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Tradições que resistem
Por meio de cantos, linhas e festas, grupos desafiam as transformações impostas pela mineração
Bárbara Aleixo, Cristiana Navarro, Juliana Souza, Laura Lanza e Maria Eduarda de Lima
Agosto de 2025
Na Região dos Inconfidentes, em Minas Gerais, o tempo parece correr em duas velocidades. A geológica, da terra rasgada em busca do minério que deu nome e destino a esse território; e a do sensível, dos ritos e das tradições que aparecem nas frestas dessa mesma terra. É um local em constante tensão, onde a cultura ancestral e tradicional resiste à indústria extrativista, que altera paisagens, redefine relações e impõe formas de viver.
A mineração não apenas modifica o território físico, mas também transforma a lógica social, econômica e cultural das comunidades onde se instala. As manifestações culturais dialogam com essas realidades modificadas, como elas se adaptam, resistem ou se reinventam nesse contexto.
Três manifestações culturais revelam como as tradições se mantêm vivas em territórios modificados pela mineração. O Congado em Mariana (MG), com sua fé, música e coletivo; o bordado da Associação Artesãs, Artes, Mãos e Flores de Antônio Pereira (MG), que une técnica tradicional e alternativas de subsistência; e a Festa de São Bento, em Bento Rodrigues (MG), que reafirma memória e pertencimento em meio às ruínas da Capela de São Bento. Mais que registros de celebrações e culturas, são expressões de (r)existência e diálogo entre o passado e o presente, a tradição e a mudança.

Guardas e tambores
No dia 7 de junho de 2025, Mariana recebeu o 15º Encontro de Congados da Festa do Divino Espírito Santo. O cortejo, com 18 grupos congadeiros, saiu do Terminal Turístico em direção à Praça Minas Gerais, e encheu as ruas de ritmo e cor. O chão parecia pulsar. Tambores e batuques ecoavam energia e rompiam com a cotidianidade da cidade. Cultura e religiosidade estavam unidas nos trajes, fitas e adereços vibrantes; nos tambores e espadas, a força de uma história transmitida por gerações.




Na Praça Minas Gerais, bandeirolas vermelhas e brancas celebram a festa de Pentecostes. Sustentadas por pilastras, estandartes em feltro exibiam a imagem do Divino Espírito Santo para todos




No dia seguinte, 8 de junho, o cortejo do Rei e da Rainha, a missa Conga e a confraternização de guardas de diversos municípios reafirmaram a força dessa manifestação, que resiste ao tempo, à invisibilidade, ao preconceito e ao peso da mineração como poder dominante.
Nos cantos e nas marchas, cada passo carrega um rito de resistência. O Reinado, celebração religiosa e cultural afro-brasileira, surgiu no século XIX e mesclou a devoção católica com tradições africanas, homenageando santos negros como São Benedito, Santa Efigênia, Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião. A organização inclui cargos simbólicos, como rei, rainha, príncipe e princesa, que compõem o Trono Coroado, responsáveis por carregar a Coroa Santa durante as celebrações. Há também os reis e rainhas de promessa, que cumprem votos e são os responsáveis por organizar as festividades a cada ano. Cada integrante do trono representa um santo e cumpre uma missão espiritual.


Essa estrutura, transmitida de geração em geração, garante que a fé e a cultura permaneçam vivas mesmo diante das transformações sociais e culturais determinadas pela mineração. As guardas que escutamos no dia, como o Grupo de Congo Nossa Senhora do Rosário (Santa Bárbara-MG), Guarda de Moçambique de Ouro Preto, Associação Guarda de Moçambique Nossa Senhora do Rosário (Belo Vale-MG), entre outras, são a prova de que a tradição não se dobra e nem se esquece: ela se reinventa e se fortalece na coletividade e no sentimento de pertencimento.
Na quarta-feira, 11 de junho, visitamos Marcelo Ramos em sua casa, onde fica o terreiro do congado do qual faz parte.

