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Quem paga pelo “progresso”?
Antes símbolo de avanço, a mineração hoje é vista como sinônimo de medo, desamparo e destruição em Minas Gerais
Adrielle Ferreira, Amaury José, Emanuel Marcelino e Salatiel Ponciano
Agosto de 2025
Criada em 1942 em Itabira (MG), a Companhia Vale do Rio Doce era parte fundamental do projeto de desenvolvimento econômico do governo do ex-presidente Getúlio Vargas. A fundação da estatal visava o aproveitamento das jazidas de minério por empresas nacionais, como forma de alavancar a industrialização no Brasil.
Em pouco tempo de exploração, as paisagens naturais da cidade foram tomadas por indústrias. Segundo arquivos do Departamento de Turismo da Prefeitura Municipal de Itabira, nos anos 1970 a empresa já respondia por 90% do mercado industrial da cidade, que logo ficou conhecida como “Cidade do Ferro”.

Mina do Cauê em Itabira (MG) no ano de 1952. | Foto: Ney Jablonsky Tibor Strauch – Arquivo IBGE

Mina do Cauê em Itabira no ano de 2013. | Foto: Eduardo Cruz - Arquivo pessoal
Segundo o Observatório da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM), da Agência Nacional de Mineração (ANM), em junho de 2025, mais de 100 tipos de substâncias foram extraídas no município, com 19 empresas mineradoras em atividade no local.
Além do minério de ferro, as gemas e pedras preciosas também são grandes focos de exploração na região. Materiais ligados à construção civil, como brita, areia, granito, gnaisse e diferentes tipos de argila, também são extraídos por empresas menores. Atualmente, os itabiranos vivem cercados por mineradoras, que ocupam diversos espaços por toda a cidade.

Mapa IBRAM – Cidade de Itabira cercada por operações mineradoras. Acesso em junho de 2025
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Itabira conta com cerca de 113 mil habitantes. Dados da Prefeitura do município, publicados no portal de notícias G1 em setembro de 2024, indicam que empresas do setor minerário, como a Vale e o Grupo Belmont, empregam cerca de 11 mil trabalhadores, sendo 3,3 mil contratados pelas mineradoras e 8,3 mil terceirizados. Portanto, quase 10% da população da cidade trabalha de forma direta ou indireta com a mineração.
A intensa atividade minerária em Itabira eleva significativamente o Produto Interno Bruto (PIB) do município, indicador que representa a soma de todos os bens e serviços produzidos em um determinado território ao longo de um ano. Em 2021, o PIB do município foi de R$ 14,972 milhões, segundo dados do IBGE. Quando esse valor é dividido pelo número de habitantes, obtém-se o PIB per capita, que naquele ano foi de R$ 123.006,06, um índice 157,3% superior à média nacional, de
R$ 47.802,02.
Esses dados são parâmetro para atestar o desenvolvimento local, pois quantificam o valor da riqueza da cidade. Entretanto, quando comparado com indicadores de pobreza em Itabira, é possível observar que o PIB per capita da população não está atrelado à renda dos habitantes.
O gráfico abaixo expõe o contraste entre o salário médio da população itabirana, de R$ 2.908,00, e a realidade socioeconômica de grande parte dos moradores. Mais de 7 mil famílias vivem com até meio salário mínimo por mês, e cerca de 13 mil estão registradas no Cadastro Único, indicador que reúne famílias em situação de vulnerabilidade, com renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa.
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Para Heloísa Bernardo, professora adjunta da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), isso acontece porque o valor do PIB per capita não se reverte para a renda da população mais pobre, que continua com os salários muito baixos: “É absurdo o lucro das empresas mineradoras frente ao próprio PIB dos municípios onde elas estão instaladas. Então, assim, ela dá uma alavancada no PIB que não reverte lá embaixo, sabe? Por causa dessa desigualdade”.
