidentes da República fossem escolhidos entre os políticos de São Paulo e Minas Gerais, causando um acúmulo de riquezas nesses dois estados e no Rio de Janeiro, e excluindo o norte e nordeste dessa equação.

Ao surgir essa concentração, houve um êxodo do nordeste para o sudeste, principalmente para São Paulo, na esperança de melhorar a qualidade de vida e as condições financeiras. A soma de todas essas decisões político-sociais gerou um crescimento populacional exorbitante nas capitais dessa região, resultando em periferias superlotadas, má distribuição de renda, queda no Produto Interno Bruto (PIB), aumento de pessoas em situação de rua, falta de políticas públicas e um governo que ignora esses problemas. 

A aliança entre São Paulo e Minas Gerais foi rompida com Getúlio Vargas assumindo o poder em 1930. Esse período da história brasileira, conhecido como Era Vargas, foi até 1945, sendo marcado pelo processo de modernização capitalista do país. O governo Vargas foi caracterizado pela manutenção de um regime liberal e valorização do café como solução imediata da crise. Outro governo marcante para o desenvolvimento econômico do Brasil foi o de Juscelino Kubitschek (1955-1960), no qual priorizou o investimento nos setores de transportes e energia, nas indústrias de base (bens de consumo) e na substituição de importações, dando destaque para a indústria automobilística. Para JK, o Brasil só iria diminuir a desigualdade e gerar riquezas desenvolvendo a industrialização e fortalecendo a economia. Essas são as características do “Plano de Metas”, em que o país iria desenvolver 50 anos em 5.

Além disso, o Governo Militar (1964-1985) operou o chamado Milagre Econômico (1969-1973), que teve seu auge em 1973, no qual o PIB cresceu 14% e a inflação diminuiu. Porém, o que não se explica sobre esse período é que ele foi bom para os empresários e ruim para os trabalhadores, já que para tornar esse plano real os militares resolveram conter os salários, o que aumentou em grande escala a distância entre ricos e pobres.

Nossa equipe entrevistou Luiz Mateus da Silva Ferreira, Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e professor adjunto do curso de ciências econômicas na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), que nos apresentou um panorama sobre as desigualdades sociais no Brasil, com ênfase no período da Ditadura Militar. Segundo o professor, geralmente, quando há um crescimento acentuado do Produto Interno Bruto (PIB), a inflação também sobe, e nesse período isso não ocorreu, já que houve uma diminuição da inflação. 

No início do Governo Militar, quando o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) foi instaurado, durante a gestão do Presidente Castelo Branco, houve uma diminuição do teto dos salários dos trabalhadores, fazendo o salário mínimo cair de 30% a 35%, entre 1964 a 1967. Com isso, o poder de compra da população caiu e, paralelamente, o lucro dos empresários aumentou com o crescimento da economia, já que a produção era maior. Além disso, essa produção necessitava de mão de obra qualificada, que era minoria no Brasil. “Mecanismos de ajuste do salário mínimo reduziram a capacidade de compra do trabalhador e, no caso dos lucros [eles] acompanharam o crescimento econômico, enquanto a capacidade de compra do trabalhador decaiu. Então, é evidente que a desigualdade na distribuição da renda estava concentrada entre os empresários industriais e a massa de trabalhadores que ‘tava’ perdendo renda. Então, se um sobe e outro desce, aumenta essa desigualdade, mas a questão é: ela já parte de um patamar alto. Então, o período Militar como um todo, mas o período 68-73, amplia uma desigualdade que já é elevada”, explica o professor.

O período militar como um todo [...] amplia uma desigualdade que já é elevada

Luiz Mateus da Silva Ferreira

Doutor em História Econômica

A Constituição de 1988 veio com a proposta de minimizar as desigualdades sociais e assegurar direitos como a educação, saúde, trabalho, moradia, lazer e segurança. Os trabalhos da Constituinte se desenvolveram de fevereiro de 1987 a setembro de 1988 e marcaram o processo de redemocratização do país, após o regime militar. O documento foi elaborado pela Assembleia Nacional Constituinte, eleita democraticamente em 15 de novembro de 1986, e presidida por Ulysses Guimarães. Na ocasião, o presidente da República era José Sarney. 

