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Colagem de fotografias sobrepostas em uma parede. O recorte possui mais de 10 fotos que mostram familiares, amigos e espaços importantes de Ana Cláudia, uma das filhas do Bolsa Família. No centro da imagem, há uma frase com fundo preto e letras brancas escrito “Let's never stops making memories together.”

IMPACTO PELAS GERAÇÕES

Em 20 anos, o Bolsa Família incluiu filhos de beneficiários em ambientes antes não acessados por parentes

Aléxia Romualdo, Levy Eduardo, Luisa Baraldo e Nikolle Gandra

Março de 2024

Foto: Nikolle Gandra

Com duas décadas de existência, o Programa Bolsa Família (PBF) tem deixado um impacto duradouro nas vidas de milhões de brasileiros, os chamados “Filhos do Bolsa Família”. O termo simboliza uma geração de indivíduos que teve sua infância ou adolescência perpassadas pelos efeitos e benefícios do Programa, usufruindo de forma regular de seus auxílios para conseguir acesso a assistência básica, como alimentação, educação e saúde.

Esse é o caso de Dener Miranda, 31; Bruna Patti, 29; Ana Claúdia Fernandes, 20; Leonardo Nogueira, 32; e Cinara Simonino, 28. Eles são de regiões diferentes do Brasil, com diferentes idades, profissões e sonhos, mas se assemelham por terem sido usuários do benefício pela maior parte das suas vidas.

Só no ano de 2023, o Bolsa Família atendeu 21,14 milhões de famílias para a diminuição do ciclo de pobreza e a inclusão social. André Mourthé, professor de economia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) salienta a importância da existência desses programas: “a estrutura socioeconômica, quando ela se organiza numa sociedade como a nossa, tem um conjunto de pessoas que não conseguem obter o mínimo necessário para uma sobrevivência digna e adequada”.

O termo “Filhos do Bolsa” chegou a ser utilizado pelo presidente Lula, e surgiu  após a pesquisa do Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS) inferir que depois de 20 anos de funcionamento, 64% desses jovens conseguiram sair do CadÚnico, não sendo mais beneficiados. Dener e Leonardo são parte dessa estatística, sendo uns dos primeiros beneficiados do PBF, e hoje, ao saírem, podem refletir sobre como o Programa foi essencial para a diminuição da sua dependência econômica.

Ana Cláudia é universitária. Para ela, o uso do benefício foi essencial em sua entrada e permanência na universidade. Cinara, outra filha do Bolsa, também vê o PBF como um fator importante para a sua trajetória acadêmica, jornada que não é comum no seu núcleo familiar. Essa é a mesma realidade de Bruna, que após uma infância com percalços econômicos, hoje consegue enxergar a possibilidade de uma vida mais tranquila. Cinara, Bruna, Leonardo e Dener fazem parte dos 4,6% dos beneficiários com nível superior completo, segundo o IMDS.

O entendimento da história dessas pessoas, para o professor André, é essencial. O especialista explica que ainda mais importante que discutir quais seriam as necessidades básicas da população, é necessário entender quem são essas pessoas que estão situadas na extrema pobreza, para entender que cada sociedade tem carências específicas: “A primeira questão importante é definir qual que é esse mínimo, a gente sabe que cada sociedade tem o seu mínimo”.

DENER 

 

O encontro com Dener, 31, ocorre no intervalo de uma entrevista de trabalho. Hoje em dia, ele trabalha de casa, como engenheiro de software para uma empresa em Los Angeles. Sua irmã, Vitória, estuda Medicina pelo FIES, em uma universidade em São Paulo.

 

Essa realidade foi muito diferente da vivenciada pela sua mãe, ou pelo seus avós. A família se mudou para São Paulo (SP) nos anos 1980, junto com uma intensa taxa de migrantes nordestinos para o Sudeste. Lá, sua mãe trabalhava como empregada doméstica e seu pai como motoboy, com muita vontade de retornar ao Nordeste.