Com base no relatório financeiro divulgado pela Vale em julho de 2025, no segundo trimestre deste ano, a empresa registrou lucro de R$ 12,1 bilhões. Comparativamente, esse dado mostra que, em apenas três meses, o lucro da Vale equivale a 808 vezes o valor do PIB da Itabira. Marco Antônio Lage, atual prefeito da cidade e presidente da Associação dos Municípios Mineradores de Minas Gerais (AMIG), reconhece essa desigualdade: “Às vezes, nas cidades muito ricas, esses abismos não são resolvidos. E a gente tem em Itabira também esse abismo social. Logo que a gente assumiu, nós identificamos 12,7% da população em situação de pobreza e extrema pobreza”.
A realidade vivida pela população itabirana revela um profundo desequilíbrio entre o que se extrai do território e o que se devolve a quem vive nele. A mineração, que era símbolo de progresso, transformou a economia de maneira concentrada, que pouco distribui os ganhos e, cada vez mais, aprofunda desigualdades sociais, agravando impactos à saúde de cidadãos que vivem à margem dessa atividade e ao meio ambiente.
Um estudo, realizado em maio de 2025 pelo Tribunal de Contas de Minas Gerais (TCE-MG), apontou que moradores de cidades com atividade mineradora apresentam maior incidência de doenças respiratórias, cardiovasculares e problemas que afetam olhos e ouvidos, quando comparados à população de outros municípios mineiros.
A pesquisa analisou os 20 municípios que mais arrecadam com a extração de minério de ferro em Minas Gerais, entre eles Brumadinho, Itabira, Mariana e Ouro Preto. A taxa de mortalidade em doenças do sistema circulatório por 100 mil habitantes se mostrou 61% maior nessas cidades do que nas localidades em que as empresas não pagam a CFEM. Além disso, o gasto médio dos municípios mineradores com internações relacionadas às doenças do sistema respiratório é 36% mais alto. O aumento do gasto com doenças dos olhos, ouvidos e apófise mastoide extrapolam os 70%.
O levantamento teve como objetivo investigar a qualidade de vida nos municípios com maior arrecadação proveniente da CFEM, no entanto, acabou evidenciando fragilidades estruturais inerentes à atividade mineradora que abrangem a saúde da população. Problemas que costumam ser ignorados quando se destaca apenas o retorno financeiro da mineração para essas localidades e o lucro que vai para as grandes empresas exploradoras.
Arrecadação excludente
A Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 20, estabeleceu a criação da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), conhecida como “royalties da mineração”. A partir dessa lei, passou a ser obrigatório o pagamento de compensação financeira por toda pessoa física ou jurídica habilitada a extrair substâncias minerais no Brasil.
Esse imposto, que deve ser pago pela empresa mineradora ao Estado, à União e ao município explorado, busca assegurar que a sociedade seja compensada pela extração dos bens minerais finitos que pertencem ao patrimônio público federal. A arrecadação dessa compensação se tornou uma fonte de renda essencial para o desenvolvimento dos municípios mineradores, mas, na prática, acabou tornando essas cidades reféns das corporações exploradoras, como é o caso de Itabira.
A distribuição dos royalties da mineração não é feita de forma igualitária entre as entidades citadas. Do total arrecadado mensalmente, 15% é destinado ao estado onde ocorreu a extração e aos municípios indiretamente afetados pela atividade minerária, 10% vai para a União e a maior parte, 60%, fica com o município diretamente explorado.
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Segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), em 2019, Itabira ocupava a 4ª posição no ranking dos maiores arrecadadores da CFEM no Brasil. Desde então, o município enfrenta uma queda contínua. Em 2025, com uma redução de R$ 54,4 milhões de arrecadação, a cidade caiu para o 10º lugar no ranking da ANM.
A Prefeitura divulgou previsões sobre os valores totais de arrecadação da CFEM para todo o ano de 2025. A expectativa é de que os repasses municipais provenientes dos royalties da mineração caiam de R$ 207,5 milhões para R$ 124,2 milhões, uma redução de cerca de 40%.