As principais ações criadas pelo Governo Federal no contexto pós-redemocratização, como medidas diretas de combate à fome e a pobreza, são o Programa Bolsa Família e o Programa Fome Zero, ambos criados em 2003. 

O Programa Fome Zero foi criado em substituição ao Programa Comunidade Solidária, instituído pelo Decreto n. 1.366, de 12 de janeiro de 1995, durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), para o enfrentamento da fome e da miséria no país e as suas causas estruturais, que geram a exclusão social. Além disso, buscava garantir a segurança alimentar dos brasileiros em três frentes: um conjunto de políticas públicas; a construção participativa de uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; e um grande mutirão contra a fome, envolvendo as três esferas de governo (federal, estadual e municipal) e todos os ministérios.

De acordo com o site do programa, no Brasil em 2003, existiam 44 milhões de pessoas ameaçadas pela fome. O Fome Zero era composto por mais de 30 programas dedicados a causas imediatas e subjacentes da fome, implementados com o apoio do Governo Federal. O que se sabe atualmente é que ele foi abandonado e reduzido como um dos programas que fazem parte do Bolsa Família, criado ainda no primeiro ano de mandato do ex-presidente Lula (2003-2006). O professor Luiz Mateus explica o motivo desse abandono: “[...] a operacionalização do Programa enquanto política de governo não funcionou. O Programa Bolsa Família incorporou os objetivos do Fome Zero, assim como o Bolsa Família incorporou outros programas que foram criados na década de 90, como o Auxílio Gás e o Bolsa Escola [...] Então, o Bolsa Família tomou esse objetivo de erradicar a fome e reduzir a miséria no Brasil.” Ainda de acordo com o professor, o Governo Federal não extinguiu o Fome Zero, e sim o setor que dava sustentação ao objetivo de erradicação da fome, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

O Programa Bolsa Família incorporou os objetivos do Fome Zero

Luiz Mateus da Silva Ferreira

Doutor em História Econômica

O Bolsa Família unificou os programas de transferência de renda que existiam até então, e beneficiou famílias que tinham renda de até R$100 per capita (valor alterado ao longo dos anos seguindo os índices da inflação). O programa auxilia famílias em situação de vulnerabilidade, desse modo as que estiverem em situação de extrema pobreza podem ingressar sem nenhuma condicionante. Enquanto isso, as consideradas pobres só podem receber o benefício caso tenham filhos com idade abaixo dos 17 anos. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2020, o benefício concedido às famílias pobres é de R$89 e às extremamente pobres é de até R$205, variando de acordo com a quantidade de filhos. Segundo dados do Visualizador de Dados Sociais (VIS Data), atualmente 9,7 milhões de mulheres entre 18 e 39 anos recebem o benefício.

O Programa também propiciou acesso à educação e saúde de qualidade pelos beneficiários, monitorando a frequência e rendimento dos alunos nas escolas. Porém, é importante lembrar que apesar de o Bolsa Família ter reduzido os índices de pobreza em 15% e extrema pobreza em 25%, segundo o Ipea, não é possível afirmar que o programa tenha reduzido a desigualdade no país, uma vez que o Brasil permaneceu entre os mais desiguais do mundo, ocupando a 9ª posição no ranking da Pesquisa Desigualdade Mundial 2018

André Mourthé de Oliveira, doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor adjunto do curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Ouro Preto, nos explica o que significa esse fato. “Nós temos aqui duas coisas que são importantes de dizer: a nossa desigualdade se reduziu bastante quando a gente discute a questão dos rendimentos decorrentes do trabalho, tá? Então o Índice de Gini, por exemplo, que discute exatamente esses rendimentos decorrentes do trabalho, ele caiu. Quando o Índice de Gini cai, é uma coisa boa. [...] Ele é uma caixinha que você tem a população no eixo horizontal e a renda no eixo vertical. Ele é 1 quando uma pessoa só tem a renda toda da sociedade, entendeu? E ele é 0 [...] quando todas as pessoas ganham a mesma coisa. Aí ninguém tem diferença nenhuma em relação a ninguém, entendeu? Então assim, o nosso já chegou a ser assim 0,60 e tantos né, no Regime Militar por exemplo, que foi o auge da nossa desigualdade. E esse era o índice mais alto do mundo, então é uma coisa apavorante digamos assim. E ele agora veio caindo, chegou a um pouco menos de 0,5 e agora ele voltou a crescer. Agora, nós temos também a desigualdade que se vincula à rendas também derivadas do não trabalho, então o juros de aplicações financeiras, aluguéis e outros rendimentos derivados do capital e do controle desse capital, né? Lucros de dividendos e por aí vai. Quando a gente coloca essa outra questão dos outros ganhos do capital, nós temos uma realidade extremamente perversa ainda no contexto brasileiro [...]” André fala ainda sobre os ativos muito concentrados na nossa sociedade em uma pequena parcela da população, que acentuam ainda mais essa distância financeira.