 

Três anos após seu nascimento, eles voltaram para o Piauí. Nessa época, sua mãe era cabeleireira e seu pai era mecânico de moto. Os dois não tinham renda fixa e o benefício os ajudou a terem uma estabilidade. “Minha mãe cortava cabelo a R$ 2. Então, era muito instável. Se ela ficasse doente, não tinha esse dinheiro. Assim, [com o Bolsa Família] você tem a certeza daquele dinheiro, por menor que fosse o valor. Só pelo fato de ser um valor estável, já permitiu algum tipo de planejamento”, conta.

No centro da imagem, Dener, um homem branco de cabelo curto, barba e óculos, está de terno preto e com uma medalha em volta do pescoço enquanto carrega uma placa. Ao lado dele, há duas pessoas: do lado direito da imagem, está uma mulher usando uma blusa preta e uma calça laranja, à esquerda, está um homem todo vestido de branco. Todos estão sorridentes.

Treze anos após sua família receber a primeira parcela do Bolsa Família, Dener Miranda se formou em uma universidade pública, bolsista pelo Ciências Sem Fronteiras. Foto: Arquivo pessoal

A família começou a receber o benefício em 2003, no ano da criação do Programa, e continuou até 2006. Quem administrava esse dinheiro era Luzinete, ou ‘Lu’, mãe de Dener. Ela conta que usava o valor para despesas básicas, como a alimentação e as contas de água e luz. A possibilidade de fazer um planejamento semanal melhorou muito a vida da família, pois com a instabilidade financeira dos empregos de seus pais, tornou-se possível ter uma segurança.

Para Lu, o PBF foi essencial para ajudar os seus filhos na escola: “Tinha época que não dava para eles levarem lanche, né? A criança sempre vai triste, mas depois, indo com os lanchinhos, elas iam mais felizes.”

Dener conta que o estudo é algo novo para sua família. Sua mãe foi apenas até a quarta série, e seu pai não chegou a concluir o Ensino Médio. Na geração anterior, dos seus avós, também não era muito diferente. Eles eram analfabetos; e quem não era ia para escola escondido dos pais. “É bem curioso essa mudança de realidade. Porque não apenas eu fui da primeira geração a estudar, a fazer universidade, como também fui da primeira geração a estudar fora do Brasil. Então, a transformação dentro de três gerações é gigantesca”, reflete.

As coisas mudaram também em um contexto mais amplo. Para Dener, a região do Piauí viveu uma grande melhora econômica na primeira década dos anos 2000. Em 2007, quando a assistente social chegou para renovarem o benefício, sua mãe informou que não precisariam mais. Essa melhora de vida se consolidou também quando seu pai se tornou professor de mecânica de motos no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), criado no primeiro governo Dilma, já na década seguinte.

Em 2010, Dener iniciou o ensino superior em Ciência da Computação na Universidade Federal do Ceará (UFC).  Após ter estudado toda a sua vida em escolas públicas, ele conta que optou pelo curso após ter realizado um Técnico em Informática no Instituto Federal do Piauí (IFPI). Para conseguir se manter na universidade, o entrevistado era bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico  (CNPq.)

Ele conta que esse período estudantil foi complicado, por ser um ambiente bem diferente do que estava acostumado. “Cara é bem engraçado, até porque quando você estuda em uma universidade mais elitizada, tipo a UFC onde eu estudei, acontece muito dos pais, os avós dos seus colegas de turma terem feito faculdade, e parece uma realidade muito distante”, avalia. 