Para o prefeito Marco Antônio Lage, essa diminuição de arrecadação do imposto é sintomática dos municípios mineradores e traz sérios impactos para o desenvolvimento local: “O município minerador que tem a minério-dependência, essa monoeconomia, ele vai entre picos e vales. Então, este ano [2025] nós estamos no momento do vale. Nós estamos lá na baixa. Aí, claro, você tem que fazer toda uma reestruturação, uma redefinição orçamentária e fazer cortes”.
Em novembro de 2024, a Câmara Municipal de Itabira votou favorável à Lei Orçamentária Anual (LOA) do município para R$ 1,3 bilhão, em solicitação feita pelo prefeito. Em maio de 2025, o governo publicou um decreto de novas medidas para conter a queda da arrecadação, prevendo problemas com o montante da arrecadação.
A previsão é que a recaída supere os 14%, fazendo com que o orçamento anual chegue no máximo aos R$ 1,1 bilhão. Projeções da queda de receita advindo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), da CFEM e outros tributos, foram apontadas pela Câmara como fatores que levaram à essa redução orçamentária.

Quando tem dinheiro, você avança, nos projetos. Quando você não tem dinheiro, a gente recua e torna alguns projetos mais lentos do que os outros por falta de recurso. É um drama, de fato.
Marco Antônio Lage
De acordo com Tatiana Linhares,42 , jornalista residente no município, esse momento financeiro mostra que, em mais de 100 anos de mineração no local, o dinheiro arrecadado nunca foi de fato bem aplicado: “Vamos falar sobre signos do capitalismo e de crescimento financeiro dentro do capitalismo. Itabira não tem shoppings, não tem um comércio forte, não tem um turismo que receba pessoas bem. É uma cidade em que as ruas e a malha viária são as mesmas de uma vida inteira. As reformas são feitas ali dentro com poucas expansões”.
Segundo a jornalista, há uma evidente contradição entre os altos lucros da mineração e o baixo investimento público para o desenvolvimento da cidade.

Ao mesmo tempo, você ouve de grandes valores circulando aqui dentro o tempo todo? A gente tem empresários que movimentam milhões, mas a gente não vê isso reinvestido na cidade. Já foi a cidade com a maior exploração mineral do país e ela não reflete isso?
Tatiana Linhares
Cidades ligadas pelo ferro
Em 2025, 17 dos 20 municípios com maior arrecadação da CFEM no Brasil estão localizados em Minas Gerais, segundo ranking elaborado pela ANM. Esse destaque consolida o estado como o principal arrecadador do país quando se trata da Compensação Financeira pela Exploração Mineral.
A mineração no estado é impulsionada por um processo histórico que a impôs como principal atividade econômica da região. Primeiro, com a exploração do ouro, que teve início em Mariana (MG) e Ouro Preto (MG), há três séculos. Depois, com a mineração do ferro, que começou em Itabira e depois se espalhou por outros municípios.
Essa expansão consolidou o Quadrilátero Ferrífero, região localizada no centro-sul de Minas Gerais, como o epicentro da mineração no Brasil. De acordo com o Centro de Estudos Avançados do Quadrilátero Ferrífero (CEAQFe), da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), essa área, rica em jazidas de ferro e outros minérios, reúne mais de 30 municípios, abrigando a maior concentração urbana do estado.
A linha do tempo a seguir percorre desde a descoberta do ouro em Ouro Preto, passando pelo início da exploração do ferro em Itabira, até os rompimentos das barragens de Mariana e Brumadinho, reunindo os principais marcos e transformações da mineração no Brasil.