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Foto: Arquivo pessoal

Nós temos uma realidade extremamente perversa ainda no contexto brasileiro

André Mourthé de Oliveira

Doutor em Desenvolvimento Econômico

Além disso, de acordo com uma nota técnica do Ipea, o número de pessoas em situação de rua no Brasil cresceu 140%, entre 2012 e março de 2020, chegando a quase 222 mil pessoas. E no contexto da pandemia, essa situação ficou mais séria, já que entre agosto de 2020 e janeiro deste ano, o índice de pessoas em extrema pobreza cresceu 8,3%, atingindo 12,8% da população, segundo dados do Ipea.

Dados invisíveis: Quem são e onde vivem?

Além da crise sanitária, a pandemia do Coronavírus reforçou o cenário de crise econômica que vinha se desenhando no Brasil, resultando em impacto mais forte nas famílias socialmente vulneráveis. De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais, publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em novembro de 2020, no Brasil, mais de 50 milhões de pessoas se encontram em situação de pobreza e mais de 13 milhões em extrema pobreza. Esses números representam, aproximadamente, quase um quarto da população total do país, que é de, aproximadamente, 212 milhões de habitantes. Em comparação, esse número é maior que a população atual do estado de São Paulo, que é de 42 milhões de habitantes.


Os resultados da pesquisa revelam que atualmente 75% das 13,5 milhões de pessoas que estão em situação de extrema pobreza no Brasil são negras, isso representa, uma média de três a cada quatro pessoas deste grupo. Ainda de acordo com a mesma pesquisa, a porcentagem se repete na  população pobre, o que totaliza 37,8 milhões de negros. Os dados se tornam ainda mais alarmantes quando seccionados por gênero. Esse fato reforça as falas de Elaine Nascimento, que nos explicou anteriormente como o racismo estrutural que teve suas raízes firmadas desde a abolição, impactou na desigualdade e na descriminação de pessoas negras em vários âmbitos da sociedade.

Outro fator que coopera para o crescimento das desigualdades sociais e que deve ser levado em consideração, diz respeito à moradia da população. Afinal, sem renda não existe infraestrutura adequada para manutenção de um lar. Segundo uma nota técnica divulgada em 2020, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), estima-se que cerca de 222 mil pessoas estão, atualmente, vivendo em situação de rua. De acordo com o VIS Data 2021, 147 mil famílias em situação de rua estão inscritas no CadÚnico (ferramenta do Governo Federal que reúne informações das famílias brasileiras em situação de pobreza ou pobreza extrema no país).

Fonte: IBGE - Síntese de Indicadores Sociais 2020.

Fonte: Vis DATA, 2021.

De acordo com o IBGE e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD COVID-19), a taxa de desocupação (pessoas que não estavam, no momento da pesquisa, exercendo algum tipo de atividade remunerada) no Brasil, em 2020, atingiu 14,4% da população, o que representa cerca de 30 milhões de brasileiros.

Fonte: PNAD COVID-19 - Indicadores de Trabalho 2020.

Se voltarmos nossa atenção para os moradores da periferia no Brasil, encontraremos dados ainda mais preocupantes. Segundo o DATA Favela 2020, a taxa de desemprego na favela é de 20 para cada nove pessoas desempregadas que residem nas áreas centrais das grandes cidades, enquanto a taxa de pessoas empregadas é o inverso. Considerando que, de acordo com a pesquisa, 13,6 milhões de pessoas vivem em favelas no Brasil, 6,3 milhões destes moradores, desconsiderando os estudantes, estão desempregados. Ou seja, 20% dos desempregados do Brasil são moradores da periferia. De acordo com os dados da PNAD Covid-19, 16% dos desempregados no Brasil são mulheres, o que representa 4,8 milhões do total de 30 milhões de desempregados. Enquanto isso, 9,6 milhões são negros e pardos, o que totaliza 32% dos desempregados no Brasil. Logo, o desemprego afeta mais essa parcela da população que vive em locais periféricos. 