Quatro anos depois, perto da sua formatura, a grande notícia veio. Dener havia sido aprovado no “Ciência sem Fronteiras”, um programa de pesquisa criado no Governo Dilma que possibilitou bolsas de intercâmbios para estudantes em universidades do exterior. Lá, ele pôde fazer parte de sua graduação na Escócia. O estudante, que nunca tinha saído do Brasil, relata que em nenhum momento teve uma cobrança intensa dos seus pais no âmbito acadêmico, mas que sentia uma necessidade interna de fazer valer as oportunidades que estava tendo. “Você tem aquela vontade de retribuir e de dar certo. Então, é bem curioso, porque às vezes a gente acaba colocando também cargas sobre nós que nossos colegas de turma muitas vezes não têm”. Ele ressalta que ao chegar no país se surpreendeu pelas possibilidades de contato, com muitos incentivos na área profissional que não tinha tido antes:

“Enquanto eu tava no Ciência sem fronteiras, eu apliquei para um estágio no JP Morgan de Londres, e eu aluno ciências da computação. [Para eu fazer a entrevista], o JP pagou todas as minhas despesas para eu sair da universidade e ir para Londres, tudo isso para fazer uma entrevista de estágio, sabe? Então assim eu fiquei: meu Deus”.

 

No entanto, na volta ao Brasil, a condição de sua família havia piorado. Seu pai estava com depressão e, por não conseguir trabalhar, contava com um salário menor do que antes. Nessa época, Dener relata que a situação ficou muito complicada, com a instabilidade financeira voltando a ser presente. Nesse cenário, ele analisa a dificuldade para se superar o “ciclo de pobreza estrutural”: “os meus amigos que vieram de famílias mais estabelecidas, mais estabilizadas, eles acabam, mesmo que eu ganhe mais, tendo uma situação financeira mais estável que a minha, porque não tem que ajudar ninguém. Então, é bem curioso isso, porque mostra como leva tempo para você vencer as questões de pobreza estrutural”.

Hoje em dia a situação financeira de sua família está muito melhor. Luzinete sente orgulho de ver seus filhos indo longe, seguindo os sonhos de cada um: “nossa eu me sinto realizada, né. Muito feliz, já que eu não tive muita oportunidade”. Sobre o papel do Bolsa Família nessa mudança, Dener afirma que houve um  impacto positivo em sua vida, mas reitera que o Programa sozinho não é o suficiente. “Não adianta você oferecer a renda básica, se você não oferecer, por outro lado, melhores condições de emprego, de educação e infraestrutura. Combinados com a transferência de renda, existiram várias outras ações, vários outros programas educacionais, dos quais eu fui beneficiário”.

BRUNA

 

A adolescência de Bruna Patti, 29, foi marcada por dificuldades financeiras relacionadas à separação de seus pais. Com apenas 12 anos, seu núcleo familiar composto por ela, a irmã mais nova, a mãe e o padrasto começaram a enfrentar desafios não apenas econômicos, mas também relacionados à transfobia devido à identidade de gênero de seu padrasto. Nesse momento, o PBF entrou em sua vida, mais especificamente, em 2011, auxiliando na subsistência de seu núcleo familiar.

De origem carioca, Bruna nasceu na cidade de São Gonçalo (RJ). Formada em biologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Mestre em Ensino de Ciências, Ambiente e Sociedade pela mesma instituição, hoje atua lecionando na rede pública estadual. A professora fez seu Ensino Fundamental em escola particular, com auxílio de uma bolsa estudantil e apoio financeiro da sua avó paterna, enquanto o Ensino Médio foi realizado em escola pública. Para Bruna, chegar na universidade foi um caminho árduo. “Eu tinha 17 anos quando entrei na faculdade e consegui com muito sacrifício. Passar para o curso de graduação já era um feito importante, ainda mais em uma universidade pública de excelência, então foi uma virada de chave na minha vida”.

Bruna, uma mulher branca de cabelo liso castanho, está usando uma blusa listrada, uma calça jeans clara e máscara segurando um documento em frente ao Gabinete do Prefeito. Nas portas é possível ver o símbolo da Prefeitura de São Gonçalo.

