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Histórias que a lama não levou

Dados dos últimos dez anos refletem a realidade dos atingidos do maior desastre-crime ambiental do país, em Mariana (MG)

Anahí Santos, Júlia Martins, Maria Eduarda Marques e Maria Teresa Carvalho

Agosto de 2025

Álbum de foto mostrando familiares de Waldir Pollack em sua antiga casa. É possível ver seis pessoas em frente à uma casa na zona rural, com árvores e uma colina ao fundo. Ao fundo, está parte do atual terreno de Waldir.

Álbum de foto dos familiares de Waldir Pollack na antiga casa, em Paracatu de Baixo. | Foto: Júlia Martins

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Eu não sabia o que era uma barragem, nem o que aconteceria se rompesse. Aí eu fui para a aula normalmente. Chegando lá, foi um alvoroço. Os professores diziam ‘era uma vez, Bento’. Essa frase não vai sair da minha cabeça nunca.

Mirella Lino

Mirella Lino, 27, vivia em Ponte do Gama, subdistrito de Monsenhor Horta, localizado a cerca de 35 km da sede de Mariana, município de Minas Gerais. Ela tinha apenas 17 anos quando a Barragem de Fundão rompeu e estava à caminho da Escola Estadual Cônego Braga, no distrito de Monsenhor Horta, quando soube do ocorrido. 

Passou grande parte da sua infância e adolescência em Ponte do Gama, cuidando dos irmãos enquanto os pais trabalhavam como lavradores na pequena comunidade. “[A vida] era muito simples, bem parada até; mas era confortável, satisfatória, suficiente. Muito diferente da vida aqui em Mariana, que apesar de ser uma cidade pequena, é muito agitada”, conta.

Assim que entendeu a dimensão da tragédia, entrou em desespero: “Se isso chegar lá em Ponte do Gama na proporção que chegou em Bento, eu estou órfã, porque vai morrer todo mundo”. Apesar da situação, a família de Mirella conseguiu sair de casa com a lama na altura do pescoço. Logo depois de se dirigirem para uma área segura, em uma parte mais alta não atingida, a mãe de Mirella pegou um telefone emprestado e ligou para dar notícias.

Mesmo com o alívio da ligação, a jovem não conseguiu sair de Monsenhor Horta e voltar para a família naquele dia, porque as estradas de acesso à Ponte do Gama foram interditadas por causa da lama.

Mapa ilustrando o trajeto da lama durante o desastre-crime, passando, em ordem, pelos municípios de Mariana, Barra Longa, Santa Cruz do Escalvado, Rio Doce, Sem-Peixe, São José do Goiabal, Pingo-d’Água, Ipatinga, Ipaba, Naque, Periquito, Tumiritinga, Governador Valadares, Galiléia, Conselheiro Pena, Resplendor, Aimorés, Itueta, no estado de Minas Gerais, e Baixo Guandu, Colatina e Linhares, no Espírito Santo. O mapa destaca o Rio Doce e a população de cada cidade. O mapa é verde. As regiões afetadas estão representadas na cor laranja. O traço do Rio Doce é azul. As Barragens de Fundão e Santarém estão representadas com bolas vermelhas, assim como as principais sedes afetadas, com bolas vermelhas menores. Os limites estaduais são delimitados com um traço branco.

Mapa do trajeto da lama, que percorreu cerca de 600 km entre Minas Gerais e Espírito Santo. | Fonte: IBGE (2025)

O desastre-crime liberou cerca de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração e matou 19 pessoas. Uma mulher que estava grávida, resgatada com vida, sofreu um aborto em decorrência do rompimento. O feto ainda não foi reconhecido como vítima direta.

A barragem, de propriedade da mineradora Samarco Mineração S/A e controlada pelas empresas Vale e BHP Brasil Ltda., destruiu as comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, e impactou diretamente 49 municípios, 38 em Minas Gerais e 11 no Espírito Santo.

O crime, sem precedentes, é entendido como o maior desastre socioambiental do Brasil. O rompimento degradou milhares de hectares de vegetação e de zonas rurais, além de matar diversas espécies de plantas e animais endêmicos, sobretudo, ao longo da bacia do Rio Doce.