Para tentar amenizar os impactos econômicos da pandemia na renda das famílias em situação de vulnerabilidade, o Governo Federal criou a Lei Federal 13.982/2020, publicada em abril de 2020, que possibilitou a implementação do Auxílio Emergencial, que se iniciou no mesmo mês. A proposta do programa é garantir uma seguridade econômica aos trabalhadores informais, autônomos, microempreendedores individuais (MEI’s) e pessoas de baixa renda (pessoas que possuem renda per capita abaixo de 1,5 salário mínimo) durante o período pandêmico. Inicialmente, o Auxílio Emergencial foi pago em cinco parcelas de R$600 e R$1200 para as mães solo que eram chefes de família. Em agosto de 2020, com o fim das cinco primeiras parcelas e após pressão da Câmara dos Deputados e do Senado, o Governo Federal prorrogou o benefício com valor reduzido pela metade (R$300), por mais quatro parcelas, que foram pagas entre setembro e dezembro do mesmo ano. 

Ao todo, o Auxílio Emergencial cobriu 53,9 milhões de brasileiros, cerca de 25% da população. Para se inscrever no programa existiam duas alternativas: na primeira, pessoas cadastradas no CadÚnico ou no Bolsa Família estavam automaticamente aprovadas; na segunda, as pessoas realizavam uma inscrição no aplicativo do programa, onde seus dados eram analisados sujeitos à aprovação, mas devido à demora e instabilidade, foi motivo de duras críticas pelo público. 

O programa foi encerrado em dezembro de 2020, em depoimento à imprensa na época, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que do ponto de vista do governo não existe a possibilidade de prorrogação do auxílio emergencial. Contudo, após renovação dos presidentes do Senado e Câmara dos Deputados, foram protocolados, pelo menos, 14 projetos defendendo a volta do benefício. Por fim, após o crescimento dos casos de Covid no país, o Governo Federal aprovou, mais uma rodada de pagamentos, dessa vez em três valores distintos, separados pelos seguintes critérios de composição de famílias: um único membro, receberão o valor de R$150; dois ou mais membros, RS250; e famílias nas quais as mulheres são as únicas provedoras do lar receberão R$375.

Conversamos com Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, jornalista graduado pela Universidade de São Paulo (USP) e escritor, além de grande representante de lutas sociais sobre como o fim do Auxílio Emergencial pode afetar a desigualdade social no Brasil. “Sim, sem o auxílio, a pobreza e a desigualdade vão se ampliar. O Auxílio Emergencial começou com valores de R$600 a R$1.200. Passou de R$300 a R$600 por três meses. E, agora, será de R$159, R$250 e R$375 até junho. Ou seja, perdeu valor. Enquanto isso, o aumento dos alimentos chegou a 19,42% nos últimos 12 meses e a inflação disparou! E o menor custo da cesta básica é de R$445,90 em Aracaju e, o maior, de R$639,81 em Florianópolis. Hoje, mais de um terço dos lares brasileiros sobrevivem em insegurança alimentar. A fome está de volta!”, explica Frei Betto, integrante da equipe que coordenava o Programa Fome Zero na época do lançamento.

A fome está de volta

Frei Betto

Jornalista e escritor

O diagnóstico revelado pelo Frei Betto é reflexo dos números registrados no Data Favela: cerca de sete, em cada dez famílias periféricas, no Brasil, solicitaram o auxílio emergencial, ou seja, pouco mais de 7 milhões de pessoas. Porém, 41% das famílias que solicitaram tiveram seu pedido negado. E, de acordo com a PNAD Covid, aproximadamente 3 milhões de domicílios viveram apenas com os rendimentos do benefício durante o último ano.

Fonte: Boletim Regional do Banco Central - Evolução do Índice de Atividade Econômica Regional em 2020.

Fonte: Famílias beneficiárias da folha de pagamento do Bolsa Família, do Auxílio Emergencial e do Auxílio Emergencial do público do Bolsa Família - Vis Data, 2021.