 Bruna Patti, uma das “filhas do Bolsa Família”, é empossada servidora pública na Prefeitura de São Gonçalo,

no Rio de Janeiro. Foto: Arquivo pessoal

Ela teve muito apoio da família para estudar e não precisou trabalhar enquanto tentava o vestibular. Para ela, a política pública foi essencial para alcançar esse sucesso: “se a gente não fosse contemplado com essa política afirmativa, provavelmente a gente ia ter que trabalhar com alguma coisa para conseguir complementar, auxiliar em casa. Acho que pode ter sido a diferença entre eu ter conseguido ou não passar para a universidade, porque eu podia ficar estudando em casa, eu não precisava me desdobrar como a gente vê acontecer”.

Bruna também relembra as dificuldades enfrentadas por sua família para manter uma alimentação básica: “a gente já passou por situação de privação, de ter que pegar frutas e verduras que ficam ruins no sacolão que eles iam jogar fora. E a gente não sabia, minha mãe e o companheiro dela não deixavam a gente perceber que era isso que estávamos comendo”.

Com o Bolsa Família, eles conseguiram ter acesso a uma alimentação melhor e produtos que na época consideravam luxo, como iogurtes e biscoitos. Ela comenta:

Bruna Patti

a minha história é muito parecida com a de várias outras pessoas do Brasil. Meu pai não pagava pensão, o que dificultava nossa vida. A entrada do Bolsa Família foi fundamental. Mesmo não sendo muito dinheiro na época, fez diferença entre ter ou não o básico”.

De acordo com matéria do site Poder 360, quando a professora e seus parentes recebiam o benefício, há 13 anos, o valor médio por família se encontrava em R$ 197,80. Nessa mesma época, de acordo com o artigo O eixo de garantia de renda do Plano Brasil sem Miséria, publicado pelo Governo Federal, havia 36 milhões de pessoas beneficiárias do Programa Bolsa Família, que estariam na miséria caso sobrevivessem apenas com sua renda familiar.

Sobre possíveis melhorias no Programa e em outras políticas públicas, Bruna cita a cidade de Maricá (RJ), região onde leciona, que oferece um exemplo de administração que ela acredita ser um modelo de replicação: “tem transporte público de graça que leva pela cidade inteira. Lá, as crianças recebem Bolsa Família e têm as políticas afirmativas da própria Prefeitura. Você tem ajuda, por exemplo, para pequenos empreendedores que estão começando, montando sua lojinha; e aí a Prefeitura vai auxiliar, dando isenção de imposto”.

 “Aos 29 anos, sou funcionária pública. Minha situação financeira hoje é muito melhor do que a dos meus pais na mesma idade”, orgulha-se Bruna. Sua jornada é um testemunho do impacto das políticas sociais na transformação da vida de indivíduos em situações de vulnerabilidade. Entretanto, apesar dos benefícios, a professora argumenta que existem pontos que podem ser melhorados, pois, em sua opinião, ainda há diferenças regionais na entrega de serviços básicos para a população.

ANA CLÁUDIA

Ana Cláudia Fernandes Neves, estudante da UFOP, saiu do interior da Bahia com o objetivo de direcionar seus estudos à educação para pessoas com deficiência. Seu desejo é motivado pelos desafios que sua família, beneficiária do PBF, enfrenta para cuidar de seu irmão.  Foto: Nikolle Gandra

Ana Cláudia Fernandes Neves, 20, é natural de Riacho de Santana (BA). A jovem teve a vida afetada pelo Bolsa Família desde a infância e, apesar de hoje não depender dessa renda social, seus familiares ainda são credenciados no Programa. Criada em um ambiente familiar com cinco irmãos e pais agricultores, sua infância foi marcada por mudanças familiares e desafios financeiros.

Ana Cláudia, jovem de cabelo cacheado preto e blusa lilás, está com o rosto pouco inclinado para a esquerda parada em frente a um mural de fotos. Ao fundo há também uma mesa com notebook, carregador e livros.

No álbum da família de Ana Cláudia, imagens com seus irmãos durante a infância e juventude no interior da Bahia contam parte de sua história.