As quatro cidades protagonizaram episódios decisivos que colocam em xeque o discurso histórico, desenvolvimentista, que acompanha essa atividade. Ouro Preto foi pioneira na exploração do ouro durante o período colonial e, ainda hoje, mantém forte dependência da mineração; Itabira marcou o início da mineração de ferro em larga escala no país, tornando-se berço da então estatal Vale; já Mariana e Brumadinho entraram para a história recente pelos trágicos rompimentos de barragens, que expuseram os custos sociais, ambientais e humanos desse modelo de exploração.
Todas elas fazem parte do chamado Quadrilátero Aquífero Ferrífero e estão entre os 20 municípios com maior arrecadação de CFEM no Brasil, de acordo com a ANM. Analisar essas localidades é fundamental para compreender se a compensação financeira pela atividade minerária tem, de fato, se traduzido em desenvolvimento social, econômico e ambiental.
CFEM X Desenvolvimento
De acordo com a Lei nº 8.001 de 13/03/90, os recursos adquiridos pela CFEM não podem ser usados para pagar dívidas ou salários de servidores permanentes. Em vez disso, devem ser investidos em projetos que beneficiem a comunidade local, como melhorias na infraestrutura, saúde, educação e na qualidade ambiental.
O infográfico a seguir apresenta a arrecadação da CFEM em 2024 nos municípios mineradores de Itabira, Brumadinho, Mariana e Ouro Preto. Naquele ano, Itabira recebeu R$ 323.389.896,28, Brumadinho arrecadou R$ 98.947.622,24, Mariana obteve R$ 266.133.299,29 e Ouro Preto somou R$143.449.332,10 em royalties da mineração.Essa receita deveria alavancar o investimento em saúde, cultura e demais setores que melhoram a qualidade de vida da sociedade. Entretanto, na prática, esse retorno não é percebido pelos cidadãos.

Heloísa Pinna Bernardo e Gilmar José dos Santos, professor na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), são autores da pesquisa “Globocentrismo, Reprimarização e Neoextrativismo Reflexões Sobre a Mineração no Brasil Contemporâneo”, publicada em 2021. Os pesquisadores compararam os dados do Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM) com 18 cidades com CFEM relevantes, ou seja, com a CFEM representado mais que 5% das receitas correntes.
O IFDM, realizado anualmente pelo Sistema Firjan, analisa três aspectos: emprego e renda; educação e saúde. Seu objetivo é averiguar se um alto recebimento da compensação gera altos índices de desenvolvimento nas cidades mineiras observadas.
Para Heloísa, do ponto de vista da arrecadação de impostos, sem dúvidas, a mineração contribui para o ganho das cidades. Entretanto, não há um benefício social refletido nos indicadores do IFDM. “Se a mineração gera desenvolvimento, então, seria possível a gente perceber nos indicadores de desenvolvimento um impacto positivo. As cidades que têm a mineração, a arrecadação de CFEM relevante poderiam também ser as cidades com uma indicadores melhores do IFDM que a gente usou como uma referência de desenvolvimento”, completa a pesquisadora.

A gente não encontrou isso, a gente encontrou ao contrário. Então em média, as cidades que têm mineração, elas não tem um IFDM médio maior do que aquelas que não tem.
Heloísa Pino
Comparativamente, quando analisados o ranking de 2023 das dez cidades com maior IFDM do estado de Minas Gerais, oito municípios não têm a mineração como a principal base da economia. Apenas duas cidades mineradoras se encontram no ranking, são elas: Poços de Caldas e Patos de Minas com 0.8457 e 0.8077, respectivamente.
Esses números correspondem ao “Desenvolvimento Alto”, maior classificação de desenvolvimento do IFMD, enquanto as demais cidades mineradoras são classificadas como “Desenvolvimento Moderado” ou “Desenvolvimento Baixo”. Este fato permite constatar que a mineração não traz benefícios substanciais para alavancar o IFDM.