Aos 32 anos, Marcelo carrega nos ombros uma responsabilidade ancestral: é o primeiro capitão do Congado Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião em Mariana. Sua liderança nasceu de um gesto simples. A coroação de Nossa Senhora do Rosário começou com tambores improvisados por crianças na rua, feitos de latas de Nescau e grãos de milho. A brincadeira de infância se tornou semente de um grupo que hoje soma 14 anos de história.
A guarda que lidera nasceu em 2011, quatro anos antes do rompimento da barragem de Fundão, tragédia que mudaria para sempre a história de Mariana. O início e o amadurecimento do grupo foram atravessados, ainda que indiretamente, pelo trauma coletivo e pelo processo de reconstrução de uma cidade ferida. Marcelo fala com franqueza sobre a relação com as mineradoras: "Com o patrocínio deles ou sem o patrocínio deles, a guarda anda".
“Fé, devoção, garra. Isso é o que me move. É porque eu estou fazendo uma coisa que eu gosto, que eu me identifico. Eu posso tá com mil e um problemas. Mas, quando falam: ‘Marcelo, tem que louvar a Nossa Senhora do Rosário, tem que louvar o seu ancestral’, eu esqueço aquele problema e simplesmente vou. Porque é nele que eu encontro a força para passar pelo que eu tenho a passar”
Marcelo Ramos
Marcelo Ramos, 32, 1º Capitão do Congado Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião.

A verdadeira chave para a sobrevivência e a persistência do Congado, conforme explica Marcelo, não reside em fatores externos, mas na força da sua comunidade. Para ele, o Congado se mantém em meio a muitos percalços. A resistência não é um ato solitário: "Para a gente conseguir se manter em pé, é através da nossa família mesmo".
Essa sustentação vem da sucessão de gerações do próprio Congado e de uma “irmandade” entre guardas, um sistema de apoio mútuo no qual cada grupo prestigia e honra a festa um do outro. É assim que, mesmo em um território moldado pela mineração, e com uma sociedade diferente, a tradição se fortalece, resiste e se reinventa.
O cortejo que se transforma em memória viva é um lembrete: mesmo quando o ruído da mineração tenta impor outro ritmo, vozes, passos e batidas continuam a marcar o compasso da resistência.


Artes, Mãos e Flores
Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto (MG), convive há séculos com a presença de grandes mineradoras, que moldaram sua paisagem e transformaram profundamente a dinâmica territorial. Hoje, o ritmo da comunidade é marcado por mudanças constantes: novos moradores chegam semanalmente de diferentes partes do país, enquanto caminhões e ônibus, levando trabalhadores, cortam as ruas antes pacatas.
Nesse cenário, o bordado praticado pela Associação Arte, Mãos e Flores, fundada em 2005, representa não apenas a preservação de saberes tradicionais, mas também uma forma de resistência e bem-estar.

Antes da fundação oficial da Associação, Célia Antunes, 60, lembra que o grupo de mulheres bordava de forma separada: “A gente bordava no fundo de um quintal”. Aquela união inicial já carregava a semente do que se tornaria um espaço de acolhimento e criação. Aos poucos, outras artesãs se juntaram à Célia: Rosalina Pereira, Maria Aparecida Inácio, Ana Maria Pereira Marques e tantas outras. Entre sorrisos e conversas animadas, surgem histórias de dedicação, trabalho e amor pela arte do bordado.


Presidente da Associação desde o início, Célia é determinada e resiliente. Para ela, o saber do bordado não é algo que se aprende de repente, mas uma herança de vida. Ela conta que ainda guarda suas primeiras peças feitas em saco de farinha: “Com 8 anos eu já bordava. Eu vim da roça. Sou filha de fazendeiro”. Mais do que uma técnica, o bordado é um verdadeiro remédio: “Se não fosse por ele, eu já tinha morrido há muito tempo. Eu vim de uma depressão”, revela. A linha e a agulha se tornaram ferramentas de cura, que ela compartilha com outras mulheres: “Quero ser um remédio para os outros. Você tá ali com uma linha e uma agulha na mão, bordando, sabendo que com suas mãos você pode fazer algo…”
Ao longo dos anos, Célia transformou o saber do bordado em instrumento de resistência cultural, inclusão social e geração de renda. Em momentos críticos, abriu mão de bens pessoais para manter a Associação funcionando, especialmente durante crises provocadas pela valorização de aluguéis, decorrentes das atividades mineradoras. Com o apoio da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e da Fundação Vale, conseguiu garantir uma sede própria para a instituição em 2004.