O dia 05 de novembro de 2015 foi traumático para a população da região. Em poucas horas, distritos haviam sido tomados pela lama, pessoas haviam morrido ou desaparecido e centenas estavam desabrigadas.

Adriana Lima, 52, é belorizontina e foi trabalhar em Mariana em 2006 como assistente social concursada do município. Com todo esse tempo morando na cidade, já se considera marianense, assim como o seu marido Ciro do Carmo, 52, com quem é casada há mais de trinta anos.

Adriana Lima sentada numa cadeira sob um fundo branco, Adriana é branca, está vestindo uma blusa e casaco pretos e possuí cabelos escuros e longos.

Adriana Lima mora em Mariana há 19 anos. | Foto: Maria Eduarda Marques

Adriana conta que, na data do rompimento, que aconteceu um dia após celebrar seu aniversário de 43 anos, notou um movimento diferente quando saiu para fazer compras no centro de Mariana. 

Chegando em casa, ficou sabendo do desastre-crime pelos comentários desesperados de vizinhos. Ainda era incerta a magnitude do fato, o que só deixava as pessoas mais agitadas e preocupadas com a possível morte de conhecidos que moravam nas comunidades atingidas. “Os rumores que circulavam por Mariana eram de que a lama já tinha levado gente, animal, casa, tudo”, relata Adriana. 

Por volta de 17h, 40 minutos após o rompimento, os assistentes sociais e psicólogos da região se reuniram na Arena Mariana, localizada na sede do município, a cerca de 22 km de Bento Rodrigues e 34 km de Paracatu de Baixo, para começar o atendimento aos atingidos. 

Na época, Adriana, lotada na Secretaria Municipal de Saúde, estava cursando Direito no Centro Universitário Presidente Antônio Carlos (Unipac) de Mariana e faltou à aula para ficar na linha de frente junto aos colegas de trabalho. A Guarda Municipal já tinha organizado tudo na Arena e a população de Mariana também ajudava levando roupas, sapatos e alimentos. Enquanto isso, os atingidos chegavam gradativamente.

Entretanto, segundo a assistente social, a noite que seguiu foi marcada pelo nervosismo. “Ninguém conseguiu dormir”, relembra. A movimentação foi intensa, e os profissionais da assistência, já exaustos e sob pressão, começaram a se desestabilizar. “Eles ficaram muito nervosos, descontrolados mesmo. Chegaram a ser grosseiros com as pessoas. Achei um desrespeito muito grande”, lamenta.

Ela ainda conta que os atingidos que conseguiram chegar até Mariana, passaram a noite na Arena e dormiram em colchões dispostos pelo chão. Adriana saiu do local às 5h e, duas horas depois, já estava de volta.

O dia após o rompimento

No dia seguinte, o sentimento de abandono se agravou. Além de moradores de Bento Rodrigues, outras pessoas de Paracatu de Baixo começaram a chegar. A equipe de saúde que retornava da região estava visivelmente abalada. Ela também conta que, até então, nenhum representante da Samarco tinha aparecido e tampouco prestado qualquer tipo de assistência aos atingidos.

No final do dia 06 de novembro, sob determinação dos órgãos de Defesa Civil e do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), a Samarco realocou os atingidos para hotéis em Mariana, praticamente esgotando as vagas das acomodações. Diante da situação, o Ministério Público também expediu uma ordem judicial, cinco dias após o rompimento, no dia 10 de novembro, uma vez que a lista de atingidos e de pessoas afetadas direta ou indiretamente pelos eventos crescia. Além disso, a maioria continuava alojada em hotéis, aguardando uma solução emergencial por parte das empresas.

Dentre os pedidos da ordem judicial, estava a necessidade de disponibilizar moradia adequada, de casas alugadas ou diárias em hotéis, de acordo com a vontade das famílias afetadas, até o dia 24 de dezembro de 2015. As moradias deveriam contemplar todos os móveis, eletrodomésticos, utensílios domésticos, devendo essa obrigação perdurar até o reassentamento das vítimas. 