Os dois gráficos a seguir apresentam, separadamente, o desempenho de quatro cidades minério-dependentes com alta arrecadação de CFEM em 2023. O primeiro mostra o IFDM (Índice FIRJAN de Desenvolvimento Municipal) de cada município, enquanto o segundo exibe o valor acumulado da CFEM no mesmo ano. Apesar dos altos ganhos com os royalties da mineração, todas figuram, segundo a FIRJAN, no nível de “Desenvolvimento Moderado”.
Apesar de registrarem média salarial elevada e PIB expressivo, essas cidades apresentam índices significativos de pobreza, medidos pelo número de famílias inscritas no Cadastro Único, sempre acima de 10% da população. Em Itabira, são 13.360 famílias cadastradas; em Brumadinho, 5.733; em Mariana, 12.958; e em Ouro Preto, 11.515.
Esses números evidenciam que a riqueza produzida pela mineração não se traduz em melhoria efetiva das condições de vida para grande parte da população, revelando um cenário persistente de desigualdade social.
Minério-dependência
Apesar de indicadores econômicos e sociais evidenciarem que a riqueza gerada pela mineração raramente se traduz em melhorias concretas na qualidade de vida da população, os municípios mineradores permanecem reféns dessa atividade.

Quando a Vale espirra, o município pega uma pneumonia!
Marco Antônio Lage
Cidade berço da maior empresa mineradora do Brasil, por décadas Itabira manteve viva a narrativa do progresso proveniente da exploração mineral. Hoje, o município vive com o medo das consequências do inevitável encerramento da extração do ferro na região, previsto para 2041 de acordo com o Relatório Form-20 de 2025, disponibilizado pela própria Vale.
Segundo a jornalista Tatiana Linhares, a mineração está tão enraizada na identidade da região que a população encontra dificuldade de imaginar a cidade desvinculada dessa atividade. “As pessoas experimentam esse progresso, um gostinho muito de longe desse progresso na sua vida rotineira, o que reforça esses laços, a dificuldade de rompimento desses laços”, critica.
Para o prefeito da cidade, Marco Antônio Lage, esse é um sério problema enfrentado por municípios que são dependentes de uma única economia, no caso de Itabira, o minério de ferro.
“A mineração é muito forte, ela absorve muito outras economias, e acontece que as cidades ficam muito dependentes. Então, esse é um problema grave. Itabira trabalha neste momento para vencer um grande desafio, que é chegar em 2041, recomposta”, afirma o presidente da AMIG.
Para ele, a tomada de decisões que visam novas perspectivas econômicas é urgente: “Se o município não tá preparado, o que acontece é esse empobrecimento, esse esvaziamento, é um caos, é uma tragédia também. Não no alcance do rompimento de uma barragem, que assusta todos nós, mas aqui também tem mortes nesse sentido. Quando estiver chegando perto da exaustão mineral e se nada for feito, a gente tem certeza que vai impactar na saúde mental do itabirano”.
Para Tatiana Linhares, a população tem dificuldade de reconhecer a Vale como a força motriz do desenvolvimento econômico do município e ao mesmo tempo a principal causadora de grandes problemas: “É importante que ela [a Vale] ocupe esses dois lugares ao mesmo tempo para ela ser cobrada das suas responsabilidades, de todos os danos que são causados no município”.

Sim, a Vale trouxe uma um crescimento econômico que talvez Itabira não visse, mas também trouxe um sofrimento social e ambiental muito grande em decorrência disso.
Tatiana Linhares
Itabira, assim como outras cidades mineradoras, expõe a lógica de concentração de riqueza que há séculos marca a exploração mineral no Brasil: enquanto os lucros se concentram nas mãos de grandes empresas, os danos ambientais, sociais e econômicos permanecem nos territórios, que são explorados até a exaustão.
Progresso e lama
Muito semelhante a Itabira, Brumadinho também possui uma forte relação de dependência com a atividade minerária. A primeira empresa a chegar à cidade foi a Ferteco Mineração, em 1976, construtora da Barragem B1 para contenção de rejeitos da da mina Córrego do Feijão. Em 2001, a barragem foi incorporada pela Vale S.A., que, décadas depois, seria responsável por uma das maiores tragédias ambientais do país.