Os dados acima servem para apresentar e exemplificar as medidas que são tomadas pelo governo, seus gargalos, e como não englobam uma população vítima de um sistema falho que não proporciona acesso à vida digna. Falar em “Estado de bem-estar social”, no Brasil, é falar sobre um Estado que se preocupa com a privatização da máquina pública, que corta investimentos em áreas importantes como, por exemplo, no orçamento para o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que estava previsto para acontecer em 2021.


Com um ano de atraso, devido à crise sanitária causada pelo Covid-19, o orçamento previsto para o Censo que seria realizado em 2021 era de R$2 bilhões. Entretanto, o parecer final do senador Márcio Bittar (MDB), relator do orçamento, cortou R$1,7 bilhão da verba que seria destinada para a pesquisa. Com isso, o IBGE declarou que seria inviável realizar seus trabalhos com tão pouco. Além de que, a área de Ciência e Tecnologia também foi afetada, sendo o segundo maior corte do orçamento (28,7% em relação à 2020) e da Educação (27% em relação ao último ano).

Brasil, um país para poucos

Durante esse período com tantos retrocessos, em meio ao que pode ser a maior crise sanitária do mundo, superando a Gripe Espanhola (1918 - 1920), que registrou mais de 35 mil mortos, enquanto a crise do coronavírus já totaliza cerca de 325 mil mortes no país, ainda existem Organizações Não Governamentais (ONG’s) e ações sociais desenvolvidas pela sociedade civil. O objetivo é mobilizar recursos para dar assistência a essas pessoas em situação de rua, como é o caso da ação social S.O.S Moradores de Rua, em São Paulo. Nossa equipe de reportagem conversou com um dos coordenadores do projeto, Cláudio Florêncio da Silva, 57, e conversou também com uma mulher em situação de rua, no intuito de entender um pouco mais a história de quem trabalha em prol dessas pessoas e de quem vive essa situação, agravada pelo coronavírus.


A partir desse cenário, há uma exigência de que haja mais cuidados, antes de sair nas ruas da cidade paulistana, Cláudio se veste com todos os aparatos para garantir uma proteção necessária para não se contaminar ou disseminar o vírus que hoje assombra a humanidade. Máscara, luvas, touca e um colete de tecido sob as roupas compõem o vestuário dos integrantes do grupo voluntário que sai às ruas na linha de frente contra a fome, o esquecimento e a invisibilidade social. O grupo de nome S.O.S Moradores de Rua atua na cidade de São Paulo desde fevereiro de 2008, e surgiu com o propósito de acolher pessoas em situação de rua. Cláudio Florêncio, diretor da ação social, em conjunto de um grupo de amigos, atua nas ruas da capital todos os fins de semana, levando alimento, atenção e esperança para as pessoas marginalizadas no convívio social e esquecidas pelas autoridades.

A situação de vulnerabilidade e invisibilidade social em que vivem é marcada pela pobreza extrema, vínculos familiares fragilizados ou rompidos e a inexistência de moradia convencional regular, acesso à água potável, saúde e educação. As pessoas em situação de rua utilizam espaços públicos e áreas abandonadas como espaço de moradia e sustento, locais onde são diariamente vítimas de preconceito, exclusão e diversos tipos de violência. O espaço público torna-se um ambiente de competição, em que é necessário usar estratégias para conseguir permanecer vivo e alcançar o reconhecimento social.


Diante desse contexto já um tanto quanto complexo, a atual condição de emergência sanitária que enfrenta todo o planeta exige ainda mais cuidados com aqueles que sequer têm um lar para morar. Apesar disso, o dirigente da ONG conta que são poucas, ou quase que inexistentes, as políticas públicas assistenciais para informar e distribuir materiais de higiene essenciais para o combate ao novo coronavírus. Por essa razão, a S.O.S Moradores de Rua, através de doações, passou a entregar o álcool gel, sabonetes e máscaras, além de incentivar o uso desses itens e de informar sobre os cuidados mínimos contra a doença. “Foi principalmente, no início, um desafio para toda a equipe, pois era um cenário assustador, com tudo fechado, todos com muito medo”, conta Cláudio sobre o contexto da pandemia. As pessoas em situação de rua, que sobrevivem com pouco, sequer conseguiam recolher as latinhas nos restaurantes para vender, pois todos os estabelecimentos estavam de portas fechadas. Assim, as pessoas em situação de rua também não recebiam as doações de alimento, o que agravou toda a situação rapidamente, lembra o voluntário da ação social.