A decisão criou ainda mais confusão. Adriana explica que a notícia se espalhou, e pessoas de outras cidades começaram a aparecer alegando também serem atingidas. “Virou uma loucura. Tinha gente que veio de Belo Horizonte que, naquela hora, queria ser atingida também. E o pior: não deixaram a gente cadastrar quem a gente conhecia, quem o Cras [Centro de Referência de Assistência Social] já atendia”. 

Para Adriana, com o passar dos dias, faltou organização: “Tinha que ter tirado repórter, político, gente que não era da comunidade, e deixado os profissionais atenderem e acolherem aquelas pessoas como elas mereciam. Entrava e saía quem queria. Só sei que foi no domingo, dia 08, que as coisas começaram a ficar mais tranquilas”.

Também foi nesse momento, segundo Adriana, que políticos começaram a aparecer para visitar o local e prestar assistência aos atingidos, quando os holofotes já estavam voltados para Mariana. 

Durante esse período, a família de Mirella ficou ilhada na casa da avó em Ponte do Gama. Em 22 de novembro de 2015, se mudaram para o Centro do município, depois da ordem judicial que demandava que a Samarco realocasse todos os atingidos para moradias temporárias.

 Família de Mirella (quatro pessoas), com vários galões de água ao fundo, em uma casa na zona rural de Ponte do Gama, subdistrito de Monsenhor Horta, em Mariana (MG). É possível vê-la juntamente a alguns parentes. A casa é de tijolos e o chão é de terra batida.

Casa da avó de Mirella, no subdistrito de Ponte do Gama, onde a família ficou ilhada após o rompimento. | Fonte: Arquivo pessoal 

As consequências e a dor trazidas pelo rompimento não foram apenas imediatas, mas se estenderam ao longo dos dez anos seguintes. O crime socioambiental afetou a segurança, a educação, a saúde, a economia e a renda dos mais de dois milhões de habitantes dos 49 municípios atingidos diretamente. De maneira indireta, 228 cidades de Minas Gerais e do Espírito Santo sofreram com os impactos advindos do desastre-crime.

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“Tudo mudou”

A casa de Waldir Pollack, 79, foi uma das tomadas pela lama em Paracatu de Baixo, subdistrito de Monsenhor Horta, em Mariana. Ele comprou o lote no subdistrito marianense há cinquenta anos, e se mudou definitivamente em 1998. A estrutura da casa foi comprometida pelos rejeitos, e por isso, precisou ser derrubada. Durante o processo de reconstrução, realizado pela Fundação Renova – entidade responsável pelo gerenciamento dos programas de reparação e compensação dos danos causados pelo rompimento – , o alojamento dos estagiários e o apiário, onde Seu Waldir, como é conhecido, fabricava mel, também foram renovados.

Nascido em 1946 na comunidade de Paraju, localizada no município de Itaguaçu, no Espírito Santo, Waldir sonhava em ser piloto de avião, porém as necessidades da vida o guiaram por outro caminho. Na adolescência começou a trabalhar com agricultura em uma plantação de café. 

A chegada em Minas Gerais aconteceu alguns anos mais tarde, devido a uma carta enviada pelo sogro, que oferecia a ele a oportunidade de trabalhar na fábrica da Morrison Knudsen Engenharia, localizada na cidade de Santa Luzia, em Minas Gerais. Waldir se mudou primeiro e mais tarde trouxe a esposa e a filha. A família se instalou em Belo Horizonte, cidade em que nasceu o segundo filho de Waldir e Michele. “Foram vinte e cinco anos na mesma empresa: quinze [anos] na Morrison e dez [anos] depois que ela foi vendida para a Mendes Júnior”, relembra.

Michele recebeu o diagnóstico de câncer na década de 1970 e, a partir disso, Waldir se dedicou em compreender as causas da doença: “Cheguei a conclusão, que eram esses itens, agrotóxico, adubo químico, conservantes e hormônios que aplicam nos animais para engordar. Todos esses produtos que eu consumia, estavam 10% acima do tolerável pelo organismo”.