De acordo com o portal de notícias Agência Brasil, em 2019, a Vale era responsável por 65% da CFEM do município, com cerca de 11% dos trabalhadores da cidade prestando serviço para a empresa. Essa relação mudou drasticamente com o rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, ocorrido em janeiro daquele ano. O crime evidenciou as consequências de quando a mineração, que antes simbolizava progresso, deixa para trás um legado de destruição e abandono.
Com o rompimento, 272 pessoas perderam a vida, sendo 131 trabalhadores da Vale, 119 trabalhadores terceirizados, 20 moradores da comunidade e 2 nascituros. No que se refere ao número de vítimas, o episódio é o maior acidente laboral da história do Brasil.
De acordo com a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Barragem de Brumadinho, instaurada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) em julho de 2019, a própria Vale, mineradora responsável pela barragem, tinha ciência de que a estrutura operava com um fator de segurança muito inferior ao recomendado por órgãos internacionais. Ainda assim, manteve suas operações, utilizando laudos de estabilidade emitidos pela empresa alemã TÜV SÜD, que atestavam a segurança da barragem de forma irregular.
O relatório final da CPI pediu o indiciamento de 13 pessoas, incluindo 11 dirigentes e funcionários da Vale e dois auditores da TÜV SÜD. Esses atores foram acusados por homicídio de 270 pessoas, lesão corporal e falsificação de documentos, todos com dolo eventual, quando o agente assume o risco de produzir o resultado.
No local da tragédia, hoje, fica o Memorial Brumadinho. Aberto para o público em janeiro de 2025, o espaço é dedicado a manter viva a memória das vítimas e a conscientizar a população sobre as consequências da mineração predatória no Brasil.
Esse tipo de crime não é novo no país. Em novembro de 2015, um rompimento de barragem semelhante aconteceu no subdistrito de Bento Rodrigues, na cidade de Mariana.
Tanto a Barragem de Fundão, em Mariana, quanto a Barragem B1, em Brumadinho, adotavam o método de alteamento a montante para armazenar rejeitos de mineração. A técnica é considerada menos segura, porque a estrutura da barragem é construída sobre o próprio rejeito depositado, o que cria uma base instável e aumenta o risco de rompimento.
Em fevereiro de 2019, a Lei 23.291/2019, conhecida como “Mar de Lama Nunca Mais”, foi sancionada pelo governador de Minas Gerais, Romeu Zema. O regulamento proibiu a construção de novas barragens à montante em Minas Gerais e estabeleceu um prazo de três anos para a descaracterização das existentes.
Das 54 barragens à montante existentes no estado, apenas 10 foram descaracterizadas dentro do prazo legal. Em 2022, uma ação conjunta do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), do Governo de Minas Gerais e do Ministério Público Federal (MPF) culminou na formalização de 18 Termos de Compromisso com as empresas responsáveis pela descaracterização de 43 estruturas. Além do pagamento de R$432 milhões a título de indenização por danos morais coletivos. Desde então, as ações de descaracterização seguem acontecendo, sem um prazo definido para a conclusão.
Apesar do alerta gerado pela proibição em Minas Gerais, cerca de 107 barragens em todo o Brasil ainda apresentam risco de rompimento, segundo dados de 2024 do Grupo de Pesquisa e Extensão Educação, Mineração e Território (EduMiTe), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No território mineiro, 45 dessas estruturas estão classificadas em nível de alerta ou de emergência, representando ameaça constante às populações e ao meio ambiente.
Lama invisível

Itabira também vive sob o risco de rompimento de barragens. No município, está localizado o Sistema Pontal, um conjunto de barragens e diques construídos para conter os rejeitos da mineração da Vale. Embora estejam classificadas no nível 1 de risco (o mais baixo na escala de emergência), essas estruturas representam uma ameaça. O volume de rejeitos acumulado no Sistema Pontal é 33 vezes maior que o da barragem que se rompeu em Brumadinho, o que poderia resultar em um desastre de proporções ainda mais devastadoras.