A estudante é uma das primeiras pessoas de sua família a ingressar em uma universidade federal e acredita que isso possa incentivar seus irmãos a seguirem o mesmo caminho.  Fotos: Arquivo pessoal

A vida na comunidade rural trouxe desafios, especialmente em relação à educação. A entrada da família no Bolsa Família, em 2009, quando Ana tinha apenas seis anos, foi um divisor de águas. Ela conta que o Programa foi o que permitiu o acesso às escolas e a materiais para ela, os irmãos e os primos que moravam com sua mãe: “foi o ano que eu entrei  na creche. Os meus tios que eram mais velhos, [meus primos] tinham 13 anos, não iam para escola porque não tinham condições de comprar caderno, lápis… E depois do Bolsa Família, eles foram para a escola, se formaram e hoje moram em São Paulo”.

Atualmente, Ana está em Mariana (MG), para realizar sua graduação no curso de Pedagogia na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Ela reside no “Conjunto 2”, uma das moradias públicas estudantis, e faz uso das Bolsas de Permanência fornecidas pela universidade. Sobre o processo de mudança para Minas Gerais, ela fala que foi difícil, mas que sua mãe sempre a incentivou a estudar. No início, teve ajuda financeira de um tio e apoio de uma prima com a documentação para conseguir os benefícios oferecidos pela faculdade.

Ana também explica que, graças ao auxílio do PBF, sua família foi capaz de criar um ambiente propício para o desenvolvimento adequado de seu irmão, Miguel, 4, que possui o diagnóstico de autismo. A estudante diz que é com o auxílio financeiro que eles conseguiram oferecer certos tratamentos ao irmão, que não são disponíveis pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Ana Cláudia Fernandes

Com o Bolsa Família, podemos comprar remédios, pagar médicos melhores, fazer exames”.

 

A escolha de curso realizada por Ana teve bastante influência de seu irmão. Devido a seu vínculo profundo com Miguel, a estudante decidiu seguir a área da educação para que, assim, possa oferecer serviços de qualidade direcionados a crianças com deficiência, que muitas vezes não recebem tratamentos adequados e nem educação inclusiva. “Eu acho que as crianças [com deficiência] precisam de mais atenção quando entram na escola”, explica. Ana também aponta que um dos seus desejos para o avanço do PBF é um foco de auxílio a famílias que possuem, em sua constituição, pessoas com deficiência, a fim de que isso gere melhoria na qualidade de vida desses indivíduos.

LEONARDO

 Leonardo, homem branco, cabelo com mechas loiras, usa óculos e camisa de botão azul marinho. No fundo estão alguns cartazes colados na parede e à sua frente um computador com a tela ligada.

Leonardo Nogueira é professor universitário e “filho do Bolsa”. O jovem acredita que ainda há avanços que devem ser realizados para que o PBF proporcione melhores condições para mais famílias brasileiras. Foto: Nikolle Gandra

 

Sua história se inicia em Teófilo Otoni (MG) na década de 1990. Filhos de açougueiro e de uma mulher dedicada às áreas de educação, Leonardo, 32, e sua irmã viveram a infância e juventude muito próximos de familiares e amigos, formando um senso de comunidade latente em suas experiências. Foi por volta de seus 12 anos de idade que a família de Leonardo passou por mudanças estruturais, com o divórcio de seus pais.

“Quando meus pais se separaram, era uma época em que meu pai estava em um ciclo de falência. Então, foi um momento mais difícil para a gente viver a separação economicamente, porque meu pai se separou e casou de novo, teve filho. A gente teve que lidar com essa realidade”. Nesse momento, o professor explica que sua mãe teve dificuldades em retornar ao mercado de trabalho e, devido a isso, precisou recorrer aos recursos do Bolsa Família.

Leonardo vê a assistência do Bolsa Família como peça fundamental para a liberdade econômica de sua mãe, que teve de encarar desafios para criar os filhos e obter fonte de renda. “Meu pai se ateve aos compromissos legais, como pensão alimentícia. Cumpriu ali essas responsabilidades jurídicas. Mas minha mãe não se inseriu imediatamente no mercado de trabalho, foi um processo”, lembra.