Com o intuito de melhorar a qualidade de vida da família, ele decidiu plantar alimentos orgânicos e começou a busca por uma propriedade rural. Em 1975, Waldir começou sua história em Paracatu. “Eu vinha para cá só nos finais de semana, porque eu trabalhava [em Belo Horizonte] durante a semana, até às 16h. Aí eu saía do emprego, chegava em casa, todo mundo tava pronto para vir para cá, trabalhar na lida. Aqui não tinha nada, aí nós começamos a construir um barracão”, relata.

A família se mudou definitivamente para Paracatu de Baixo em 1981. Waldir ainda recorda que a plantação começou com milho e feijão: “na época da colheita, enchia a casa, a gente dormia em cima do milho”. A família Pollack continuou assim até 1992, ano em que a esposa de Waldir faleceu.

 

Apesar do acontecimento, Waldir conta que a mudança para o campo, aliada à alimentação, prolongou o tempo de vida da mulher: “depois que nós mudamos a alimentação, ela viveu mais. Então isso faz eu ter essa certeza que aqui, para mim, é a melhor coisa. Eu tinha tudo alto, pressão, glicose, colesterol e eu não tenho mais nada disso hoje”.

Durante dezesseis anos, de 1998 a 2014, ele ampliou a produção rural, com o cultivo de hortaliças, a plantação de feijão, mandioca, milho, café, além da criação de porcos, galinhas e vacas. 

O rompimento da Barragem de Fundão aconteceu no marco de 40 anos da chegada da família Pollack à comunidade. 

Em 2018, três anos após o desastre-crime, sua nova casa ficou pronta. Durante o período de reconstrução, ele permaneceu na propriedade para cuidar da horta e dos animais, morando em um dormitório improvisado na casa de apoio, menos afetado pela lama.

Atualmente, é aposentado e trabalha na produção de hortaliças orgânicas, vendidas na Feira Livre, todos os sábados, próxima ao Centro de Convenções de Mariana, na sede do município.

Seu Waldir sente a diferença da poeira de terra para a poeira do minério. Para ele, o ar não é mais puro como era antes do rompimento. “O carro passa e a poeira fica suspensa, não cai”, comenta, apontando para a estrada de terra em frente a casa, em que um carro havia passado minutos antes.

Além dessas mudanças ambientais perceptíveis no dia a dia, os impactos do rompimento também atingiram profundamente o aspecto social e emocional dos moradores. A convivência, os hábitos e os laços comunitários foram desfeitos junto com a paisagem.

A falta que sente da comunidade se fez presente inúmeras vezes nas falas de Waldir. Ele comenta dos encontros diários que tinha com os amigos no centro do subdistrito, onde se reuniam para tomar uma cerveja e se encontravam com frequência nas missas realizadas na capela de Santo Antônio. “Tudo mudou”, lamenta.

Waldir ainda diz que, são poucos os que, como ele, permaneceram no velho Paracatu. Logo após o rompimento, a maioria dos moradores foram deslocados para a sede municipal.

Seu Waldir com uma camisa azul, boné e calça bege em frente à uma casa azul com varanda de grade laranja e roupas penduradas no varal, há um gramado e árvores ao redor. A casa foi reconstruída pela Fundação Renova com base em sua casa anterior, afetada pelo rompimento.

Seu Waldir na casa reconstruída pela Fundação Renova, de acordo com o projeto escolhido por ele. | Foto: Maria Teresa Carvalho

A ausência de respostas concretas, a lentidão na reparação e o descaso institucional se somaram à dor imediata, deixando cicatrizes psicológicas que atravessaram os últimos dez anos desde o rompimento.

A reconfiguração das rotinas e dos laços comunitários, como os que Mirella e Seu Waldir tanto valorizavam, provocou um trauma compartilhado.

Desalento Coletivo

Diante da falta de aparato social para lidar com os efeitos psíquicos da tragédia, profissionais da área da psicologia se mobilizaram para oferecer acolhimento. Foi o caso de Daniel Gabarra, psicólogo especializado em trauma e psicodrama e trainer de brainspotting, metodologia que pretende estimular o cérebro a reorganizar as redes de memória para que traumas passados não afetem negativamente o presente dos pacientes.

