Foto: Alisson Cruz
Com a implantação da Lei de Cotas em 2012, a inclusão de novos grupos mudou a cara do ensino superior no Brasil. A revisão da Lei, prevista para 2022, reacende antigos debates e opiniões
Alisson Cruz, André Neves, Ernesto Neto e Isabella Filho
Junho 2022
Desde quando foi sancionada em 29 de agosto de 2012, a Lei nº 12.711, conhecida como Lei de Cotas, assegura o ingresso de pessoas de escolas públicas, estudantes negros, pardos, indígenas e alunos de baixa renda nas universidades públicas brasileiras. Posteriormente, foi acrescentada a Lei nº 13.409, de 28 de dezembro de 2016, que inclui a reserva de vagas para pessoas com deficiência – PCDs. Após 10 anos da implantação da Lei, está prevista uma revisão, conforme previsão legal presente na própria norma. O objetivo é analisar os impactos nas instituições de ensino superior, permitindo observar a efetividade desta ação afirmativa. A reavaliação da Lei reativou debates sobre a política de reserva de vagas e sobre a duração da política pública.
A inclusão do sistema de cotas nas universidades brasileiras não foi a primeira política pública de ações afirmativas no mundo; a ação já existia em outros países. O modelo vigorava na Índia, a partir de 1930, porém foi regulamentado no país em 1949, incluindo a obrigatoriedade em cargos públicos e universidades. Além disso, "leis de cotas" também estavam presentes em outros países como na Malásia (1968), Estados Unidos (1969), Austrália (1989) e Colômbia (final da década de 1990).
Cinco universidades foram pioneiras na implantação do sistema de cotas no Brasil, antes da promulgação da Lei. A Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs), em 2003, foi a primeira a implementar a reserva de 50% das vagas para pessoas de baixa renda. Na sequência, a Universidade Estadual Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), no mesmo ano, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) em 2004, a Universidade de Brasília (UnB) em 2004 e a Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 2005, destinavam vagas para candidatos que possuíam renda inferior a 1,5 salário mínimo e para estudantes negros - pretos e pardos.
No Brasil, a política de cotas foi firmada como ferramenta de inclusão de pessoas de baixa renda no ensino superior, além de uma possibilidade de amenizar desigualdades sociais, educacionais e econômicas. Para Gianne Reis, Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), "o Brasil é um país extremamente desigual em todos os âmbitos. Quando se fala em sistema de cotas, estamos falando de uma política para enfrentar uma desigualdade histórica. A política de cotas é uma reparação histórica, é um processo de desenvolvimento”.
DEZ ANOS DE RESULTADOS
Em 2017, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) publicou um estudo destacando que houve um crescimento de 39% na inclusão de estudantes negros, pardos e indígenas oriundos de escolas públicas nas instituições públicas de ensino entre 2011 e 2016. Para a realização desta pesquisa, o Inep consultou 104 instituições federais - institutos e universidades. Os números vão ao encontro da reflexão da pesquisadora Gianne Reis, que explica a existência de um avanço significativo nas políticas de cotas. Hoje, afirma, "nós temos a entrada e a permanência de cotistas. Ainda são necessárias outras ações afirmativas educacionais para que os alunos possam adentrar nas universidades e concluir os seus estudos”.
Com o sistema de cotas, o número total de alunos pretos, pardos e indígenas, em 2020, soma mais de 3 milhões, segundo informações da Sinopse Estatísticas da Educação Superior do Inep. Mesmo com políticas públicas para o ingresso de minorias em instituições de ensino superior, o número de estudantes declarados brancos ainda é proporcionalmente superior.
Distribuição de vagas
A Lei nº 12.711, promulgada durante o governo da ex-presidenta Dilma Rousseff, definiu que todas as instituições federais de ensino superior e técnico deveriam reservar, no mínimo, 50% das vagas de cada curso aos estudantes de escolas públicas. Desse total, metade das vagas deverá ser preenchida por vestibulandos com renda familiar mensal igual ou menor a 1,5 salário mínimo por pessoa. A outra metade das vagas é reservada para alunos com renda superior a 1,5 salário mínimo. Nas duas categorias de renda existem vagas destinadas para candidatos pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência (PcD).
A reserva de vagas da cota racial e deficiência é feita de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que indicam a proporção de negros, pardos, indígenas e PcDs em cada estado brasileiro, de acordo com a localização da universidade. Dessa forma, um estado com maior número de indígenas terá mais vagas para pessoas desse grupo.