A relação com as mineradoras é complexa. Encomendas da Vale e patrocínio da Samarco geram volume de produção, mas essa dependência impõe vulnerabilidade. Célia questiona:
“E se não existisse mais mineração, o que seria da Arte, Mãos e Flores?”. Em vez de desanimar, a pergunta impulsiona a busca por autonomia. “A gente tem que evoluir para que possamos ter produtos que sejam vendáveis em qualquer lugar que a gente for”, afirma.



As mãos que tecem os fios criam belas peças e representam a força de um povo que, ponto a ponto, enfrenta e supera os desafios impostos por uma atividade que insiste em moldar o cotidiano. Assim, as bordadeiras estão determinadas a preservar sua identidade e construir um futuro próprio.



Ressignificar pela fé
São Bento é um dos pilares espirituais e culturais que sustentam a comunidade de Bento Rodrigues. Mais do que padroeiro, ele é o símbolo da resistência de um povo diante do esquecimento e da devastação provocada pela mineração.
Em 2025, a tradicional Festa de São Bento foi realizada no sábado, 26 de julho. A celebração começou por volta das 17h, no subdistrito de Mariana, em Bento Rodrigues, território afetado pela lama da barragem de Fundão em 5 de novembro de 2015.


No horário da procissão, que marca o início da festa, a cena se desenrolava com muita fé. À frente do cortejo, a cruz guiava a bandeira com a imagem do santo, pronta para ser erguida no mastro. Atrás, fiéis rezavam e cantavam, enquanto o andor do santo, enfeitado com flores brancas e azuis, era seguido pelo padre de batina verde. No fim da procissão, a banda tocava. Uma das canções era uma homenagem carinhosa ao Sr. Filomeno, músico e antigo morador de Bento Rodrigues.


Apesar de ser uma celebração, não havia muitos sorrisos.





No que restou da Capela de São Bento, o cenário estava pronto para a missa. Ali, onde a lama deixou sua marca de destruição, cadeiras estavam organizadas para os fiéis. O altar, coberto por uma toalha branca, recebia a imagem de São Bento sobre o andor. O padre incensou o santo e deu início à celebração. O espaço, mesmo destruído, simboliza a memória e a resistência do povo de Bento Rodrigues.



Marquinhos, figura chave no grupo “Loucos por Bento”, que luta para manter essa tradição viva, sempre enfatiza o quanto retornar é não esquecer. Para ele e tantos outros, realizar a festa no antigo subdistrito é reafirmar que “nossa alma tá aqui plantada”. Evidenciando a conexão da comunidade com sua terra de origem, ele ainda completa: “o território é nosso”. A missa, em meio aos escombros, é um testemunho da fé e da resistência, inspirando a luta por justiça e a preservação da identidade em um cenário dominado pelas empresas.

Essa fé é capturada nas palavras do Padre Marcelo Moreira Santiago, uma voz atuante na defesa das comunidades atingidas pela mineração em Minas Gerais. Como coordenador da CNBB para a Ecologia Integral e Mineração, ele acompanha de perto a jornada da comunidade e ressalta a força desse povo.
“É um povo lutador, um povo que não entrega os pontos, não desanima, né? Olhar para o passado, fazer memória constante dele, mas olhar para o futuro, abrindo horizontes novos, de mais vida e de mais esperança. Uma comunidade que, apesar das provações, ela não se entregou, ela não se rendeu, mas ela continua firme”.
Padre Marcelo Moreira Santiago

Mesmo após o estrago causado pela lama, a memória continua a ser a base de um povo que se nega a ser vencido. O momento da queima de fogos, junto ao levantamento da haste em homenagem a São Bento, reforça a celebração.
É o povo, e não a lama, que escreve o futuro de Bento Rodrigues. Nos escombros da capela, a cada ano, eles reacendem a esperança, mostrando que o amor pela terra é mais forte.