Daniel integrou um grupo de psicólogos voluntários responsável por atender atingidos da Barragem de Fundão. Durante os seis primeiros meses após o rompimento, eles prestaram atendimento a um grupo de atingidos, cerca de 30 pessoas. Os atendimentos eram realizados uma vez por mês, na pousada em que o grupo havia sido alojado temporariamente.

Os voluntários faziam dinâmicas em grupo e atendimentos individuais. Gabarra conta que nos primeiros encontros, era muito comum que os atingidos tivessem episódios de flashback. Esses flashbacks normalmente ocorrem como consequência de estresse pós-traumático, levando as pessoas a reviverem o evento ou fragmentos da experiência que vivenciaram.

De acordo com Daniel, no caso dos atingidos, os episódios eram uma resposta aguda ao trauma recém-vivido.“O trauma não é o que aconteceu, mas é como o que aconteceu marca a vida de uma pessoa. Nesse caso, de várias comunidades. E é nesse lugar que o suporte [psicológico] é uma questão chave para a reconstrução do equilíbrio mental”, explica Gabarra.

A segurança também era um flagelo comum para a maioria do grupo. “Tem a dor de pensar que aquilo [desastre-crime] poderia ter sido evitado. E quem poderia ter evitado, eram as pessoas responsáveis por protegê-los naquele momento”, comenta o psicólogo.

Essa vivência intensa do trauma, muitas vezes sem o suporte necessário, atravessou a juventude de Mirella: “Hoje eu tenho 27 anos e tive que amadurecer no meio desse processo. Já é difícil a transição da adolescência para a vida adulta, e eu tive que assumir responsabilidades muito nova, para as quais eu não estava preparada”.

O acesso à educação foi outro fator que afetou o processo de amadurecimento de Mirella e seus irmãos. Na época do acontecido, ela estava finalizando o 3º ano do Ensino Médio em Monsenhor Horta, na mesma escola onde os irmãos também estudaram, e precisou ficar um mês afastada das aulas, por causa da lama. “Eu perdi muito. Durante todo o tempo que a gente ficou ilhado, eu não consegui ir para a aula. Eu estava desesperada, achando que ia perder o ano. Eu sempre fui muito estudiosa, então, isso para mim foi uma perda muito grande”, lamenta Mirella.

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Os irmãos de Mirella, mais novos, também enfrentaram dificuldades nos anos seguintes ao desastre-crime. “Minha irmã e meus irmãos trocaram de escolas duas vezes, por causa do bullying que sofriam dos colegas. Chamavam eles de ‘pé de lama’, diziam que o pai perdeu emprego por causa deles”, relata a estudante.

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A Pesquisa sobre a Saúde Mental das Famílias Atingidas pelo Rompimento da Barragem do Fundão em Mariana (Prismma), realizada pela Assessoria Técnica Indepedente Cáritas e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2018, indicou que 62,7% dos atingidos já sofreram discriminação em função do status de “atingido”.

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Crescendo em meio à reconstrução e à constante cobrança por justiça, Mirella vivenciou os efeitos da ausência e demora de respostas que, para Daniel, também pode ter influenciado o estado emocional dos atingidos. “Não adianta fazer terapia com aquelas pessoas todo dia, se elas estão sendo sistematicamente retraumatizadas ao não serem ouvidas nas suas demandas. A terapia por si só não resolve, porque o trauma permanece. A vivência do trauma é contínua”, explica o psicólogo.

Nesse sentido, a jovem passou também a acompanhar de perto os desdobramentos da reparação prometida, por meio da luta e mobilização coletiva dos atingidos. O envolvimento com reuniões, negociações e audiências passou a fazer parte de sua rotina, em busca de respostas e soluções concretas. 

Há nove anos, Mirella é participante da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF). A Comissão, uma resposta organizada da população atingida, foi criada em 2016 como um canal de diálogo para representar e assegurar seus direitos, ao buscar soluções para os danos causados pelo crime. 