O aprofundamento das desigualdades sociais e econômicas no Brasil expõe ainda mais a dificuldade da luta contra o esquecimento e pela sobrevivência das pessoas em situação de rua. Pessoas que contam muito com a ajuda de voluntários para permanecerem vivos. Cláudio conta que durante a pandemia percebeu um aumento significativo de pessoas em situação de rua, e tantos outros, que têm casa, pedindo doações de alimentos e produtos de higiene pessoal, em virtude do aumento do desemprego. Por tal condição, ele pede para que as pessoas nessa condição de vulnerabilidade extrema recebam mais atenção e, principalmente, que sejam criadas políticas públicas de assistencialismo, emprego e saúde, para que essas pessoas sejam sujeitos de suas histórias, consigam recuperar a autonomia e reforçar suas identidades no lugar onde vivem. “As pessoas nas ruas precisam de ajuda, precisam de mais atenção dos governantes, precisam de mais assistência da população. Se antes já faltava para eles, imagina agora”, conta o diretor do S.O.S Moradores de Rua.

As pessoas nas ruas precisam de ajuda

Cláudio Florêncio

Coordenador do projeto S.O.S Moradores de Rua

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Foto: Arquivo pessoal

Em Governador Valadares, cidade localizada na região Leste de Minas Gerais, no Vale do Rio Doce,  são sete da manhã de domingo, e Maria Lúcia, 57,  já se levantou, arrumou a cama, varreu a calçada, e se prepara para tomar o café. É mais um dia na luta contra o esquecimento e pela sobrevivência de uma senhora que não tem uma casa para morar. O espaço onde vive é a marquise de uma loja, na esquina de uma das ruas mais movimentadas da cidade. As dificuldades de uma rotina, que já era muito difícil, foram agravadas pela pandemia do coronavírus.


A falta de informação diante da doença que hoje mais mata pessoas no país é um fator muito grave e determinante entre os que sobrevivem e os que perdem a vida para a Covid-19. Maria Lúcia , conta que não recebeu informações da prefeitura da cidade sobre a doença, mas soube por uma amiga que tem um salão de beleza ao lado do lugar onde vive. “Foi ela que me ensinou, Maria Lúcia você tem que usar isso (a máscara)”, relata. Com a ajuda da cabeleireira que fornece alimento e doações em dinheiro, e com o espaço de uma loja de internet ao lado, que permite que ela faça sua higiene pessoal no banheiro do estabelecimento, ela luta para sobreviver.

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Foto: Rafael Santos

Foi ela que me ensinou [...] 'você tem

que usar a máscara

Maria Lúcia

Moradora de rua

Quando questionada sobre o auxílio emergencial, pago em determinado momento pelo Governo Federal para pessoas em situação de vulnerabilidade econômica no agravamento da pandemia, Maria diz que não recebeu ajuda financeira do Estado. “Eu nem tentei, porque tem que ter uma pessoa sadia comigo me acompanhando, porque mané esquecido é a pior coisa que tem.” Maria Lúcia, além de lutar contra a invisibilidade social, luta contra a perda de memória. Ela não tem parentes próximos, não consegue ajuda de tutores para o  seu acompanhamento e assistência no processo de receber o benefício social. Ela, como tantos outros brasileiros, permanece sem receber ajuda financeira do Estado na pior crise sanitária já enfrentada pelo mundo.


Maria sente falta do contato humano, sente medo pelas pessoas maldosas que roubam suas coisas, sonha com uma casa para morar. Essa difícil condição em que vive é a realidade de muitas pessoas em situação de rua no país. Mas, mesmo excluídos do convívio social, têm a esperança de serem vistos nos espaços urbanos e de terem seus direitos reconhecidos socialmente. Eles sempre tiveram urgência por serem enxergados e assistidos, pois lutam contra a pobreza, mas hoje essa necessidade é ainda maior, pois também lutam contra o coronavírus, que por falta de informações, ainda não conseguem dimensionar o tamanho da ameaça à sua própria existência.

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