O escritório de Leonardo fica localizado no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA), onde atua como professor do curso de Serviço Social. Na sua sala, pelos materiais ali dispostos, é possível perceber que as pautas sociais são peças importantes em sua trajetória. 

 Fotos: Nikolle Gandra

 

À medida que sua mãe ia desenvolvendo sua independência econômica, a disponibilidade dos recursos do Bolsa Família foi fundamental para o incentivo escolar de Leonardo e sua irmã. Segundo o professor, durante um determinado período de sua vida, a renda obtida no Programa foi utilizada para atender suas demandas educacionais, como a compra de material escolar. O interesse pela área acadêmica sempre esteve presente na vida de Leonardo, que pode ser constatado no seu gabinete na UFOP, onde hoje atua como docente de Serviço Social.

Além do recurso principal do Bolsa Família, Leonardo também acessou outras iniciativas para seu desenvolvimento, como é o caso do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), uma prova de admissão acadêmica que busca avaliar o nível de conhecimento de alunos formandos do Ensino Médio, cuja nota é utilizada para ingressar em universidades. “Assim que eu entrei no Ensino Médio, todo mundo já falava do Enem, todo mundo já falava do Programa Universidade para Todos (ProUni). Eu tinha um vizinho prounista e um outro vizinho que passou no ProUni, fulano que começou pelo Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES). Tinha um clima em que as pessoas falavam de entrar na universidade, coisa que não tinha antes”, explica.

Foi pouco tempo após Leonardo iniciar o Ensino Superior, que sua família saiu do acesso ao Bolsa Família. Isso se deu devido às oportunidades de trabalho conquistadas por sua mãe e sua irmã, além de sua independência conquistada no meio acadêmico. Durante os anos na universidade, ele recebeu bolsas de estudo que o auxiliaram a se manter financeiramente. Segundo o professor, o PBF teve papel fundamental para que ele pudesse prosseguir com sua vida acadêmica e ingressar na universidade.

Contudo, Leonardo também defende que não apenas o Bolsa Família é suficiente para causar mudanças sociais. Programas como FIES, ENEM, ProUni, Projovem (Programa Nacional de Inclusão de Jovens) e PET (Programa de Educação Tutorial) também tem sua importância no crescimento de crianças e jovens, de maneira livre e correta. Apoiar a existência de cada um desses projetos sociais é, para ele, o que possibilita que mais pessoas tenham oportunidade de crescer academicamente.

CINARA

 

Cinara Tatiana Simonino, 28, natural de Minas Gerais e residente em Salvador (BA), compartilha uma história marcada por desafios e determinação, destacando a importância do Bolsa Família, do Auxílio Emergencial e das cotas em sua vida e na vida de sua família.


Graduada em Economia pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e Mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), atualmente cursa Doutorado em Administração na mesma instituição que concluiu seu mestrado. Ela cita como mudar de sua cidade natal foi importante para sair da zona de conforto: “eu escolhi aqui. Escolhi não, eu passei só aqui. E aí eu resolvi encarar o desafio. Acho que foi até melhor não ter passado lá, porque eu ia ficar muito pensativa. Era mais cômodo ter ficado lá, mas é importante também a gente alcançar outros horizontes”.

Cinara teve sua juventude marcada por um contexto desafiador. Sua mãe, viúva, teve que criar as três filhas sozinha: “a gente cresceu numa realidade de falta de conforto, não tinha muita coisa, não chegamos a passar fome e tal, não como no caso da minha mãe, que viveu isso, mas a gente sempre teve as coisas muito difíceis”.

Cinara, mulher preta com tranças pretas com detalhes brancos, usando beca de formatura preta e branca parada em frente a uma placa indicando o curso de Ciências Econômicas. Na foto ela aparece sorridente.