A CABF luta pela articulação com atores sociais e institucionais, em busca de justiça e reparação e conta com o apoio técnico da Cáritas Minas Gerais, que atua como Assessoria Técnica Independente (ATI) aos atingidos, com o auxílio no Cadastro de Atingidos e apoio nas negociações dos acordos.

Para Mirella, a CABF mantém viva a história das comunidades: “Todos que estão na comissão lutam não só pelo individual, mas pelo direito de todos, de uma comunidade. É um sentimento de identidade, de pertencimento que é muito forte para a gente, que parece que se perde muito nesse mundo, que as empresas vivem. Acima de tudo, a CABF existe para manter viva a história dessas comunidades”.

Mirella aparece em duas fotos durante as manifestações de 2018. Na primeira ela levanta um cartaz escrito “Queremos uma resposta”, enquanto na segunda está escrito “A união do povo é a força”. Na primeira foto, Mirella está à frente de diversas pessoas, presumivelmente atingidos como ela, no edifício que à época atuava como Fórum de Mariana, já na segunda, ela está em frente à um carro de cor prata. Mirella usa a mesma roupa nas duas, uma calça jeans escura e uma camiseta preta e o cabelo amarrado para trás.

Mirella manifestando seus direitos em audiência pública realizada em 2018 no antigo Fórum de Mariana, hoje sede da Delegacia Civil do município. | Fotos: Arquivo Pessoal

Uma das reivindicações de Mirella é o reconhecimento de atingidos de outros territórios mais afastados. De acordo com a estudante, o processo de reparação deu mais visibilidade para os subdistritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. 

“Bento e Paracatu são as comunidades mais visíveis. Mas também tem mais gente. Outras seis comunidades, a minha e outras cinco menorzinhas, em que algumas famílias foram atingidas. Para a gente ser reconhecido como atingido, tivemos que nos juntar e formar o grupo que hoje é conhecido como ‘zona rural’”, relata, sobre a sua participação na Comissão. 

A professora Kathiuça Bertollo, do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), explica como os movimentos sociais surgiram após o rompimento. Kathiuça participa da Frente Mineira de Luta das Atingidas e dos Atingidos pela Mineração (FLAMa-MG) e possui estudos sobre extrativismo, trabalho, mineração e lutas sociais na região dos Inconfidentes:

“Eles se tornaram atingidos de um minuto para o outro e isso desencadeou a necessidade de se organizarem no movimento social. É sempre em prol da sua comunidade, do seu território, por todas as pessoas atingidas. Então, os movimentos sociais são imprescindíveis". 

Mirella voltou a estudar em 2022, sete anos após o rompimento. Antes, ela cursava Pedagogia na Ufop, mas a graduação foi interrompida pelas demandas familiares e da militância. Ela prestou novamente o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e conseguiu uma vaga no curso de Serviço Social, na mesma universidade. “Eu sou apaixonada por esse curso e ainda mais pela atuação dos professores, e a atenção que eles dão para essa luta. Quando entrei aqui, pensei: agora eu tô em casa”, afirma.

E a reparação?

Apesar de toda a luta dos movimentos sociais, os atingidos enfrentam dificuldades para obter reparação adequada, mesmo dez anos após o rompimento. 

A dependência econômica com o setor da mineração, por exemplo, ficou evidenciada no modo como a reparação foi conduzida, influenciando na efetividade e no direcionamento das medidas de reparação.

Em 02 de março de 2016, foi assinado o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), um acordo extrajudicial para lidar com as consequências do rompimento. Sob a prerrogativa de amparar os atingidos e identificar os danos causados, as empresas responsáveis pelo crime, Vale, Samarco e BHP, além dos governos federal e dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, se uniram para criar a Fundação Renova.

Extinta em 2024, a Fundação Renova foi uma entidade proposta pelas próprias mineradoras envolvidas no desastre-crime e formalizada por meio de um acordo com o poder público, cuja missão declarada era gerir e implementar as ações de reparação. No entanto, desde sua origem, a fundação foi alvo de críticas pelo excesso de burocracia e baixa participação social.