Desde 2019, a Vale atua com o Programa de Descaracterização de Barragens a Montante em Itabira. A previsão para a descaracterização completa das estruturas que oferecem risco de rompimento é em 2029. Cinco diques, estruturas de contenção de rejeitos e reservatórios de água similares utilizados na mineração, e uma barragem que integra o Sistema Pontal já foram descaracterizados.
Nos diques Minervino e Cordão Nova Vista, está sendo construída uma nova estrutura de contenção a jusante (ECJ2) para evitar um possível rompimento durante o processo de descaracterização. Esse novo modelo de contenção é menos suscetível à desabamentos em relação às barragens a montante, pois utiliza rejeitos consolidados em formato de pirâmide para fazer o alteamento da construção. Dessa maneira, as estruturas apresentam maior segurança e estrutura para que o descomissionamento possa ser feito.
Desde o início das obras, os Itabiranos que moram nos bairros próximos à construção relatam ser diretamente impactados pela reforma. Márcia Efigênia, 62, mora em uma zona de auto salvamento há 100 metros do muro de contenção que está sendo construído no Dique de Minervino. A funcionária pública conta que sua filha, desde 2019, desenvolveu uma crise de pânico severa pelo medo de um rompimento. “Hoje a menina está com 11 anos e dorme na minha cama, não voltou para o quarto dela ainda”, lamenta Márcia Efigênia.
De acordo com dados informados pela Vale ao MPMG, no documento “Informações Socioeconômicas – Pontos de interesse para Remoção – Itabira – MG”, em 2 de abril de 2021, cerca de 377 núcleos familiares foram identificados como passíveis de remoção compulsória do local. Apesar disso, em reunião realizada com os moradores do bairro Bela Vista no dia 18 de abril de 2024, segundo dados do mesmo ano publicados no Jornal DeFato, representantes da mineradora anunciaram a retirada de apenas 17 famílias da região de risco.
Em 2021, por meio de uma Ação Civil Pública (ACP), o MPMG condenou a Vale a reparar integralmente as pessoas impactadas pelas obras da Estrutura de Contenção à Jusante (ECJ2), no Sistema Pontal. Porém, a mineradora recorreu e o processo ainda corre em segunda instância.
Márcia Efigênia foi representante dos atingidos de Itabira em audiência pública realizada em Belo Horizonte, em maio de 2025. Para ela, mesmo que não tenha ocorrido um rompimento na cidade, a população ainda sofre danos físicos, financeiros e psicológicos com a situação sem o devido reparo da Vale.
Questionado sobre os impactos da reforma do Sistema Pontal para a população, o prefeito de Itabira reconheceu o conflito entre os moradores vizinhos à construção e a mineradora. “Nós não temos o poder de justiça, por exemplo, para definir caminhos, mas a gente busca colocar a estrutura da prefeitura a serviço dessa população ali”, afirma Marco Antônio Lage.
Além da lama, o que resta após a passagem da mineração é um rastro de destruição e promessas de progresso não cumpridas. Márcia Efigênia critica a postura da Vale diante da população e cobra reconhecimento histórico, visto que a empresa foi fundada em Itabira.
Os casos de Itabira, Mariana e Brumadinho ilustram o ciclo da mineração em Minas Gerais. A empresa mineradora se instaura em uma cidade, modifica suas relações sociais e econômicas, trazendo mais trabalhadores para a região e, por consequência, gera mais arrecadação financeira. Entretanto, quando os impactos negativos dessa atividade são expostos, as consequências já se tornaram irreversíveis.

O pessoal de Brumadinho morreu sem saber do perigo, né? A gente tá sabendo do perigo. Vocês entenderam como isso mexe com o psicológico da gente?