Os candidatos cotistas são avaliados pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), utilizando o sistema de cotas via Sistema de Seleção Unificada (Sisu), ou por meio do Programa Universidade Para Todos (Prouni). Os candidatos que escolhem concorrer nos processos seletivos utilizando a renda familiar devem comprovar por documento a situação financeira. Já as pessoas que utilizam cota racial têm que preencher uma autodeclaração. Algumas universidades criaram comissões para avaliar a autodeclaração de candidatos pretos, pardos e indígenas, para evitar fraudes.
A implantação da Lei definiu que as instituições de ensino deveriam adotar o sistema de cotas de forma progressiva, até que fosse totalmente implementado em 2016 para a avaliação dos resultados. No entanto, em 2016, o artigo foi modificado, e a Lei passou a estabelecer somente que há necessidade de revisão em dez anos, sem determinar a qual instância caberá fazer a revisão.
Ações afirmativas nas universidades
As ações afirmativas tendem a contribuir para a inserção no ensino superior e técnico, mas também no mercado de trabalho, por meio de concursos e processos seletivos. Para Wescley Silva, Doutor em Administração e professor do curso de Administração da Universidade Federal de Viçosa (UFV), “é fundamental além de garantir a entrada dos cotistas nas universidades, estabelecer a permanência dessa parcela da população nesses espaços”.
É a partir da permanência e formação destes profissionais que acontece a democratização do ensino superior e dos cargos públicos, já que pessoas com vulnerabilidade social passam a ter a oportunidade de habitar esse espaço. A implementação da Lei de Cotas é uma ferramenta de extrema importância para amenizar as desigualdades resultantes de um longo marco histórico.
Este sistema de ações afirmativas promove mais igualdade aos grupos sociais marginalizados pela sociedade. Para Bárbara Cássia Fagundes, 24, aluna do curso de Fisioterapia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), “a Lei de Cotas é muito importante como uma reparação histórica, a partir de tudo que aconteceu em nosso país em decorrência da escravidão. Ela é relevante para dar um acesso, porque sabemos que o Brasil é muito racista, e que os negros ainda sofrem muito com isso. É uma maneira incluir essas pessoas que, infelizmente, estão à margem da educação e da saúde”.
Desde as primeiras ações afirmativas, que somam mais de 15 anos, o percentual de pretos e pardos que concluíram a graduação cresceu de 2,2%, em 2000, para 9,3%, em 2017, conforme dados do IBGE. Além disso, o Censo do Ensino Superior elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), divulgado em 2020, evidencia o aumento do número de matrículas de estudantes negros em cursos de graduação. Em 2011, do total de 8 milhões de matrículas, 11% foram feitas por alunos pretos ou pardos. Já em 2016, ano do último Censo estudantil, o percentual de negros matriculados subiu para 30%. “É inegável que o perfil do aluno se modificou ao longo dos anos, aquele perfil de pessoas de classe média não é mais um perfil único. Hoje vemos nitidamente inúmeros estudantes que vêm de famílias economicamente desfavorecidas, então modificou-se muito o panorama nas universidades”, reflete o professor Wescley Silva.
Segundo informações do Inep, de 2012 a 2020, o ingresso total de alunos pertencentes a essas etnias aumentou em mais de 250%. Já o número de alunos PcD’s, nas Instituições de Ensino Superior, obteve um aumento de 105% no período de 8 anos.
Após 10 anos da sua promulgação e em meio a muitos problemas no contexto educacional do país, a Lei de Cotas é vista como uma importante ferramenta para o ingresso de estudantes e a principal política de ingressos de pessoas de baixa renda em ambientes acadêmicos mais elitizados. O pesquisador da Diretoria de Estudos Educacionais do Inep, Adriano Senkevics, aponta que a política de cotas responde por mais da metade da inclusão de alunos da escola pública no ensino superior. Sobretudo em cursos como: medicina, odontologia, economia e outros.
Apesar dos números apontarem um aumento significativo de estudantes de escolas públicas, de baixa renda, pretos, pardos e indígenas e PcDs no ensino superior, a Lei de Cotas ainda é amplamente debatida por grupos a favor e contra a política afirmativa no Congresso. “É necessário realizar um debate transparente e qualificado informado pelas evidências da Lei de Cotas. Qualquer iniciativa pró ou contra a legislação significa uma visão política do parlamentar. Se for para fazer uma revisão ruim, é melhor que não faça", defende Senkevics.
A Lei não prevê prazo para a sua extinção. Sem a revisão, a política de cotas continuará valendo e só pode ser alterada ou revogada por meio da promulgação de uma nova lei. Inicialmente, ao ser sancionada em 2012, a norma previa que caberia ao Executivo a iniciativa de revisão. Em quase dez anos, o Colegiado responsável só se reuniu três vezes e a Lei segue sem uma definição no Congresso.