A gama de atuação da Renova era extensa, como explica a economista Karolina Vasconcelos: “Ela [a Fundação Renova] executava mais de 52 programas. E cada programa tinha um objetivo. Tinha um programa de proteção social, um programa de indenizações, tinha um programa voltado para diversificação econômica nos territórios, inclusive em Mariana”.

A Renova ficou com o controle da maior parte dos recursos destinados à reparação, o que trouxe consequências sérias para a fiscalização dos recursos empenhados. “A forma como [os programas] foram construídos e executados, também foi da parte da Renova. Cabia ao município fiscalizar? Mas a proporção que ela tomou fugiu do controle de todos os atores envolvidos”, aponta a economista.

Assim, o fluxo de capital e trabalho aumentou, dificultando um acompanhamento eficaz por parte do poder público. A crise que sucedeu o rompimento da barragem acarretou em muitas ineficiências e desvios de recursos financeiros, o que afetou a aplicação das verbas, referentes aos processos indenizatórios.

Um exemplo disso é o atraso, por parte da Renova, na reconstrução dos subdistritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, que tinham suas entregas previstas para março de 2019.

Linha do tempo com sete blocos retangulares verdes escuros e vermelhos, intercalados. Os blocos representam os anos de 2015, 2016, 2018, 2021, 2023, 2024 e 2025, com os principais acontecimentos relacionados aos acordos do rompimento.

Principais medidas de reparação ao longo dos dez anos após o rompimento da Barragem de Fundão. | Elaboração: Maria Eduarda Marques

O Novo Acordo de Mariana, também conhecido como Acordo de Reparação do Rio Doce, que extinguiu a Fundação Renova, atualizou o valor de recursos para a reparação, de R$ 132 bilhões para R$ 170 bilhões. Esses recursos incluem a implementação de ações, projetos e programas, que possuem o objetivo de realizar reparações ao meio ambiente e custear políticas públicas para os atingidos. O acordo estabeleceu o Programa Indenizatório Definitivo (PID), em 26 de fevereiro deste ano, responsável por pagar R$ 35 mil para cada atingido reconhecido. 

“Depois de dez anos, a gente já não consegue fiscalizar muita coisa mais. Então, eu não acredito que uma indenização de R$ 35 mil para quem já está há tantos anos na luta e perdeu tudo, seja suficiente. Isso me deixou profundamente desolada. Não sei dizer se eu vejo algum horizonte”, desabafa Mirella sobre os desgastes e expectativas em relação ao processo de reparação.

A medida foi tomada com o intuito de estabelecer um novo modelo de governança, com responsabilidades destinadas a Samarco e entidades públicas, especialmente ao Governo Federal e aos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo. Além do Ministério Público Federal (MPF), da Defensoria Pública da União (DPU), do Ministério Público e da Defensoria Pública dos dois estados estarem envolvidos no processo.

A Samarco informa que o acordo vem sendo cumprido em conformidade com os termos homologados no Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 6 de novembro de 2024. A empresa também reafirma a transmissão das responsabilidades da Renova para o novo modelo de governança. A entidade declara que os repasses financeiros executados “seguem os critérios técnicos e jurídicos previstos no Acordo e são direcionados aos 49 municípios reconhecidos como atingidos”. 

Segundo a empresa, todos os atendimentos do Programa de Indenização Definitivo (PID) devem ser finalizados até dezembro de 2026.

No Novo Acordo estabelecido, o repasse do PID é destinado a pessoas físicas e jurídicas que se enquadram em critérios específicos, que sofreram danos diretos e as que não foram devidamente indenizadas por outros meios. Porém, o impacto econômico causado pelo desastre-crime também foi sentido por atingidos “indiretos”, como pequenos empreendedores da região.

Esse é o caso de Ciro do Carmo, 52, nascido e criado em Mariana. Ciro é o marido da assistente social e advogada Adriana Lima, uma das servidoras que auxiliou os atingidos no dia do rompimento, na Arena Mariana. O ex-empresário fundou, em 2004, a Zaga Printer do Brasil Ltda., uma empresa de manutenção de impressoras que nasceu pequena, mas prosperou com o aquecimento econômico trazido pela atuação da Samarco e suas empreiteiras.