Cinara Simonino, jovem que teve o PBF como fonte de renda familiar durante a infância, é formada em Ciências Econômicas pela UFV e atualmente dedica sua vida profissional à área acadêmica. Foto: Arquivo pessoal

Ela ressalta a relevância do Bolsa Família como uma fonte vital de renda, não apenas complementando, mas em alguns momentos sendo a principal fonte de sustento. O benefício, era usado para adquirir alimentos essenciais, como arroz e feijão e, ocasionalmente, um pente de ovo, que era a proteína mais barata:

Cinara Simonino

Até com Bolsa Família, a gente só conseguia comprar o básico; então, se não tivesse o benefício, nem isso eu acredito que a gente teria”.

 

Apesar do principal impacto ter sido nas necessidades substanciais, Cinara acredita que o Programa teve influência diretamente nas oportunidades de emprego para suas irmãs e na sua formação acadêmica, oferecendo uma perspectiva mais ampla do mundo e incentivando a continuidade dos estudos. “As minhas irmãs conseguiram terminar pelo menos o Ensino Médio. Elas tiveram um pouco mais de facilidade para inserção no mercado de trabalho, justamente por terem o segundo grau completo. Os meus primos, por exemplo, que não terminaram, têm mais dificuldade de conseguir emprego”, relata.


Antes de entrar na faculdade, a economista trabalhou como doméstica por dois anos e, após a sua formatura, teve dificuldades em achar um emprego. Porém, acredita que tenha sido pelo contexto histórico, já que ela se formou em 2020, ano de início da pandemia mundial decorrente do Covid-19: “eu não procurei emprego nenhum depois que fui pro Mestrado; e no momento, não estou procurando também, porque estou dedicada à vida acadêmica. Então, eu não sei como vai ser depois, quando eu estiver indo para o mercado de trabalho. Eu também tenho outras expectativas, pretendo fazer concurso público”.

Por meio de sua monografia de conclusão de graduação, em 2015, intitulada “Impacto do Programa Bolsa Família sobre a incidência de trabalho infantil”, Cinara fez uma análise minuciosa sobre o efeito do PBF no trabalho infantil, usando dados fornecidos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). A partir da pesquisa, Cinara teve uma visão mais profunda sobre o benefício, e acredita que o fator estudado por ela ainda merece um foco maior. Apesar de não ser o objetivo principal do Programa, ela ressaltou que a obrigatoriedade de manutenção da criança na escola contribui para reduzir o tempo disponível para o trabalho, incentivando o foco nos estudos em vez da atividade laboral.

Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2019 informa que cerca de 1,8 milhão de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos estavam em situação de trabalho infantil no Brasil. De acordo com a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (TIP), 706 mil crianças exercem tarefas que estão entre elas.

Cinara sugere que o Bolsa Família deve ser ampliado para alcançar mais parcelas da população. Ela argumenta que, apesar de críticas pontuais sobre pessoas recebendo o benefício sem necessidade, há mais pessoas que necessitam dele e não possuem acesso. Ela também enfatiza a importância de expandir e facilitar o ingresso ao Programa para atingir efetivamente aqueles que carecem desse subsídio.

FILHOS DO BOLSA 

Mais de 21 milhões de famílias brasileiras saíram da linha da pobreza devido aos serviços do PBF, possibilitando a formação de lares acolhedores para pais e filhos. Foto: Nikolle Gandra

 

Os relatos de pessoas como Dener, Bruna, Ana Cláudia, Leonardo e Cinara ilustram vividamente os impactos e transformações proporcionados pelo Bolsa Família. Os testemunhos reforçam a importância de programas sociais como o Bolsa Família, mas também mostram que é necessário repensar e aprimorar essas políticas, para que o Estado consiga garantir uma assistência abrangente a quem mais necessita, visando a construção de uma sociedade inclusiva.

Mesa de madeira marrom. Em cima dela, há um retrato com bordas simulando ladrilhos azuis com a frase “Lar Doce Lar” centralizada. Ao lado, alguns potes de vidro contendo alimentos básicos como arroz, açúcar e feijão. No fundo, é possível ver uma porta branca aberta, dando acesso a outro ambiente da casa.
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