O negócio, localizado no Bairro Barro Preto, na sede de Marina, chegou a ocupar três andares e manter sete funcionários fixos. “Era maravilhoso na época da terceira e quarta pelotização da Samarco. Mariana era um formigueiro de gente, o comércio era aquecido. Depois do rompimento, parecia uma cidade fantasma”, relembra Ciro.

O rompimento da Barragem de Fundão, destruiu esse ciclo de crescimento. "Minha empresa não conseguiu se sustentar apenas com o comércio local", conta Ciro. O cenário econômico entrou em colapso e, pouco a pouco, com a ausência de demanda e a retração do mercado, Ciro foi dispensando funcionários, ainda que tentando manter a atividade da empresa.  

Após o rompimento, ele recorreu a empréstimos e assumiu dívidas com fornecedores, na tentativa de salvar o empreendimento. A compensação pela perda não veio, e a indenização esperada, nunca chegou, nem da Samarco, nem da Fundação Renova. A Zaga Printer teve que, por fim, fechar as suas portas em 2017.

Impressoras e equipamentos eletrônicos empoeirados numa prateleira metálica. Os equipamentos eram utilizados na empresa Zaga Printer.

Mirella manifestando seus direitos em audiência pública realizada em 2018 no antigo Fórum de Mariana, hoje sede da Delegacia Civil do município. | Fotos: Arquivo Pessoal

Segundo ele, mesmo com notas fiscais, contratos e registros de serviço dentro das empreiteiras, sua condição de "atingido indireto" (alguém que não teve a casa ou terreno destruídos pela lama, mas que teve sua fonte de renda desestruturada por completo em decorrência do rompimento) não foi reconhecida, tampouco considerada nos critérios de reparação adotados pelas empresas no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC).

Sem receber qualquer tipo de indenização ou apoio das empresas, foi a parceria com a esposa Adriana, que sustentou o lar. “Ela segurou as pontas. Enquanto isso, eu fazia o que dava: consertava impressoras de graça, vendia peças, prestava serviços pontuais”, avalia Ciro.

Além das perdas econômicas, ele carrega também o peso emocional do abandono institucional. “O psicológico é o que mais abala. Você contrata jovens, dá o primeiro emprego, dá oportunidade... Para depois ter que dispensar. Isso foi muito triste, amargurante”. 

Dez anos depois, Ciro ainda espera ser reconhecido como atingido e ter direito à reparação. Para ele, “a indenização ajudaria bastante, porque não existe um administrador que supere um investimento na empresa que está em crescimento e que, de repente, acaba a renda. Como honrar o capital que você pegou no banco? Então seria para tentar equilibrar as despesas para que a gente pudesse administrar melhor a vida”.

Homem de blusa verde água e casaco preto, cabelos e barba branca ao centro da foto. Ao fundo, há grades pretas e uma parede vermelha.

Ciro em frente ao prédio onde Zaga Printer funcionava, no centro do município. Hoje é um escritório de advocacia. | Foto: Maria Eduarda Marques

Assim como Ciro, outros atingidos seguem aguardando reconhecimento formal e acesso às medidas de reparação. Ao longo da última década, diferentes relatos apontam para dificuldades no processo de identificação dos atingidos e na implementação das ações prometidas, o que prolonga a resolução dos impactos causados pelo desastre-crime.

Mirella, que luta pela reparação através da atuação em movimentos sociais, vê o futuro como incerto:

aspas do texto longform

O processo de invisibilização foi e ainda é muito forte. A Renova sempre tentou não ver a gente, mas a gente estava ali, incomodando. Várias pessoas ainda lutam para serem reconhecidas como atingidas e não são… Então, não sei o que esperar para os próximos dois, dez ou vinte anos.

Mirella Lino

Logo da Revista Curinga

Produto editorial da disciplina
Laboratório Integrado II: Grande Reportagem Multiplataforma, elaborado por estudantes do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

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